1. Há sempre dois partidos, mais antigos do que qualquer ideologia: os que estão bem e os que estão mal. Enquanto os últimos aceitam, com resignação, o desconforto do presente, o sistema parece estável. Mas quando o mal-estar se transforma em humilhação constante, a digestão do quotidiano dá lugar a uma cólera subterrânea, pronta a explodir.
2. Thomas Piketty, no seu Capital no século XXI, traça um paralelismo inquietante: a atual distribuição da riqueza assemelha-se àquela da segunda metade do século XIX, quando o liberalismo desregulado fez do capital o soberano, relegando o trabalho à insignificância. Na aurora do século XX, esse desequilíbrio gerou respostas políticas brutais: a democracia liberal, capturada pelo partido dos que estavam bem, parecia irreformável por dentro — e foi desinstalada por fora, com violência.
3. Hoje, como então, parece vigorar uma lógica pós-maquiavélica: qualquer meio é justificado em nome da governabilidade. O pacto democrático cede, passo a passo, à astúcia tecnocrática e ao oportunismo estratégico. O fim é sempre nobre; os meios, cada vez mais opacos.
4. Mas fora deste campo do cálculo político estão os poetas — que, quando falam de política, estão mais próximos dos profetas do que dos comentadores. Não oferecem diagnósticos, mas visões; não propõem reformas, mas pressentem ruturas. Como escreveu Cesário Verde, no seu poema ‘Deslumbramentos’, muito antes das revoluções sangrentas do século XX:
“Mas cuidado, milady, não se afoite,
Que hão de acabar os bárbaros reais;
E os povos humilhados, pela noite,
Para a vingança aguçam os punhais.”
A poesia vê o que o discurso técnico ignora: o momento em que o silêncio dos vencidos se transforma em faca. E nesse instante, já não é a razão que governa a história — é o ressentimento.
Luis Palma Gomes
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