Tal como já se vinha suspeitando, o Jornal Expresso de 25/12 noticia que, em 22/12/2021 – escassos oito meses depois de, no “Processo Marquês”, ter sido proferida a decisão instrutória pelo juiz Ivo Rosa, muito crítica da actuação do Ministério Público – este, pela mão do então Procurador-Geral Regional de Lisboa, Orlando Romano, ordenou, no processo n.º 58/21.9TELSB, às operadoras de telecomunicações que fornecessem a informação completa relativa a um conjunto de pessoas (num total de 98) que tinham falado com Ivo Rosa ao telefone durante mais de seis anos, entre 1 de Janeiro de 2015 e 31 de Julho de 2021. Mais exactamente, o Ministério Público quis saber (e soube) quem eram os titulares dos números de telefone em causa, as respectivas moradas, as datas dos telefonemas, a identificação do meio de pagamento utilizado para pagar as respectivas facturas e, no caso de o pagamento ter sido feito por Multibanco, quais as referências associadas aos pagamentos.
O objectivo, como noticiou o Expresso, era muito claro: identificar todas as pessoas com quem o juiz Ivo Rosa falara ao telefone ao longo desses mais de seis anos e recolher informações, designadamente através das referências de Multibanco, que permitisse pedir e obter os dados bancários dessas 98 pessoas. Entre elas contavam-se juízes desembargadores, incluindo membros do próprio Conselho Superior da Magistratura (que, todavia, se mantém igualmente mudo e quedo…), polícias e advogados.
Assim, um processo-crime instaurado pelo Ministério Público com base numa queixa anónima, vinda sabe-se lá de quem (e que o próprio agente do Ministério Público junto do Supremo Tribunal de Justiça viria a declarar absolutamente inconsistente) serviu para vasculhar não apenas a vida pessoal do juiz Ivo Rosa, mas também a de mais cerca de uma centena de pessoas. Por ora, não se sabe – e é isso que o mesmo Ministério Público quer impedir que se saiba – se essas pessoas foram igualmente sujeitas às mesmas medidas que o visado, ou seja, geolocalização, obtenção dos números das respectivas contas bancárias e posterior devassa, entre outras, etc., etc.
Estamos, pois, perante um gigantesco abuso de poder e a utilização das competências investigatórias para finalidades que nada têm a ver com o processo penal. E percebe-se agora, com toda a clareza, por que razão o Ministério Público queria e se preparava para proceder (de forma ilegal, pois a lei não o permite) à destruição do referido processo. Percebe-se igualmente por que é que o titular do inquérito negou, inicialmente, todo e qualquer acesso aos autos ao visado, o juiz Ivo Rosa, e por que é que, ainda hoje, o próprio Procurador-Geral da República continua a proibi-lo de consultar um total de 113 páginas do processo, bem como mais dois apensos.
Perante tudo isto, que juiz, ou titular de cargo público, com um processo ou procedimento que envolva – e, em particular, que contrarie – as posições e os interesses do Ministério Público, estará verdadeiramente livre para tomar a decisão que considere mais correcta, sabendo que, por causa dela, poderá ver toda a sua vida, bem como a dos seus familiares e amigos, completamente devassada? E para que mãos, e com que fins, vai toda a informação assim obtida?
Ora, não pode continuar a passar em claro a enorme gravidade desta forma de agir do Ministério Público, nem o silêncio completo que sobre ela se tem feito sentir. Uma e outra coisa mostram, aliás, muito claramente duas realidades: a primeira é que o Ministério Público se transformou não só num Estado dentro do Estado, como também em algo absolutamente irreformável por dentro; a segunda é que temos uma classe política maioritariamente caracterizada, ou por ter telhados de vidro, ou por ter medo deste poder oculto e incontrolado e que, por isso, em qualquer dos casos, cobardemente se aquieta e silencia.
Num Estado de Direito democrático não podem existir Inquisidores-mores do Reino, mesmo que de beca vestida, como não pode haver nenhum poder incontrolável e incontrolado, nem pode haver ninguém, mesmo titular de cargo público, que se julgue e actue como se fosse ética, moral ou legalmente superior ao comum dos mortais. Mas se os políticos não são capazes de pôr cobro a este desaforo, temos de ser nós, cidadãos comuns, a fazê-lo! Como? Exigindo as reformas legais necessárias para alterar este sinistro estado de coisas (nomeadamente, impondo uma maioria de não-membros do Ministério Público no respectivo Conselho Superior, assim como o fim da utilização abusiva das chamadas “investigações preventivas” e a fiscalização jurisdicional, pelo juiz de instrução, de todos os actos do Ministério Público durante o inquérito), denunciando sempre todos esses abusos, confrontando com firmeza os seus responsáveis e exigindo que dêem a cara e prestem contas publicamente!
António Garcia Pereira


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