Fascismo em horário nobre: O despedimento de Raquel Varela e a (não) contratação de Gonçalo Sousa

RTP é, como sabemos, uma empresa do sector empresarial do Estado, cuja missão consiste na prestação do serviço público de rádio e televisão

Nos termos do art.º 27.º da Lei n.º 27/2007, de 30 de Julho (Lei da Televisão e dos Serviços Audiovisuais a Pedido), a programação dos serviços de programas televisivos deve respeitar a dignidade da pessoa humana e os direitos, liberdades e garantias fundamentais, sendo proibida a difusão de conteúdos que incitem à violência ou ao ódio contra grupos de pessoas, ou contra membros desses grupos, em razão do sexo, raça, cor, origem étnica ou social, características genéticas, língua, religião ou convicções, opiniões políticas ou outras. Nos termos do art.º 34.º da mesma lei, os operadores de televisão devem garantir, na sua programação, a observância de uma ética destinada a assegurar o respeito pela dignidade da pessoa humana, pelos direitos fundamentais e pelos demais valores constitucionais. Além disso, o art.º 50.º da mesma lei estabelece que o estatuto e funcionamento dos operadores do serviço público de televisão devem salvaguardar a sua independência perante o Governo, a Administração Pública e os demais poderes públicos, bem como assegurar a possibilidade de expressão e o confronto das diferentes correntes de opinião, sendo um dos princípios fundamentais da sua actividade o respeito pelo pluralismo. Por seu turno, a Constituição da República Portuguesa, no art.º 39.º, n.º 1, alínea f), determina que cabe a uma entidade administrativa independente assegurar, nos meios de comunicação social, a expressão e o confronto das diversas correntes de opinião, reforçando assim o carácter constitucional do princípio do pluralismo.

Ora, não obstante todo este enquadramento legal e constitucional, a nova Direcção de Informação da RTP, presidida pelo jornalista Vítor Gonçalves (autor, em 2005, de uma conhecida biografia de Cavaco Silva), sob a eterna capa dos sempre insondáveis e sempre insindicáveis “critérios editoriais”, decidiu dispensar – leia-se, despedir – a Professora Raquel Varela das suas funções de comentadora da estação pública. 

Tratava-se de uma voz assumidamente de esquerda, mas reconhecidamente independente de qualquer partido ou poder político ou económico, corajosa, afrontadora dos interesses instalados e que sempre defendeu os princípios que considera correctos, remando contra a maré das narrativas do pensamento dominante, sobretudo em problemas tão graves e tão importantes como o das medidas administrativas e policiais adoptadas pelo Governo aquando da Pandemia da covid-19, a guerra da Ucrânia, o genocídio em Gaza e as principais medidas governamentais, mormente nas matérias de habitação, trabalho e saúde, etc. Em virtude dessa sua postura de espinha vertebral direita e de cabeça erguida, tornou-se – concordando-se ou não com todas ou parte das suas posições e opiniões – uma voz muito prestigiada e respeitada em toda a chamada sociedade civil. Tornou-se também num verdadeiro “alvo a abater” para toda a sorte de reaccionários e, em especial, de fascistas e de movimentos políticos mais retrógrados do nosso país, como o Partido Chega e os movimentos neo-nazis, como o “1143” de Mário Machado, o “Reconquista” ou o “Habeas Corpus”.

A eliminação dessa voz, corajosa e divergente, levada a cabo pela actual Direcção de Informação da RTP, para mais sem sequer invocar o habitual argumento das audiências, representa um atentado gravíssimo aos princípios democráticos do respeito pelo confronto das diversas correntes de opinião e pelo pluralismo, que deveriam ser essenciais em qualquer órgão de comunicação social, mais ainda numa televisão pública.

Porém, o carácter não apenas censório, odioso e reaccionário, mas também claramente ilegal e inconstitucional, desta medida de despedimento de Raquel Varela assume ainda maior gravidade – se tal é possível – quando a mesmíssima Direcção de Informação mantém, no mesmo programa, o comentador com que Raquel Varela debatia, Rodrigo Moita de Deus, que assim pode continuar livremente a difundir as suas ideias, por mais chocantes e bárbaras que sejam, como, por exemplo, a de que não haveria um genocídio em Gaza, porque, afinal, terão sido mortos “apenas” 70 mil palestinianos…

Mas a mesmíssima Direcção de Informação da RTP foi ainda mais longe e tratou de contratar, como comentador (!?), Gonçalo Sousa, um “influencer”, ex-membro do Chega, do qual terá saído por mero amuo pessoal, mas pelo qual foi candidato à Câmara de Oeiras em 2021 e a deputado nas legislativas de 2024. É patrocinado pela Prozis (propriedade do conhecido milionário Miguel Milhão) e é, sobretudo, amplamente conhecido pelas suas posições claras e abertamente fascistas, racistas, xenófobas, machistas. Produz e publica, com o despudor dos grunhos, as maiores barbaridades, como, por exemplo, as seguintes: “Se és mulher e ainda acreditas que ganhas menos do que um homem só por causa do teu sexo, tu não és oprimida, és burra”; ou “Se Portugal é assim tão racista porque é que há milhões de negros e indostânicos a tentar cá entrar?”. E, no congresso do Chega, em Santarém, elogiou aberta e entusiasticamente, entre outros, personagens como Marine Le Pen. Tudo isto é público e conhecido de toda a gente.

Acontece que, perante as inúmeras críticas e denúncias dirigidas à Direcção de Informação da RTP, esta veio afirmar que, afinal, reviu a sua posição e Gonçalo Sousa já não será comentador. Mas essa inflexão de última hora não apaga o significado do convite inicial, nem alguém poderá acreditar na pretensa incompetência de Vítor Gonçalves e da sua equipa, consistindo em não saberem quem estavam a contratar.

É que despedir Raquel Varela e convidar Gonçalo Sousa, que, aliás, até apareceu nas fotografias da sessão de apresentação da nova grelha da RTP, não foi uma distracção nem sequer um mero erro, ainda que muito grave. Antes, foi uma opção clara e consciente de cedência ou conivência com o partido de André Ventura e, se não se lhes tolher o passo (ainda que, para já, tal não tenha sucedido), decerto irá – como, aliás, os deputados do Chega reclamaram e prometeram na noite das últimas Legislativas – transformar o canal público de televisão num verdadeiro altifalante dos dislates boçais, dos discursos de ódio e das posições nazis, sobretudo sobre as mulheres, os ciganos, os pretos, os muçulmanos e os “esquerdalhos”, normalizando e banalizando, sem limites e sem rebuço, a redução a pó dos mais elementares princípios democráticos. Estamos, assim, perante mais do que uma evidente ilegalidade e inconstitucionalidade: é um autêntico, violento e arrogante atentado à Democracia, que não pode passar impune. 

E devemos, por isso, nós, cidadãos democratas, criticá-lo e combatê-lo por todos os meios, começando por interpelar todos os que têm responsabilidades, directas ou indirectas, nestas matérias – da Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) ao Presidente da República, da Comissão Parlamentar dos Direitos, Liberdades e Garantias a todos os Partidos e responsáveis políticos que se dizem democratas, do Provedor do Telespectador ao Conselho de Opinião da RTP – para que se pronunciem e tomem posição face a estes fascizantes desaforos e ao que eles representam. Porque, se assim não for, em breve teremos outro Gonçalo Sousa a entrar-nos porta dentro.

É preciso combatê-los igualmente, por todas as formas e em todos os momentos, confrontando e denunciando os seus autores, cúmplices e encobridores onde quer que apareçam e onde quer que se atrevam a falar de “Informação” ou de “Comunicação Social” e exigindo que, se reviram a decisão de contratação de Gonçalo Sousa, revejam também a decisão do despedimento de Raquel Varela.

Enfim, é preciso também combatê-los pelo alargamento do espaço público e democrático de discussão, apoiando e promovendo os debates de ideias, a publicação de jornais e revistas, os colóquios e as conferências em que estejam assegurados o pluralismo de posições, o debate de ideias e o confronto de propostas, em pé de igualdade e com recíproco respeito. Contra a mordaça e a censura fascizantes, saibamos, pois, cantar “Não há machado que corte a raiz ao Pensamento!”.

António Garcia Pereira

Um comentário a “Fascismo em horário nobre: O despedimento de Raquel Varela e a (não) contratação de Gonçalo Sousa”

  1. Al Goal diz:

    Realmente um comentário notável e sublime em defesa dos valores básicos da DEMOCRACIA. A TV Pública através desta nova direção de informação faz apanágio do posso ,quero e mando com resquícios fascinantes.
    Um grande bem haja Dr.Garcia Pereira

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