A recente megaoperação policial realizada no Centro Comercial Babilónia, na Amadora, revela mais sobre o Estado do que sobre o Babilónia. É mais um caso que merece ser discutido, não pela sua eficácia, essa foi quase nula, mas pelo que revela de um modelo de segurança pública que se tornou excessivamente dependente da encenação. Uma intervenção que se anunciava “robusta” e “necessária”, acabou por expor uma fragilidade institucional profunda, a incapacidade do Estado de diferenciar o que é a força da razão daquilo que é a razão da força.
Num país onde a precarização urbana cresce, onde comunidades migrantes são frequentemente empurradas para margens sociais, onde a retórica da ordem pública volta a ganhar força, intervenções como esta não são meras operações de rotina, são sinais. Sinais de um Estado que, confrontado com problemas complexos, escolhe o caminho mais fácil, mostrar poder em vez de exercer autoridade, intimidar em vez de resolver, aparecer em vez de transformar.
Usemos o episódio do Babilónia como ponto de partida para um debate maior. Que tipo de policiamento queremos? Que tipo de Estado estamos a construir? A quem serve realmente este teatro permanente de força?
Os números não mentem, houve efectivamente uma enorme desproporção entre o aparato e os resultados. A operação no Babilónia mobilizou dezenas de agentes, diversas entidades, veículos de intervenção e a interdição total do espaço por horas. O tipo de aparato que normalmente associamos a riscos sérios, crime organizado, tráfico de pessoas, operações perigosas.
A expectativa criada foi a de um importante golpe contra criminalidade pesada, mas o resultado foi, objectivamente pífio, de escala mínima, mais uma montanha a parir um rato. Alguns autos administrativos, duas detenções por situação documental irregular e uma dezena de telemóveis recuperados. É o tipo de balanço que caberia numa fiscalização rotineira, não numa operação do género “mega”, muito menos numa que interrompeu a vida de centenas de pessoas.
A pergunta inevitável é, como justificar tanto para tão pouco? A resposta mais direta é muito simples, não se justifica! Quando a força usada supera milhares de vezes a relevância do resultado obtido significa que o verdadeiro objetivo não era o resultado. O verdadeiro objectivo era a demonstração!
Uma das dimensões sistematicamente ignorada em operações como esta é o impacto conduzido sobre quem depende do espaço para viver. O Babilónia não é apenas um centro comercial, é um ecossistema, pequenas lojas que garantem o sustento de famílias, trabalhadores migrantes que ocupam empregos precarizados, serviços informais que respondem a necessidades que a economia formal não satisfaz, clientes de baixo rendimento que usufruem da acessibilidade do espaço, redes comunitárias transnacionais que ali se estruturam.
Ao cercar o edifício e ao aplicar fiscalizações indiscriminadas, o Estado tratou todos, comerciantes, clientes, trabalhadores, como potenciais suspeitos. O resultado foi, perda de rendimentos, ansiedade entre populações já vulneráveis, reforço de um clima de intimidação institucional, aumento da distância entre as forças de segurança e a comunidade.
A operação, longe de proteger estas pessoas, deixou-as mais isoladas.
Há uma explicação que fica por dar. Porque não foram investigadas as caves? Reside aqui o ponto mais comprometedor de toda a intervenção. Há anos circulam denúncias, debates públicos e preocupações locais sobre atividades irregulares nos espaços subterrâneos. Qual o motivo para que numa operação tão ostensiva, como esta, não se tenha tocado precisamente nesses locais? Não houve mandados, não houve buscas dirigidas, não houve qualquer esforço aparente para investigar áreas frequentemente apontadas como críticas.
Do ponto de vista técnico/policial, isto não faz sentido. Do ponto de vista simbólico, faz demasiado sentido. Entrar em lojas visíveis rende imagens. Descer a caves onde se poderia não encontrar nada, ou encontrar algo difícil de gerir, não rende. O espetáculo tem regras próprias, a primeira é evitar zonas onde a realidade possa contrariar a narrativa.
Este não é um caso isolado. Para compreender verdadeiramente o que aconteceu no Babilónia, é preciso reconhecer que isto se insere num padrão histórico maior, tanto em Portugal como noutros países europeus. Operações de grande visibilidade em zonas estigmatizadas, foco desproporcional em imigrantes e populações racializadas, ações coreografadas cujo objetivo partidário, mediático ou institucional supera o objetivo de segurança. Reforço de um “Estado performativo” que governa através da imagem.
E, por mencionar questões de imagem, o aproveitamento político/partidário deste tipo de acções é evidente. Há sempre actores políticos a aparecer nas redes sociais alcandorando-se nos resultados das operações, sem nunca os mencionar, dando a entender um enorme sucesso e, claro, o seu putativo envolvimento em tudo. Sendo triste não deixa de ser risível.
Em Portugal, episódios semelhantes têm ocorrido na Cova da Moura, no Bairro da Jamaica, em zonas comerciais de migrantes noutros municípios, em bairros onde se concentram comunidades cabo-verdianas, brasileiras ou do sul da Ásia. Como não recordar outra megaoperação pífia de grande aparato mediático, a operação na Rua do Benformoso, em Lisboa, que deu origem ao movimento “Não nos encostem à parede” operação aproveitada para que algumas cavalgaduras trotassem ao som dum grunhido “encostem-nos à parede”. O resultado desta operação, a da Rua do Benformoso, também ele foi exemplar, meia dúzia de canivetes apreendidos, uns quantos artigos contrafeitos e duas detenções.
Em todos esses casos, verificou-se um padrão, muito aparato, muitos flashes, poucas soluções. Será que operações com semelhante “empenho” levadas a cabo em São Bento, em muitos ministérios, em várias câmaras municipais e juntas de freguesia não teriam melhores resultados?
As operações deste tipo são apresentadas como resposta a “ilegalidades”, “insegurança”, “crime difuso”, mas raramente são acompanhadas de estatísticas sólidas que fundamentem essa narrativa. A palavra “ilegalidade” torna-se uma categoria flexível, funciona como justificação universal, funciona porque, no imaginário público, a associação entre imigrantes, espaços comerciais alternativos e crime é fácil de manipular.
O resultado é uma auto legitimação circular, o Estado diz que há ilegalidade, faz uma operação para mostrar que combate a ilegalidade, apresenta resultados mínimos, mas suficientes para afirmar que existia ilegalidade, os meios utilizados amplificam a imagem de “problema”, o ciclo repete-se. É um mecanismo político muito mais antigo do que parece e é profundamente eficaz, no mau sentido.
O que teria sido uma operação séria? Investigação prévia avançada, recolha de indícios e mandados específicos, intervenção proporcional, não indiscriminada, busca clara nas zonas subterrâneas, coordenação com serviços sociais, ações destinadas a melhorar condições de vida e não a produzir manchetes.
O que tivemos? Visibilidade sem profundidade, força sem estratégia, impacto negativo sem benefício público. Isto não é policiamento. É marketing policial.
Um país que confunde segurança com encenação está inevitavelmente a empobrecer o conceito de cidadania. A operação do Babilónia falhou naquilo que mais importa. Falhou à comunidade, falhou ao rigor, falhou à justiça, falhou à transparência, falhou ao princípio básico de usar o poder de forma responsável. Mais grave ainda, revelou um modelo de ação estatal que recorre repetidamente ao espetáculo como substituto da competência.
O Estado não deve aparecer como um gigante que se impõe a espaços vulneráveis. Deve aparecer como uma instituição que protege, investiga, constrói confiança e melhora vidas. Enquanto continuarmos a ver operações como esta, não estaremos a discutir segurança, estamos a discutir poder e a forma como ele se exerce sobre os mais frágeis.
Repetindo o que já foi escrito no início deste texto, o Estado tem de ter a capacidade de usar a força da razão e não a razão da força.
Jacinto Furtado



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