A Operação Safra Justa, levada a cabo pela Polícia Judiciária na região de Beja, deveria marcar um ponto de viragem no combate à exploração laboral e ao tráfico de pessoas. Deveria, mas não o foi, em vez disso, tornou-se um retrato cru da incapacidade do Estado Português de lidar com a escravatura moderna que se instalou, não só, mas também, no sector agrícola. O caso envolve centenas de trabalhadores explorados, alguns em condições próximas da servidão, intermediários que lucravam com a vulnerabilidade alheia, e, para choque de todos nós, vários elementos das forças policiais, aqueles que supostamente são responsáveis por garantir a nossa segurança e o cumprimento da lei.
Passado o momento mediático, o que sobrou? Detenções que rapidamente se desfizeram em libertações, um Ministério Público incapaz de estruturar uma indiciação robusta, um país que se escandaliza um dia e esquece no seguinte e, sobretudo, os donos das herdades, os grandes beneficiários económicos deste sistema, totalmente ausentes do debate público e jurídico.
A operação Safra Justa não é, nem pode ser, apenas um caso criminal, é um espelho incómodo da forma como Portugal fecha os olhos às práticas que sustentam parte do seu sector agrícola moderno. É um aviso de que, enquanto não se responsabilizar quem lucra, operações policiais serão pouco mais do que teatro.
Um dos aspetos mais chocantes da operação foi a detenção de dez operacionais da GNR e um agente da PSP envolvidos na rede que controlava trabalhadores imigrantes. Membros das forças policiais a participarem em crimes de tráfico de pessoas e facilitação de exploração laboral é, mesmo que não possamos nem se deva tomar a árvore pela floresta, um abalo profundo na confiança das instituições que existem para nos proteger.
Ao longo da última década, repetiram-se denúncias sobre comportamentos abusivos, cumplicidades e omissões que permitiram a permanência de redes de exploração em todo o país, com especial enfoque no Alentejo. Nunca a ligação entre exploração laboral e agentes do Estado tinha sido tão diretamente exposta. Esta revelação deveria ter mobilizado uma resposta judicial e política exemplar, mas não foi isso que aconteceu, antes pelo contrário, um quase silêncio absoluto por parte dos principais actores políticos com excepção para os actores circenses que, como é seu costume, preferem culpar as vítimas transformando-as nos causadores de todos os males. Só lhes falta dizer que foram as vítimas que se “puseram a jeito”.
A libertação dos envolvidos após as primeiras detenções não pode deixar de ser um choque, mas não um acaso, derivou diretamente da incapacidade do Ministério Público em preparar uma indiciação sólida. A fragilidade jurídica apresentada nas primeiras horas de investigação processual tornou impossível a aplicação de medidas de coação proporcionais à gravidade dos indícios.
É inadmissível que, perante um caso envolvendo centenas de vítimas, agentes do Estado e uma rede organizada, o Ministério Público não consiga montar de imediato um enquadramento legal robusto. Operações desta magnitude têm de ser preparadas, com equipas multidisciplinares, linguistas, psicólogos, especialistas em tráfico humano, juristas altamente especializados e equipas de infiltração e vigilância. Neste caso parece ter sido mais uma operação apressada, politicamente conveniente, mas juridicamente desastrosa. Quando falha o Ministério Público, nem que seja “apenas” por ter falhado a transcrição das escutas, falha o Estado. Quando o Estado falha, a impunidade instala-se para os criminosos, para os cúmplices e para todos os que lucram com a exploração humana.
A narrativa oficial tende sempre a apresentar estes casos como “excepções”, como desvios pontuais de um sistema supostamente saudável. Nada poderia estar mais longe da verdade. No Alentejo, a proliferação de empresas de trabalho temporário, subcontratadas por outras empresas que por sua vez contratam mão de obra para grandes herdades, criou uma cadeia opaca onde é fácil diluir responsabilidades. As vítimas são maioritariamente cidadãos estrangeiros, frequentemente indianos, nepaleses, bengaleses, paquistaneses ou africanos, que chegam a Portugal com falsas promessas e acabam presos em esquemas de dívida, falsas taxas, retenção de documentos, alojamentos degradantes e jornadas de trabalho brutais.
Este sistema não nasceu ontem, cresceu ao longo de anos, alimentado pela procura imparável de mão de obra barata e por um Estado que prefere não ver o que se passa nos campos que abastecem supermercados, exportações agrícolas e produtos de valor acrescentado.
Aqui chegados vamos ao ponto essencial que há demasiado tempo é ignorado no debate público. A indignação tem-se focado nos intermediários, nos angariadores, nas redes criminosas e, mais recentemente, com as detenções no decorrer da Operação Safra Justa, nos agentes das forças policiais envolvidos. Há, no entanto, um grupo que raramente aparece na linha da frente, os donos das herdades onde estes trabalhadores eram efetivamente explorados, no entanto, são eles os beneficiários diretos da estrutura de exploração.
Há uma razão objectiva para que os donos das herdades tenham de estar no centro da responsabilização. É para eles que o trabalho explorado é feito, são as grandes explorações que ganham com cada hora de trabalho pago a preços de miséria, com custos laborais reduzidos e margens maximizadas à custa da vulnerabilidade dos imigrantes. Sem a procura deles, não existiria oferta criminosa, redes de tráfico laboral só prosperam quando há clientes e os clientes são as explorações agrícolas que alimentam o seu modelo de negócio com mão de obra barata.
A cadeia produtiva é conhecida, mas convenientemente não investigada. Há contratos, facturas, empresas de trabalho temporário, autocarros que entram e saem, alojamentos nas propriedades, listas de trabalhadores, nada disto é segredo, mas continua tudo sem escrutínio. Se a punição não chegar ao topo, continuará tudo igual. Condenar um intermediário, ou até um polícia cúmplice, sem tocar no lucro final é atacar sintomas enquanto a doença se espalha.
Qual é a razão para a omissão estrutural do Estado que nunca chega aos donos? Esta é a pergunta que precisa de resposta, qual a razão para as investigações pararem sempre nos níveis inferiores da cadeia?
Há várias explicações possíveis, facilitismo processual, é mais simples provar o transporte ilegal de trabalhadores do que provar a responsabilidade direta do dono da herdade. Influência económica e política, muitos proprietários são grandes produtores, empresas multimilionárias, actores centrais nas exportações agrícolas e, provavelmente, muitos deles simpáticos doadores que alimentam as contas bancários de alguns partidos políticos.
Justiça que não chega ao topo é injustiça. Uma resposta séria à escravatura moderna implica investigações que incluam obrigatoriamente os proprietários das herdades onde houve exploração. Reforço jurídico para responsabilizar coautores económicos, não apenas executores. Rastreabilidade transparente de toda a cadeia agrícola, contratos, subcontratações, fluxos financeiros. Fiscalização permanente por inspetores independentes. Proteção imediata dos trabalhadores explorados, com regularização e integração social. Sem isto, continuaremos a assistir a operações mediáticas, seguidas de silêncio, seguidas de novas vítimas.
A Operação Safra Justa expôs uma realidade que muitos preferiam ignorar, a escravatura moderna no Alentejo não é um acidente, é antes do mais uma consequência lógica de um sistema agrícola dependente da exploração de imigrantes vulneráveis.
Sim, é chocante que haja polícias envolvidos. Sim, é vergonhoso que o Ministério Público tenha falhado de forma tão flagrante, mas nada disto se compara ao escândalo maior, os donos das herdades continuam intocados, silenciosos, invisíveis, apesar de serem os principais beneficiários económicos do esquema.
Enquanto Portugal não tiver coragem de responsabilizar quem lucra no topo da cadeia, todas as operações futuras serão apenas encenações. Os campos do Alentejo continuarão a ser o palco discreto de uma escravatura moderna que um país democrático não pode tolerar, mas que, até agora, tem consentido.
Jacinto Furtado



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