Sócrates e a “Operação Marquês” – reflexões sobre o processo

Entendo que o julgamento e todo o processo da chamada “Operação Marquês” devem merecer uma atenção e uma reflexão muito mais aprofundadas do que o mero comentário ou o simples folclore em torno dos aspectos incidentais deste ou daquele episódio do mesmo processo – aspectos esses que, aliás, fazem esquecer o que de negativo se passa, todos os dias, com os processos de inúmeros cidadãos anónimos… É, pois, com esse objectivo que aqui coloco (de novo e pela enésima vez…) alguns dos pontos que considero essenciais relativamente à Justiça e, em especial, à Justiça Criminal.

As consequências da “batota” na Justiça

Antes de mais, e até como resposta à demagogia de certas críticas que invariavelmente surgem sempre que se procura levar a cabo um exame mais atento e profundo das coisas, impõe-se sublinhar, e deixar absolutamente claro, que tenho, desde sempre, a posição de que todos aqueles que cometem crimes (e, em particular, crimes públicos e de gravidade, como os crimes de corrupção, por exemplo) devem ser por eles condenados, desde que, num processo justo, equitativo e leal, se tenha feito prova, para além de qualquer dúvida razoável, dos factos por que vêm acusados e da sua culpabilidade.

Com efeito, a Justiça não pode “fazer batota”, não pode seguir a ideia de que “os fins justificam os meios” e não recorrer a truques ou artimanhas. E isto por duas razões essenciais: antes de mais, porque, se recorre a truques e subterfúgios, o Povo acaba, inevitavelmente, por perder a confiança na Justiça. Lembremos que os tribunais são órgãos de soberania, mas são os únicos que não possuem uma legitimidade democrática electiva, pois não votamos para eleger os titulares dos tribunais e, por isso mesmo, essa legitimação democrática exige, aqui, um ainda maior rigor no respeito pelos princípios.

Por outro lado, porque, se a Justiça “faz batota”, pode cometer erros – e erros com consequências fatais – como foi o caso (de que, aliás, também nunca se retiraram as devidas lições nem consequências) do Dr. Miguel Macedo e do Dr. Jarmelas Paulos, no processo chamado dos “Vistos Gold”. Foram ali apresentados, pública e repetidamente, durante meses (e até anos), como corruptos, com base em provas ditas “avassaladoras, para, muito tempo depois, e já com as respectivas vidas por completo destruídas, virem a ser absolvidos, quer na 1ª instância, quer no Tribunal da Relação de Lisboa.

Princípios fundamentais da Justiça de um Estado de Direito Democrático

A Justiça de um Estado de direito democrático caracteriza-se, ou deve caracterizar-se, por um conjunto de princípios legais e, sobretudo, constitucionais, que representam um verdadeiro progresso civilizacional e relativamente aos quais nãopode haver tergiversações, facilitismos e, menos ainda, incumprimentos. Estes princípios não podem ser desvalorizados nem esquecidos, nomeadamente sob o pretexto dos recursos ou incidentes que um determinado arguido, num dado processo, teve oportunidade e capacidade económica para desencadear. Estamos, assim, a falar de princípios essenciais como os seguintes:

  • Independência dos juízes, de todos em conjunto e de cada um, sendo proibida qualquer interferência ou influência (ou “acompanhamento”…) na sua função por parte seja de quem for, inclusive do próprio órgão de gestão e disciplina dos juízes, o Conselho Superior da Magistratura (CSM).
  • Devida fundamentação, de facto e de Direito, de todos os actos decisórios, e muito em particular dos que afectem direitos e interesses legítimos.
  • Duplo grau de jurisdição, ou seja, a possibilidade de uma decisão de um dado juiz poder ser sempre objecto de recurso para uma instância superior, composta por pessoas mais experientes e conhecedoras.
  • Fiscalização jurisdicional de todos os actos praticados num processo (ou seja, por um juiz – única entidade constitucionalmente dotada de poderes jurisdicionais), designadamente num processo criminal, e, portanto, também dos actos do Ministério Público.
  • “Juiz natural”, que significa que cada processo deve ser atribuído ao juiz que, nos termos de uma lei anterior, é o competente para aquela questão e, havendo mais do que um nessas circunstâncias, determinado por sorteio, não podendo, assim, ser objecto de atribuições manuais e/ou de escolhas circunstanciais e pontuais ao sabor de interesses, quer de fora, quer até de dentro da própria máquina da Justiça.
  • Presunção de inocência de todos os arguidos até ao trânsito em julgado (isto é, até se verificar a natureza definitiva) da sentença de condenação, princípio este constitucionalmente consagrado no art.º 32.º, n.º 2, da Constituição da República, mas que, como se viu recentemente, a cultura dominante no Ministério Público, e até o próprio Procurador-Geral da República, persistem em desprezar e violar.
  • Respeito escrupuloso por todos os direitos e garantias de todos os intervenientes processuais e, em particular, dos arguidos, porque estes estão em risco de sofrer uma condenação que pode, inclusive, implicar a perda da sua liberdade.
  • Garantia do segredo de justiça, quando seja esse o regime do processo em causa, impedindo assim que, por meio da sua violação, se propiciem julgamentos antecipados na praça pública, julgamentos esses tão precipitados quanto infundados. 

Os ingeríveis “mega-processos”

Os chamados “megaprocessos”, como o da “Operação Marquês” – com cento e tal volumes, centenas e centenas de testemunhas, dezenas de milhares de horas de gravações e documentos – são processos absolutamente ingeríveis e, por isso mesmo, acabam sempre, inevitavelmente, por se arrastar durante anos e anos nos tribunais, muitas vezes sem resultados práticos. Mas a verdade é que esses processos têm servido dois objectivos fundamentais, que não são admissíveis e, por isso, não devem ser esquecidos nem, tão-pouco, mais tolerados. 

Por um lado, possibilitam sempre grandes “operações mediáticas” e a já referida formação de juízos (ou melhor, de “julgamentos”) na fogueira da praça pública, esmagadores e muito impressionantes, sobretudo quando esses juízos são facilitados ou até impostos pela “máquina trituradora” das sempre cirúrgicas e sempre impunes violações do segredo de justiça, ou, pior ainda, por um sistema de verdadeiros “vasos comunicantes” entre certos sectores da Justiça e certos órgãos da comunicação social, vazando para o público apenas aquilo que convém a um dos sujeitos processuais (a acusação). 

Por outro lado, os megaprocessos têm também servido não só para esconder erros e incompetências da investigação, como também para promover, de forma contínua, a imagem pública e a fama dos respectivos titulares, apresentados como uma espécie de super-heróis – os chamados super-procuradores e super-juízes… – e como os grandes, para não dizer mesmo os únicos, campeões da luta contra a criminalidade mais complexa.

Prestação de contas pela Justiça

A Justiça – onde o 25 de Abril verdadeiramente nunca entrou, e onde os juízes dos Tribunais Plenários do fascismo puderam concluir tranquilamente as suas carreiras, mantendo-se ainda hoje muitos dos tiques de autoritarismo próprios daquela época – habituou-se a não prestar contas ao Povo, em nome do qual os tribunais exercem o poder soberano. Mas a verdade é que tem mesmo de passar a prestá-las, designadamente pelas deficiências e incompetências na investigação, em especial nos casos de ilícitos criminais mais graves, pelos erros de julgamento, pelos abusos de poder, etc. A apresentação regular ao Parlamento, e a pública discussão dos competentes relatórios de actividades, bem como a alteração da própria composição e competências dos Conselhos Superiores (da Magistratura e do Ministério Público), não podem mais deixar de ser seriamente discutidas e equacionadas. 

Justiça e separação de poderes

Em nome do princípio da separação de poderes, os outros poderes, designadamente o Legislativo e o Executivo, não devem poder interferir na actividade do Poder Judicial. Porém, também é certo que a Justiça não deve poder interferir na actividade política. Lastimavelmente, já o fez, e por demasiadas vezes. 

É o caso do parágrafo “assassino” constante do comunicado da anterior Procuradora-Geral da República, que levou à demissão do então Primeiro-Ministro e à queda de um Governo sustentado por uma maioria absoluta, sob a insinuação da existência de fundadas suspeitas da prática de crimes de corrupção por parte de António Costa. Tudo isto quando, na realidade, já todos percebemos que o Ministério Público está, neste momento, à espera do momento ideal para arquivar o processo. Até porque o próprio António Costa já foi ouvido (embora apenas ao fim de demasiado tempo) nos autos em questão, sem que tenha sido constituído arguido, como seria legalmente obrigatório caso existissem contra ele as ditas “fundadas suspeitas”.

Mas o mesmo sucedeu também com todo aquele espectáculo mediático e de meios (inclusive aéreos) que levou à queda de um governo regional da Madeira, para depois, e com os arguidos detidos muito para além das 48 horas constitucionalmente fixadas, toda a construção do Ministério Público ruir como um baralho de cartas. E tal sucedeu igualmente com o verdadeiro escândalo que foi o anúncio público, por parte da Procuradoria-Geral da República, e em plena campanha para as últimas eleições legislativas, de uma alegada “averiguação preventiva” do Ministério Público, visando Pedro Nuno Santos.

Ora, a este propósito, é desde logo necessário dizer – com toda a clareza – que “averiguações preventivas” destinadas, não a prevenir a prática de crimes, mas sim a investigar (e investigar fora de um processo judicial!) factos já ocorridos, constituem uma ilegalidade e uma inconstitucionalidade completas. Ainda assim, o Ministério Público e o Procurador-Geral da República insistem repetidamente na sua utilização.

Por outro lado, no caso concreto de Pedro Nuno Santos, tratava-se de pretensos factos que já haviam sido objecto de investigação anterior, num outro processo que correu termos no Departamento de Investigação e Acção Penal do Porto e que concluíra com o respectivo arquivamento. Todavia, a verdade é que foi efectivamente feito o referido anúncio formal – pela própria Procuradoria-Geral da República e em plena campanha eleitoral, repete-se! – e esse anúncio produziu os seus estragos no contexto das eleições. Só depois destas é que veio, afinal, a notícia do seu arquivamento.

Cumprimento dos prazos processuais

Tem também de ser definitivamente implementada e imposta uma cultura e um sistema jurídico que assegure este cumprimento, também por parte da própria Justiça. 

É que, actualmente, aquilo a que assistimos é a uma realidade em que os prazos fixados na lei para a prática de certos actos são obrigatórios apenas para os cidadãos, sejam eles, no processo criminal, o arguido ou o queixoso, e, se porventura estes (ou os respectivos mandatários) os ultrapassarem, perdem, inapelavelmente, o respectivo direito. Isto, enquanto, se o Ministério Público tem um prazo de oito meses para concluir um inquérito e leva oito anos, ou dez, ou doze… nada acontece! Tal como também nada acontece se um juiz tiver trinta dias para proferir a sentença e levar trinta meses. Está ainda, aliás, por fazer uma demonstração séria, fundada e isenta, de que a excessiva duração dos processos se deva à actuação dos cidadãos, em particular dos arguidos e dos seus Advogados. Tanto mais quanto, de acordo com o Código de Processo Penal, a grande maioria dos recursos apenas sobe a final, depois da decisão da 1ª instância.

Ora, esta imposição de que os prazos judiciais sejam para cumprir por todos, sem excepção (incluindo Procuradores e Juízes), é também uma exigência essencial de um processo justo e equitativo. Trata-se de um princípio fundamental, repetidamente proclamado pelo Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, e que tem sido desrespeitado ao longo de grande parte dos processos judiciais, designadamente no próprio processo da “Operação Marquês”.

A imprescindibilidade constitucional da fase de instrução

Significa tudo isto que, sem prejuízo do acerto de aspectos muito pontuais – por exemplo, o de, em certas circunstâncias, aos recursos para o Tribunal Constitucional, sobretudo quando interpostos já depois de duas ou três decisões judiciais consecutivas no mesmo sentido, poder eventualmente não lhes ser atribuído efeito suspensivo –, não é, porém, de todo aceitável a lógica segundo a qual os processos se resolvem (e a sua celeridade e, sobretudo, a sua justiça se garantem…) através da redução, senão mesmo da eliminação, dos direitos e garantias da defesa, nem com o enterro definitivo da fase de instrução.

Aliás, convém recordar aqui que a (já de si bastante discutível) constitucionalidade da existência de uma fase pré-judicial chamada “inquérito” – em que o Ministério Público faz o que bem entende, ou o que não entende, e por isso não presta contas a ninguém – só pode ser sustentada com base na existência efectiva de uma fase subsequente: a fase de instrução. Trata-se de uma fase que, obrigatoriamente, decorre perante um juiz, e que visa permitir que o cidadão que não concorda com a decisão do Ministério Público – seja o arguido, porque foi acusado, seja o queixoso, porque não houve acusação – possa levar o processo à apreciação de um juiz, enquanto entidade independente (coisa que o Ministério Público, por definição, não é), para que ele observe as provas que existem – ou que não existem –, ordene as diligências que entenda adequadas à descoberta da verdade (ainda que apenas indiciária), e decida, com base nelas, se existem ou não elementos suficientes que justifiquem a ida daquela pessoa a julgamento.

Deste modo, se – como pretende, por exemplo, o Conselho Superior da Magistratura – se anula por completo, ou até se extingue, a fase de instrução (que, aliás, já se encontra hoje em larga medida reduzida a uma formalidade, senão mesmo a uma farsa), isso significará a irremediável inconstitucionalidade do modelo de processo penal que temos vindo a adoptar entre nós, e que tantos abusos tem, afinal, propiciado.

A advocacia como função essencial à administração da Justiça

Enfim, se o juiz ou a juíza que preside ao julgamento é, de facto, a entidade encarregada da gestão do processo e da própria audiência de julgamento, importa, todavia, deixar claro que o juiz não é um “superior hierárquico” dos advogados. Estes têm um papel imprescindível – aliás, constitucionalmente estabelecido e garantido, desde logo no art.º 20º e no art.º 208º da Constituição – na defesa dos direitos dos cidadãos. Estão presentes no processo, e designadamente na audiência de julgamento, não para agradar ou ser simpáticos para com quem a dirige, mas sim para actuarem de acordo com tudo aquilo que, em sua consciência, entendem dever fazer em defesa dos direitos e interesses dos seus constituintes. E fazem-no no âmbito daquilo que não é sequer um direito dos advogados, mas antes um seu elementar dever deontológico.

E, por isso, quando se confunde a gestão e a direcção dos trabalhos do julgamento com manifestações de autoritarismo – designadamente com interrupções do uso da palavra por parte do Advogado ou com interrogações ou exclamações do estilo: “Estamos entendidos?” – impor-se-á dizer também ao julgador deste processo, como, aliás, a qualquer outro, que a toga do advogado é feita da mesma fazenda que a beca dos juízes, e que estes não são “chefes” nem capatazes dos advogados. Essa é uma das grandes lições que sempre nos ensinaram enormes vultos da advocacia, como Ângelo de Almeida Ribeiro, Adelino da Palma Carlos e António Pires de Lima. E é uma lição que também os cidadãos, e sobretudo os Advogados, nunca devem esquecer!

Em suma

Uma decisão condenatória que culmine um processo em que os factos foram investigados de forma correcta, eficaz e competente, e no qual se respeitaram, leal e escrupulosamente, todas as regras, todos os princípios e todos os direitos, designadamente os da defesa, será sempre uma decisão legítima e merecedora do respeito dos cidadãos. Se, nesse processo, não se procurou ganhar “na secretaria” (ou seja, na praça pública), nomeadamente por via de violações do segredo de justiça, aquilo que não se conseguiu ganhar “em campo” (isto é, no próprio processo), então essa decisão não apenas se impõe ao respeito colectivo, como também reforça a legitimidade punitiva do Estado perante comportamentos altamente censuráveis, que, por isso mesmo, merecem ser punidos.

Aceitar, e permitir, o contrário será regressar a lógicas e práticas inquisitoriais, e abrir caminho ao império do arbítrio e dos poderes de facto, em que todos estaremos em risco, mesmo aqueles que hoje se julgam a salvo, ou que até se vangloriam dos erros e dos abusos… apenas se, e enquanto, eles estiverem a bater à porta dos outros!

E creio que era isto, afinal, que se deveria analisar e debater, tão serena quanto seriamente, acerca de qualquer processo judicial – o da “Operação Marquês” ou qualquer outro… 

António Garcia Pereira

2 comentários a “Sócrates e a “Operação Marquês” – reflexões sobre o processo”

  1. Armando Alves diz:

    O campo pequeno nunca foi devidamente cheio, os ditadores nunca emigraram, os sindicatos passaram a ser uma forma de emprego, os tribunais ganharam autonomia e poder, são um estado dentro do estado, inclusivé com leis próprias, (não têm escrutínio popular), liberdade e ser livre, nunca foi explicado ao povo, nas escolas, na comunicação social, nas empresas, e,
    quem mexe com a instituição é silenciado.
    Antonio Costa,
    Galamba,
    Sócrates,
    Antonio Guterres,
    ………………
    A revolução foi dos militares, nunca do povo.
    Quem cá estava antes de 1974 continua e mantém a religião e o dedo acusador, disfarçado de melhor amigo do povo.
    “Povo, és e serás o que te derem se o receberes. Mas tens, sempre tiveste, a opção de não aceitares”

  2. Licínio Maia Azedo diz:

    Subscrevo inteiramente. Embora não tenha idade para ter medo. O que se passa no funcionamento dos órgãos da justiça mete medo a qualquer cidadão comum.

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