Estão a tornar-se frequentes discursos que relativizam, branqueiam ou elogiam o Estado Novo. Estes discursos não são inocentes, nem sequer uma questão nostálgica, são um sinal político alarmante. Uma ditadura ser apresentada como solução significa que a democracia está em risco. Contrariar estes discursos não é uma questão de opinião, trata-se, isso sim, de combater a mentira organizada.
Definir o Estado Novo não é difícil, foi uma ditadura longa e repressiva, uma ditadura que negou direitos fundamentais a várias gerações, um regime ditatorial, sem eleições livres, sem pluralismo partidário, sem liberdade de imprensa, sem liberdade sindical e sem separação efectiva de poderes.
Afirmar que o Estado Novo era um estado ditatorial não é ideologia, é olhar para os factos e para a realidade histórica. Tentativas para o embelezar como “regime forte”, “democracia orgânica” ou “autoritarismo benigno” não é interpretação histórica, é querer abusivamente reescrever a história.
A censura prévia não foi um excesso nem uma excepção, foi estrutural, diária, sistemática, com jornais a serem cortados à tesoura, livros a serem proibidos, autores a serem perseguidos, peças de teatro a serem canceladas, músicas a serem vetadas. Não se censurava apenas a crítica directa ao governo, censurava-se tudo o que pudesse estimular pensamento autónomo. O regime não queria cidadãos informados, queria uma população obediente, o silêncio imposto não era ordem, era controlo.
A repressão foi o instrumento central do regime tendo a PIDE como aparelho policial concebido para vigiar, intimidar, prender e torturar. Os dados são conhecidos e bem documentados, mais de 20 mil presos políticos dos quais, cerca de 3 mil, passaram pelo Campo do Tarrafal, conhecido como “campo da morte lenta”. O uso de tortura física e psicológica, incluindo espancamentos, privação prolongada do sono e isolamento eram práticas diárias. Milhares de cidadãos sujeitos a vigilância permanente, despedimentos, proibição de exercer profissões ou exílio forçado. A ideia de uma “ditadura branda” não resiste aos factos, quem a repete está a insultar a memória das vítimas.
Em 1960 um terço da população adulta era analfabeta, em muitas regiões rurais, sobretudo entre mulheres, esse valor quase que igualava a metade da população. Em 1970, apenas 4% da população frequentava o ensino secundário, o ensino superior era reservado a uma minoria. Em 1973, Portugal tinha um dos PIB per capita mais baixos da Europa Ocidental, a esperança média de vida rondava os 66–67 anos, muito abaixo da média europeia. A pobreza não era um acidente, era opção dum regime que temia cidadãos instruídos e críticos.
Entre 1950 e 1974, um número superior a 1,5 milhões de portugueses emigraram, muitos de forma clandestina, só na década de 1960, cerca de 1 milhão de pessoas abandonou o país. Não se foge em massa de um país justo, próspero e livre, a emigração foi uma resposta directa à miséria, à falta de direitos, à ausência de mobilidade social e, mais tarde, a fuga à guerra colonial. Um regime que expulsa uma parte significativa da sua população activa não é estável, é falhado.
Em 1973, o número de trabalhadores que viviam abaixo do limiar de pobreza ultrapassava os 25%. A chamada “paz social” não resultava de justiça ou consenso, mas de repressão, o trabalhador obedecia porque não tinha alternativa. Quem hoje elogia essa “ordem” está, conscientemente ou não, a elogiar a exploração. O regime proclamava austeridade, moral e bons costumes, mas favorecia uma elite económica restrita. Grandes grupos controlavam sectores estratégicos, banca, seguros, energia e transportes através de concessões e monopólios atribuídos sem concorrência nem escrutínio, apenas com a benesse do regime.
Sem imprensa livre, sem oposição legal e sem tribunais independentes, a corrupção não desapareceu, tornou-se invisível, escondida, silenciosa. Dizer que “antes não havia corrupção” é apenas reconhecer que o que não havia antes era liberdade para a denunciar.
A guerra colonial (1961–1974) expôs de forma brutal a falência moral, política e estratégica do Estado Novo. Cerca de 800 mil portugueses mobilizados, mais de 8 mil mortos, dezenas de milhares de feridos e traumatizados, aproximadamente 20% do orçamento do Estado absorvido pelo esforço de guerra. Enquanto outros países investiam em educação, ciência e bem-estar social, Portugal sacrificava gerações numa guerra sem solução política, contra o mundo e contra a História.
As mulheres tinham uma posição subalterna, não apenas no âmbito laboral, mas também na esfera familiar e social. A Constituição de 1933 e demais legislação, reforçava a ideia de que o lugar da mulher era em casa a cuidar da família, subjugada à autoridade do marido ou do pai. O acesso à educação secundária e superior era muito restrito, a participação política inexistente, os direitos civis eram severamente limitados. Mulheres casadas não podiam exercer atividades profissionais sem autorização do marido.
Os saudosistas ignoram deliberadamente esta realidade. A ideia de que “naquele tempo havia ordem” falha ao não reconhecer que essa ordem se baseava em hierarquias de género, a violência doméstica era bem aceite com um singelo “entre marido e mulher não metas a colher”. Recordar o passado com rigor implica reconhecer que as mulheres foram privadas de direitos fundamentais, algo que não pode ser romantizado sem desrespeitar a sua história e a luta pela igualdade que se seguiu.
O actual saudosismo do Estado Novo não nasce por acaso, alimenta-se do descontentamento social, da desigualdade persistente e da crise de confiança nas instituições democráticas, é um projecto político claro de normalização do autoritarismo, quando se diz que “naquele tempo havia respeito”, é preciso responder sem rodeios, não era respeito, era medo. O respeito imposto pela repressão não é virtude, é submissão.
Sem dúvida a liberdade de expressão é um pilar da democracia, aceitar esse pilar e essa liberdade não obriga a tratar a mentira como opinião legítima. Branquear uma ditadura, negar a repressão ou elogiar um regime que violou sistematicamente direitos humanos não é pluralismo, é desinformação. O debate faz parte da democracia, mas a verdade é fundamental para a manter.
Não queremos o Estado Novo de volta. O Estado Novo foi censura, repressão, pobreza, guerra e silêncio. Beneficiou poucos e excluiu muitos, roubou a gerações inteiras o direito de escolher, de criticar e de sonhar. A democracia portuguesa é imperfeita, desigual e exigente, mas é corrigível, a ditadura não o era.
Num tempo em que o autoritarismo volta a seduzir, recordar o passado com rigor não é ideologia. É responsabilidade política.
Não passarão!
Jacinto Furtado


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