O programa do XXV Governo Constitucional, apresentado pelo Executivo de Luís Montenegro, representa, em particular no que respeita às questões do Trabalho e da Segurança Social, não apenas um verdadeiro golpe antidemocrático, mas também uma autêntica declaração de guerra contra quem trabalha ou já trabalhou uma vida inteira.
Falta de legitimidade democrática e alinhamento com o Chega
Trata-se de um golpe antidemocrático porque grande parte das medidas agora apresentadas não figurava no programa eleitoral com que o PSD e o CDS se apresentaram às últimas eleições legislativas, e com base no qual solicitaram e obtiveram a maioria dos votos dos cidadãos eleitores. Ora, prometer uma coisa e, com base nessas promessas, angariar os votos dos eleitores, mas, logo que se conquista o poder, apressar-se a fazer algo muito diferente, configura uma fraude eleitoral que não deveria ser admitida numa sociedade verdadeiramente democrática.
Porém, o máximo que um partido como o PS, pela voz do seu putativo novo secretário-geral, José Luís Carneiro, achou por bem fazer foi balbuciar um aquietado e quase inaudível “pedido de explicações” ao Governo!?… É mesmo caso para se perguntar: com opositores ou adversários destes, quem precisa afinal de aliados?
Depois, aquilo que, em matéria de Trabalho e de Segurança Social – como, aliás, noutras áreas, como a da Imigração, por exemplo –, o Governo de Montenegro se prepara para executar é, afinal, o programa do Chega, formalmente sem o próprio Chega, mas alinhado o mais possível com as propostas e posições deste.
E representa a aplicação, em maior ou menor escala, das propostas de sempre do grande capital financeiro, propostas essas sustentadas pelas capitosas “justificações” dos seus teóricos, em particular os acólitos da famigerada escola neoliberal de Chicago, sobretudo quando se trata de recuperar de uma das suas crises ou de garantir a manutenção, ou até o aumento, dos fabulosos ganhos de quem vive do trabalho alheio.
Quatro Décadas de Ataques aos Direitos Laborais
Assim sucedeu com as reformas do chamado Direito do Trabalho “da emergência” ou “da crise” no final dos anos 70, na Europa (após a chamada “crise do choque petrolífero”) e, entre nós, no final dos anos 80, com as alterações à lei dos despedimentos: a sua facilitação, a criação de uma nova forma de cessação do contrato (o chamado despedimento por inadaptação) e o alargamento das formas precárias de contratação, desde logo com o contrato de comissão de serviço.
Mas foi sobretudo assim com o Código do Trabalho de 2003, do governo da AD de então, liderado pelo Primeiro-Ministro Durão Barroso e pelo Ministro do Trabalho, Bagão Félix. Tal Código, com vista a impor nas relações laborais um ainda maior desequilíbrio estrutural a favor dos empregadores, cirurgicamente atacou e enfraqueceu desde logo os organismos e mecanismos de acção e negociação colectivas (a actividade e as competências dos sindicatos e das comissões de trabalhadores) e também os instrumentos de luta colectiva, em particular o direito à greve.
Tratou, assim, de impor a caducidade da contratação colectiva sempre que esta não fosse, dentro do respectivo prazo de vigência, substituída por outra. E, pior ainda do que isso, tratou de tornar possível que a mesma contratação colectivapudesse conter condições menos favoráveis para os trabalhadores do que as previstas na lei, liquidando, desta forma, o chamado princípio (básico e essencial do Direito do Trabalho) do tratamento mais favorável ao trabalhador (ou favor laboratoris). A partir de então, os sindicatos foram deliberadamente colocados num autêntico “estado de necessidade”, tendo de escolher entre recusar a negociação, e ver os seus associados ficarem sujeitos à lei geral, ou, para tentarem evitar esse desfecho, sentarem-se à mesa para discutir propostas patronais de revisão que eram, todas ou quase todas, inferiores ao que a própria lei estabelecia!?
Obtida, por esta via, a destruição de grande parte da contratação colectiva e a consequente individualização extrema das relações de trabalho – tão desejada e apreciada pelos neoliberais… – o Código do Trabalho de 2003 tratou então, sempre em nome da “necessidade de flexibilização” das leis laborais, do combate à alegada “segmentação do mercado de trabalho” e do “aumento da produtividade e competitividade” da economia portuguesa, de assegurar e consagrar os seguintes vectores essenciais:
- Facilitação e embaratecimento dos despedimentos e dos contratos precários, em particular os contratos a prazo;
- Aumento dos tempos de trabalho através de mecanismos como os bancos de horas, os regimes de adaptabilidade e as isenções de horário de trabalho (IHT) sem quaisquer limites de número de horas;
- Redução dos direitos ou condições de natureza remuneratória, designadamente com o abaixamento do valor do trabalho suplementar ou prestado em dias de descanso;
- “Flexibilização” (leia-se, modificabilidade pelo patrão) de horários, de locais e de funções
Uma década mais tarde, as brutais reformas laborais da Tróica, entre 2012 e 2014, com um novo governo da AD (desta feita, o Executivo Passos Coelho/Paulo Portas), seguiram exactamente o mesmo rumo e foram justificadas com argumentos idênticos: a alegada necessidade de combater a pretensa – e nunca demonstrada – excessiva rigidez da legislação laboral; o invocado combate à segmentação do mercado de trabalho (procurando igualar, não por cima, mas por baixo, os direitos e condições legal ou contratualmente assegurados, diminuindo-os ou retirando-os a quem deles ainda fosse titular); e a “moralização” e apertada fiscalização na atribuição e manutenção dos subsídios e prestações sociais, mantendo as já existentes e aprovando medidas como:
- Nova facilitação e drástico embaratecimento dos despedimentos e dos contratos precários (tendo, por exemplo, as indemnizações ou compensações de antiguidade passado a ser de apenas 19 dias, e, depois de somente 12 dias de salário base por cada ano de casa);
- Aumento ainda mais drástico dos tempos de trabalho através da alteração e alargamento dos regimes dos bancos de horas e de adaptabilidade e com a eliminação de alguns feriados;
- Nova diminuição das condições retributivas, designadamente as relativas à remuneração do trabalho suplementar;
- Fortíssima restrição no acesso a direitos e prestações sociais, tais como os subsídios de doença e de desemprego, o rendimento social de inserção (RSI) ou o complemento solidário para idosos (CSI), do que resultou a exclusão de tais “transferências sociais” para centenas de milhares de cidadãos pobres.
Significativamente, em 2020, o primeiro dos direitos sociais a ser suspenso pela declaração do Estado de Emergência, no contexto da epidemia da covid-19, foi precisamente o direito à greve, o mesmo que agora se pretende restringir.
Em 2025, aquilo que o Governo da AD agora apresenta como “Programa de Governo” não passa de uma autêntica “Troika – parte 2” em toda a sua extensão, recorrendo, mais uma vez, aos mesmíssimos chavões e aos mesmíssimos conceitos propagandísticos de há décadas: “combater a segmentação do mercado de trabalho”, “maior flexibilidade dos regimes laborais”, “aumentar a produtividade e competitividade das empresas” e “clarificar, desburocratizar e simplificar os regimes legais” (sic, p. 200 do Programa).
Assim, e desde logo quanto à greve, o Governo prepara-se para restringir drasticamente a principal forma de luta colectiva dos trabalhadores. Fá-lo sem revelar, de forma clara, o que afinal se propõe fazer – o que é, só por si, significativo. E fá-lo também repetindo, em abstracto, uma ideia que já consta da versão actual da lei: “equilibrar de forma mais adequada o exercício do direito à greve com a satisfação de necessidades mais impreteríveis” (pp. 200 e 203). Na prática, isso só pode significar o alargamento, ou mesmo a governamentalização, da definição dos serviços mínimos e o aumento da possibilidade de recurso à requisição civil. O objectivo é óbvio: inutilizar, na prática, esse direito e essa arma de luta fundamental dos trabalhadores e procurar, por essa via, quebrar-lhes a capacidade de resistência e de luta.
Ainda no domínio das relações colectivas de trabalho, e retomando uma afirmação já feita aquando da aprovação do Código do Trabalho de 2003, o Programa do Governo volta a falar em “redinamizar a contratação colectiva” (p. 203). No entanto, mantém intactas quer a caducidade da contratação colectiva quando esta não é substituída por outra, quer a destruição do princípio do favor laboratoris, permitindo assim que, em várias matérias, a contratação colectiva possa (continuar a) conter tratamento menos favorável aos trabalhadores do que o previsto na lei.
Além disso, sob a falácia oca de “equilibrar a protecção dos trabalhadores com uma maior flexibilidade dos regimes laborais, designadamente em matéria de tempo de trabalho, direito a férias, bancos de horas” (p. 203), o que realmente se antevê são as medidas do costume: ainda maior facilitação dos despedimentos, em particular dos despedimentos colectivos; proliferação dos contratos precários; aumento dos tempos de trabalho; e imposição de trabalho extraordinário, pago, quando muito, em singelo; e a revogação de grande parte das medidas aprovadas em 2023 sob a chamada “Agenda do Trabalho Digno”, em especial a – tão desejada pelos patrões – revogação da proibição de se efectuarem despedimentos colectivos de trabalhadores para os fazer substituir por “prestadores de serviços” (mais precários e mais baratos).
Deste modo, o que sob a capa de “clarificar, desburocratizar e simplificar os regimes legais” em matérias como a organização do tempo de trabalho, a transmissão de estabelecimento e o layoff (p. 200), o que se está a fazer é encobrir medidas da mesma natureza das que, desde há décadas, têm vindo a fragilizar os direitos laborais.
A tão apregoada “compra de dias de férias” (p. 203), para mais sem se explicar como é que ela se fará, pode – e deve – presumir-se que será através da compensação com trabalho extraordinário pago em singelo, sem os respectivos acréscimos legais. Trata-se, portanto, de uma autêntica mina para os empregadores, que, a troco de mais uns dias de férias, conseguem trabalho extra pago como se fosse normal, e ainda por cima com um regime a definir por acordo entre as partes (as quais, como bem sabemos, são estruturalmente desiguais no contrato de trabalho), “acordo” esse que, no fim de contas e por tal razão, não passará da vontade do empregador.
Num país em que mais de um terço de todo o Produto Interno Bruto (PIB) provém do sector da chamada economia informal ou não declarada – ou seja, que funciona completamente à margem do Direito do Trabalho, dos Tribunais do Trabalho, da ACT, e onde o que predomina e vigora é a lei da selva –, o Programa do Governo de Montenegro não apresenta qualquer perspectiva, menos ainda qualquer medida efectiva, de combate sério à verdadeira calamidade que é a contínua prática de fraude à lei e fuga ao Direito do Trabalho, impunemente cometidas por meio de ilegítimos artifícios como os falsos “recibos verdes” ou os contratos de falsa prestação de serviços.
A anunciada possibilidade – por meio de um acordo que, numa relação desigual e assimétrica por natureza como é a de trabalho, representa quase sempre a vontade da parte mais forte, o patrão – de pagamento por duodécimos (integrados nos salários pagos mensalmente) dos subsídios de férias e de Natal constitui uma nova e dupla falácia. Por um lado, cria a falsa ideia de que o salário é mais elevado do que ele realmente é. Por outro, o seu pagamento ao longo de 12 meses torna ainda maior a erosão do poder de compra provocada pela inflação.
Como se tudo isto já não bastasse, num país em que continuam a ocorrer cerca de 200 mil acidentes de trabalho oficialmente reportados por ano (fora, consequentemente, os que ocorrem no referido sector da “economia informal”), e em que são, regra geral, bastante deficientes as condições de trabalho, é também muito significativo que não haja, neste Programa de Governo, uma só palavra sobre Segurança e Saúde no Trabalho ou sobre combate à sinistralidade laboral.
Austeridade social
E quanto às prestações sociais, em particular ao subsídio de desemprego, o Governo da AD adopta, de facto, a política e a propaganda demagógica do Chega sobre o combate aos por este chamados “subsídio-dependentes”. Retoma-se, assim, a lógica de culpabilizar os desempregados pela sua situação e de restringir ao máximo o seu acesso ao subsídio ou à respectiva manutenção. É isso, precisamente, que significa – pelo menos desde os tempos da Troika – “rever o regime de protecção social na eventualidade de desemprego, de forma a torná-lo mais justo e transparente, incentivando a reentrada no mercado de trabalho” (p. 202). Ou seja, e como já foi dito, trata-se de dificultar a concessão e a manutenção do subsídio de desemprego, reduzir a sua duração, e, quem sabe, voltar a impor aos desempregados medidas absolutamente humilhantes e vexatórias, como as obrigatórias apresentações periódicas.
Ora este tipo de medidas, num país em que já menos de metade dos desempregados reais têm direito ao dito subsídio de desemprego, em que este tem, regra geral, um valor muito baixo, e em que um milhão de trabalhadores empregados estão em risco de pobreza ou de exclusão social, significará, inevitavelmente, um aumento explosivo das mesmas pobreza e exclusão social em Portugal. Voltamos, pois, aos tempos do “Se não estás bem, emigra!” ou do “Não sejam piegas!” de Passos Coelho, ou ainda do tristemente célebre “Ai aguentam, aguentam!” do banqueiro Ulrich…
Mais ainda: num país de salários e pensões de miséria, em que a remuneração média horária no Continente (segundo os próprios e oficiais Quadros de Pessoal do Ministério do Trabalho) era, em 2023, de 6,88€, e em que o custo médio da hora de trabalho correspondia a apenas 48,8% da média da Zona Euro, o objectivo do Governo, em matéria de salário mínimo nacional, é o seguinte: Que o mesmo passe a ser de… 1.100€… em… 2029!
Conclusão
Como se vê deste Programa de Governo, aquilo que o Executivo de Luís Montenegro reserva aos trabalhadores portugueses, ainda que sob a capa das já mais que conhecidas justificações “económicas”, é a manutenção dos salários e das pensões muito baixas, o aumento dos tempos de trabalho, a flexibilização dos horários e dos locais de trabalho, a liquidação dos direitos colectivos (com o direito à greve à cabeça) e a ainda maior restrição do acesso às prestações sociais que, no presente, são o que salva cerca de dois milhões de pessoas de tombarem na mais extrema pobreza. Se isto não é uma verdadeira declaração de guerra, o que é então?
Mas a esta guerra declarada pelos grandes interesses económicos e financeiros – através do Governo do PSD e do CDS, com a política do Chega e o apoio de toda a Direita parlamentar e extra-parlamentar – devem os trabalhadores opor a sua própria guerra: unidos, organizados e firmes. Nenhum direito foi, ao longo da História, conquistado pelos trabalhadores sem ser pela sua luta. Nenhum direito, agora, será mantido, assegurado ou conquistado também sem esse mesmo combate: permanente, convicto, organizado e muito decidido.
A luta continua, pois!
António Garcia Pereira
O programa deste governo é um verdadeiro atentado aos direitos laborais.
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