Da Saúde ao Subterrâneo: um percurso político assinado com carimbo partidário

Na vida política portuguesa, há nomeações que não se explicam — revelam-se. E há carreiras que, longe de serem uma sequência lógica de mérito e competência, se desenrolam como novelas mal escritas, mas meticulosamente encenadas. O recente episódio da ex-Secretária de Estado da Saúde, agora nomeada Presidente do Metropolitano de Lisboa, é mais um capítulo dessa longa narrativa de favores cruzados, silêncios convenientes e recompensas discretas.

Recorde-se que a sua passagem pelo Ministério da Saúde não foi propriamente pautada pela excelência. Bem pelo contrário. Durante o seu exercício, multiplicaram-se os escândalos e as polémicas: atrasos no atendimento hospitalar, a crise nos serviços de urgência, greves sem resposta, falta de profissionais, falhas nos planos de contingência, e um progressivo colapso da confiança pública no sistema. Sob a sua tutela, a Saúde conheceu alguns dos momentos mais críticos da última década. Não admira, por isso, que tenha sido afastada. A sua saída foi exigida por múltiplas vozes — públicas, políticas e até internas ao próprio partido — como uma medida de contenção de danos. Mas, como tantas vezes acontece, o afastamento foi apenas uma manobra de superfície. Um corte estético para salvar o organismo mais profundo: a própria Ministra.

Hoje, passada a espuma dos dias e apagadas as memórias mais inflamadas pelo tempo e pelo ruído mediático, eis que surge o prémio — em forma de nomeação. Presidente do Metropolitano de Lisboa. Uma escolha que, no mínimo, levanta sobrancelhas. Que ligação há entre a gestão da saúde pública e a condução estratégica de uma empresa de transportes urbanos? Nenhuma que resista ao crivo da razão ou da competência técnica. Mas no xadrez da política nacional, as peças movem-se por outros critérios.

Perguntar-se-á, com legítima ironia: será para “lhe tratar da saúde”? Ou estará agora incumbida de “tratar” do Metropolitano da mesma forma que tratou do SNS? A nomeação, mais do que um insulto ao mérito, é uma afronta à memória dos que exigiram responsabilização. É também um sinal claro de que o sistema se protege a si mesmo. Afastada, sim, mas com almofada. Expurgada das luzes do escrutínio direto, mas promovida discretamente na sombra. Como se a punição política tivesse um prazo de validade — e passado o tempo certo, se transformasse em prémio.

O que está em causa aqui não é apenas um nome. É o princípio. É a forma como se governa e se nomeia em Portugal. Cada vez mais, os cargos de topo não são entregues a quem sabe, mas a quem serve. Não se nomeia pela competência, mas pela lealdade. Não se premia o mérito, mas o silêncio cúmplice. Os cartões partidários, os alinhamentos internos, os serviços prestados (sobretudo os invisíveis) contam mais do que qualquer currículo.

Neste cenário, o cidadão comum vê-se novamente desprotegido. Olha à sua volta e constata que o mérito não basta. Que há uma elite política que se recicla, se protege e se promove mutuamente, indiferente à vontade popular, à memória coletiva e, sobretudo, ao princípio básico de responsabilidade. O resultado é um sistema cada vez mais descrente de si mesmo, onde a indignação já nem é surpresa, é rotina.

Assim, do Ministério da Saúde ao Metropolitano, vai um passo só: o da conveniência política. E, quem sabe, da promessa cumprida em silêncio.Porque em Portugal, por vezes, o prémio pelos “bons serviços” não é dado a quem pelo país porfiou. É dado… aos amigos !.

Carlos Pereira Martins

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