Carta aberta ao Presidente da República, ao Presidente da Assembleia da República e ao Primeiro-Ministro

Foi ontem, quarta-feira, 1 de Outubro, publicamente noticiado que, com base numa denúncia anónima, considerada no final de todo inconsistente, o Ministério Público se arrogou o direito de instaurar um inquérito-crime visando o juiz Ivo Rosa.

A instauração do dito processo terá ocorrido perto da data em que o mesmo juiz proferiu despacho de pronúncia e de não pronúncia no chamado processo da Operação Marquês, que tanto repúdio e oposição suscitou por parte do mesmo Ministério Público.

E terá durado cerca de três anos, durante os quais a vida profissional e pessoal do visado terá sido por completo devassada, com medidas como o levantamento do sigilo bancário, a intercepção de conversas, bem como operações de vigilância. Isto durante três anos — repete-se, três anos! —, sem que o juiz visado fosse notificado ou sequer informado do que quer que fosse, inclusivamente do próprio despacho final de arquivamento, de cuja existência, e logo do próprio processo, terá tomado conhecimento apenas através dos jornalistas.

E quando estes tentaram aceder ao mesmo processo, tal acesso foi-lhes negado pelo respectivo titular, tendo, após reclamação hierárquica, o próprio Procurador-Geral da República (que, recorde-se, era à altura da abertura do inquérito-crime, Procurador-Geral-Distrital de Lisboa) acabado por permitir o acesso a apenas duas (!?) páginas do referido despacho de arquivamento. Isto, enquanto o mesmo titular afirmava, para procurar justificar a denegação do acesso ao mesmo, que o processo era para ser destruído.

Ora, nos termos do n.º 6 do artigo 246.º do Código de Processo Penal, uma denúncia anónima só pode determinar a abertura de um inquérito se dela se retirarem indícios da prática de crime. Assim, se o mesmo inquérito é arquivado devido à “inconsistência” da dita queixa inicial, que não contém quaisquer indícios da prática de crime, a primeira questão que se deve colocar é a de saber por que razão se investigou então, e com recurso a tantos meios invasivos, o juiz visado e que garantias há de que a dita “queixa anónima” não tenha sido afinal fabricada pelos próprios investigadores ou por alguém a eles ligado?Por outro lado, aquilo que a lei permite e impõe, no n.º 8 do mesmo artigo 246.º do Código de Processo Penal, é a destruição da própria queixa, e somente quando esta não determinar a abertura de inquérito. E, por isso, a segunda questão que aqui se coloca é a das verdadeiras razões por que se pretenderia destruir agora todo o processo e, mais, se tem persistentemente procurado ocultá-lo ao máximo, com todo o tipo de pretextos, nomeadamente o da “protecção de dados pessoais” como se estes não pudessem ser expurgados da cópia processual disponibilizada.

Se um juiz de Direito, no exercício das suas competências, e cuja função está constitucionalmente protegida pelas garantias da independência, da irresponsabilidade e da inamovibilidade, pode ser objecto de uma conduta destas – a qual, para mais sem qualquer informação ou explicação, assume os contornos de uma intolerável perseguição e/ou retaliação — o que não poderá então suceder aos cidadãos comuns, sobretudo aos mais críticos e incómodos para o Ministério Público?

Enquanto se torna cada vez mais ensurdecedor o silêncio de chumbo do Procurador-Geral da República, do Conselho Superior do Ministério Público e do próprio Conselho Superior da Magistratura (pois que deverá ter havido despachos judiciais a autorizar as diligências mais gravosas), bem como das habitualmente tão diligentes e intervenientes associações sindicais de juízes e procuradores, a verdade, esmagadora e inquietante, é que uma actuação como esta, por parte do Ministério Público, representa um verdadeiro atentado ao Estado de Direito Democrático, a completa subversão do regular funcionamento das instituições democráticas e um intolerável abuso de poderes por parte de quem aparenta sentir-se acima da lei e dispensado de prestar contas ao Povo português daquilo que faz ou deixa de fazer.

Ao Presidente da República, na sua qualidade de garante, nos termos do artigo 120.º da Constituição da República, do regular funcionamento das instituições democráticas; à Assembleia da República e, em particular, à sua Comissão de Direitos, Liberdades e Garantias, como órgão legislativo por excelência e como fiscal do cumprimento da Constituição e das leis, por força dos artigos 161.º e 162.º da mesma Constituição; e ao Primeiro-Ministro, como Chefe do Governo, que é o órgão superior da Administração (artº 182º), o Povo exige, e a Democracia impõe, que tomem providências, imediatas e firmes, não só para a averiguação integral da verdade dos factos e para o sancionamento dos respectivos responsáveis, como para a promoção de medidas — designadamente de reforma do processo penal e do próprio Ministério Público — que assegurem que nunca mais um desmando destes, e seja com quem fôr, possa voltar a suceder.

António Garcia Pereira

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