A Liberdade

Desconfiamos dos imigrantes. Julgamos que nos querem roubar. Esse medo talvez exista porque sabemos que um dia fomos lá longe à terra deles roubá-los. Venham comigo para dentro de uma curta chávena de história. Houve um tempo, numa vida passada, vivi em Manhattan com vista para o Hudson. Corria o ano de 2002. Visitei várias vezes os escombros do “Ground Zero”, partilhei lágrimas ao ver espalhadas pelas estações de metro os retratos dos mais de três mil seres humanos que pereceram naquela manhã que mudou o mundo menos de um ano antes da minha chegada.

Com os habitantes daquela majestosa cidade de néons, palcos, écrans gigantes, prédios de arquitectura de ficção científica a desafiar a gravidade, ambulâncias em constante passagem com buzinas a zurzir-nos os ouvidos as vinte e quatro horas do dia, passeei nos seus bairros, encontrei-me com o Atlântico em Long Beach, assisti a concertos gratuitos de ópera no Central Park sentada em capulanas trazidas de Moçambique, apaixonei-me por Brooklyn, embalei-me nos clubes de jazz e absorvi o que podia daquela cultura até engordar. Resumindo, caí tonta de quatro pelo fascínio da big apple – o fruto que se dava aos cavalos, na antiga tradição com as corridas, naquela grande pólis-ilha.

Uma das visitas mais fascinantes – naturalmente rodeada de segurança apertada – foi a Ellis Island, o ponto de chegada de imigrantes. Pretos, brancos, mestiços, amarelos, de todas as geografias do planeta queriam fazer-se presentes naquela que era considerada a terra de grandes riquezas e com elas grandes oportunidades e sucesso. O chão está prenhe de histórias de imigrantes naquela ilhota de boas vindas. Se lá forem, sentem-se a olhar o rio e imaginem quantos sonhos, quantas vidas se prepararam ali mesmo, como eu fiz.

Noutra latitude, como observadores passivos de todos os imigrantes que chegavam, ficaram os povos Índios confinados em reservas. Os Europeus imigrantes tinham chegado, roubado e depredado as suas terras. A louca história do mundo parece um “catch 22”…não é? Logo ali ao lado, na Ilha da Liberdade conta-se mais uma história. A estátua concebida pelo escultor Francês Auguste Bartholdi tem uma estrutura metálica projectada por Gustave Eiffel, o famoso engenheiro. Foi o presente Francês a origem da primeira Constituição que dá o mote à Carta dos Direitos Humanos, da Liberté, Egalité e Fraternité, para celebrar a Independência Americana da corôa Britânica. Numa mão ergue-se uma tocha, símbolo da Liberdade do povo norte americano do seu colono, noutra uma tábua com a declaração da Independência. A corôa representa a sabedoria, nela abertas, as janelas para as riquezas da terra, os sete raios representam os sete oceanos e os sete continentes.

Noutras latitudes do continente das oportunidades, os abençoados índios que sabiam das riquezas e das possibilidades de uma vida digna, não foram tidos nem achados, pelos americanos nem pelos franceses, no simbolismo daquela estátua. A sua história apenas viria a constar nos filmes de cowboys numa terra roubada ao México lá na longínqua Califórnia uns anos mais tarde. Porém, alguém foi sensível a uma parte importante da história. Um pedido foi feito a Bartholdi. Tinha que esconder algo, disseram-lhe. O escultor havia pendurado no mesmo braço que carregava a tábua, uma longa corrente com um grilhão partido. O símbolo da libertação do povo negro, levado como escravo para a terra das oportunidades, por sua vez roubada aos Índios. Aquela terra afinal albergava milhões de seres humanos submetidos a uma das leis mais abomináveis da história humana – a Escravatura.

O final da Escravatura apenas acontece no final da guerra civil com Abraham Lincoln, duzentos e quarenta anos passados de submissão de milhares de corpos e gerações sem pátria. A Liberdade estava representada na corrente partida. Bartholdi não gostou do pedido de retirar o grilhão do braço da estátua, no entanto a política obrigou-o. Num golpe pensado, com um gesto de arte marcou a sua posição. A estátua foi inaugurada a 4 de Julho de 1884. Foi montada por partes e Bartholdi ganhou. Pisado pelo pé esquerdo inspirado na deusa romana Libertas, com noventa e três metros de altura, uma corrente e um grilhão partido, mostram-se.

A história foi escondida. Bartholdi mostrou-a. Dizem as línguas de outras férteis imaginações, que a estátua inicial pensada pelo escultor representava uma mulher preta. Por mais que tentem, sempre que querem esconder, tapar e retirar a Liberdade, vem sempre o espírito humano, artístico, nobre, indomável, dar-lhe visão. No final, a Liberdade vence sempre.

A História conta-nos também esta versão.

Pensem na História dos Índios, dos Africanos, dos Aborígenes. Como podemos hoje falar de medo de Imigrantes se todos somos e um dia fomos?

Apaga-se a História? 

Um dia ela rompe um grilhão debaixo de um pé.

Anabela Ferreira

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