O governamental “Anteprojeto de Lei da reforma da legislação laboral”, pomposamente denominado “Trabalho XXI”, constitui uma verdadeira proposta patronal de destruição do que resta dos direitos fundamentais dos trabalhadores.
Desde logo, tal “Anteprojeto”, ao corresponder aos desejos dos sectores patronais mais retrógrados e aos compromissos que Luís Montenegro terá assumido aquando dos encontros mantidos na última campanha eleitoral, não constava – muito menos na sua totalidade – no programa eleitoral com que PSD e CDS se apresentaram às mais recentes legislativas e com o qual obtiveram a maioria de votos, configurando, assim, um autêntico golpe anti-democrático.
Depois, e como o Governo já deixou claro, estas novas e desastrosas medidas avançarão aconteça o que acontecer em sede de Concertação Social, mesmo que, para a sua aprovação, o PSD precise dos votos não só da Iniciativa Liberal, como também (e sobretudo) do Chega, evidenciando, uma vez mais, que o enfatuado “Não é não!” se transformou rapidamente num “sim” cada vez menos envergonhado.
Por fim, e como tantas vezes sucede neste tipo de ofensivas, a chamada “reforma da legislação laboral” é apresentada envolta no brilho enganador de expressões pós-modernas e no recurso a argumentos que, embora aparentemente sedutores, são falaciosos e até manifestamente falsos. Assim, assistimos ao habitual desfile de chavões ditos com muita pompa e circunstância, mas com pouco ou nenhum conteúdo real, como “flexibilidade” ou “flexibilização”, “necessidade de adaptação”, “combate à segmentação”, “recusa dos preconceitos ideológicos”, “eficiência”, “competitividade”, “criação de valor”, “renovação das empresas”, “simplificação” e “desburocratização”, entre outros. São, aliás, exemplos claros desse estilo o powerpoint de apresentação do “Anteprojeto”[1], realizado no passado dia 24/07, e o artigo intitulado “O trabalho que o século XXI reclama”, assinado pela própria Ministra do Trabalho, Maria do Rosário Palma Ramalho, e publicado no Público no passado dia 06/09.
“Nova” reforma laboral, velha lógica neo-liberal
Mas, afinal, estamos perante um dos maiores ataques de que há memória aos direitos de quem trabalha ou de quem já trabalhou uma vida inteira. A chamada reforma laboral que o Governo AD prepara, aplicando também aqui ideias e propostas do Chega, vai, aliás, muito além do que fora inicialmente anunciado e traduz-se num conjunto de manobras de diversão (como a “compra” de dias de férias, os subsídios pagos em duodécimos e as faltas por luto gestacional, amamentação e aleitação), destinadas a desviar as atenções do essencial, para depois o Governo se mostrar “disponível” para rever esses pontos concretos. Trata-se, pois, da aplicação plena da velha lógica neoliberal, a mesma que presidiu à aprovação do Código do Trabalho em 2003. E um dos seus principais defensores foi – e continua a ser – o recém-nomeado Governador do Banco de Portugal, Álvaro Santos Pereira, ex-Ministro da Economia e do Trabalho do Governo de Passos Coelho, que muito recentemente chegou mesmo a defender uma revisão constitucional com vista a eliminar da Lei Fundamental a proibição dos despedimentos sem justa causa, sob o extraordinário argumento de que tal proibição constituiria o grande obstáculo à competitividade e à produtividade da economia portuguesa!
No fundo, trata-se da velha estratégia neoliberal da Escola de Chicago, da individualização máxima das relações de trabalho e da ideia de que só pode haver empresas estáveis e produtivas com trabalhadores ameaçados, constrangidos e permanentemente instáveis, preocupados em perder a sua fonte de subsistência e, assim, tornados disponíveis para aceitarem as mais degradantes e degradadas condições de trabalho, salariais e não só.
E que – sempre sob as tais frases pomposas ou expressões pseudo-técnicas, mas comunicacionalmente impressionantes, como as da flexibilidade ou flexibilização, produtividade, competitividade, eliminação das gorduras supérfluas, etc. – procura, afinal, a saída das crises do sistema capitalista à custa, sempre, dos mesmos: os trabalhadores. Sob a capa do combate à segmentação do chamado “mercado de trabalho” (isto é, à diferença, designadamente de salário e de estabilidade de vínculos entre os trabalhadores mais antigos e os mais jovens), o objectivo é fomentar a divisão entre eles e promover a igualização “por baixo”. Para tal, retira-se direitos aos que ainda os possuem, reduzindo a nada as respectivas condições.
As medidas de sempre, desde há décadas
E, por isso mesmo, as medidas defendidas e impostas por tal estratégia têm sido, no essencial, sempre do mesmo tipo. Desde logo, um ataque – e um ataque cerrado – às formas de organização e de luta colectiva dos trabalhadores e à contratação colectiva, procurando restringir, senão mesmo inutilizar por completo, o direito à greve, limitar a acção sindical e permitir que a contratação colectiva ainda existente possa, por um lado, caducar e, por outro, ter um tratamento menos favorável que o da própria lei. Em segundo lugar, e uma vez obtido por esta via o enfraquecimento dos instrumentos e meios de regulamentação colectiva das relações de trabalho, e imposta a máxima individualização destas, ou seja, a livre negociação entre duas partes substancialmente desiguais, passa-se à adopção de outras medidas:
– Reforço dos poderes do empregador em tudo o que respeite à definição do tempo e do local de trabalho, bem como das próprias tarefas exigíveis ao trabalhador.
– Facilitar e embaratecer ainda mais os despedimentos e a contratação precária, nomeadamente através dos contratos a prazo.
– Aumentar os tempos de trabalho, preferencialmente sem remuneração adequada.
– Diminuir os salários e as cláusulas de conteúdo pecuniário.
– Impor uma forte restrição do direito de acesso às prestações sociais (como o subsídio de desemprego, o subsídio de doença, o complemento solidário para idosos ou o RSI), e considerar algumas, ou mesmo todas essas prestações, como rendimentos, sujeitando-as assim a impostos.
Estas foram as medidas adoptadas na Europa no final dos anos 70 e, entre nós, no final dos anos 80, após a chamada crise do choque petrolífero. Repetiram-se no final dos anos 90 e, em Portugal, com o Código do Trabalho no início do século XXI. O mesmo sucedeu com a crise financeira que eclodiu a nível mundial a partir de 2008 e que, no nosso país, se traduziu nas tristemente célebres reformas laborais da Tróica.
E aquilo que o Governo de Luís Montenegro se prepara para fazer – e já afirmou que o fará, mesmo sem o apoio da Concertação Social – é, desde logo, um grande ataque ao direito à greve, procurando esvaziá-lo completamente de conteúdo através, nomeadamente, da fixação de serviços mínimos obrigatórios em todas as situações, que podem, afinal, transformar-se em verdadeiros serviços máximos.
Virá também a revisão dos actuais regimes de férias, com a chamada “compra” de dias de férias[2], do teletrabalho e do banco de horas. E, sob a invocação do combate à subsídio-dependência e da necessidade de incentivos ao trabalho, surgirá um aperto muito significativo no acesso aos subsídios de doença e de desemprego e, sobretudo, ao RSI – sempre sob a lógica de que, se os trabalhadores não trabalham, é porque não querem, porque são ociosos e preguiçosos, porque estão a tirar o lugar aos mais jovens e, por isso, não mereceriam sequer receber tais apoios sociais[3].
Nenhuma reversão do que é negativo
Significativamente, este “Anteprojeto” não reverte qualquer das medidas mais gravosas para os trabalhadores, sejam elas as originárias do Código de 2003, sejam as decorrentes das reformas laborais da Tróica. Entre estas contam-se – e para não ir mais longe – a possibilidade de a contratação colectiva conter condições menos favoráveis do que as da lei; a presunção de que, se o trabalhador recebe (porque dela precisa) a indemnização de antiguidade quando é atingido por um despedimento colectivo ou por extinção do posto de trabalho, é porque a aceita e, por isso, não a pode depois impugnar judicialmente; ou ainda o valor irrisório de tal indemnização, calculada à razão de 14 dias de salário base por cada ano de antiguidade. A tudo isto soma-se a drástica redução, para metade, dos já de si magros acréscimos remuneratórios devidos por trabalho extraordinário ou nocturno.
A cada inovação, um direito a menos
E onde o “Anteprojeto” procura inovar é, invariavelmente, para proteger e fortalecer a posição dos patrões e para prejudicar e atacar os direitos dos trabalhadores. Vejamos então de que forma:
Greve – Em clara violação da sua consagração constitucional (art.º 57º) e das exigências de necessidade, adequação e proporcionalidade de qualquer restrição sua, o n.º 1 do art.º 537º do texto impõe, sempre e necessariamente, independentemente de qualquer apreciação da situação concreta, a existência de serviços mínimos em qualquer empresa da lista do seu nº 2 – que, aliás, foi alargada a mais sectores, como os de cuidados de crianças e idosos, da segurança privada e até, sem qualquer concretização, os do “abastecimento alimentar” (abrangerá as pipocas e os gelados?). Visa-se, assim, garantir que, pela sistemática, extensa e mesmo “automática” fixação dos referidos serviços mínimos, o próprio direito à greve seja, na prática, eliminado, reduzindo os Tribunais Arbitrais, para efeitos da respectiva fixação, a uma mera formalidade.
Contratação colectiva – Se o Código do Trabalho – contrariamente ao que sucedia antes, inclusive no tempo do fascismo, em que uma convenção colectiva só deixava de vigorar quando era substituída por outra – já admitia a denúncia e a consequente caducidade das convenções colectivas, mas apenas ao fim de um período de “sobrevigência” de 12 a 18 meses, e existindo a possibilidade de arbitragem para apreciação quer da mesma denúncia, quer da suspensão do referido prazo de sobrevigência, tal possibilidade é agora eliminada pela revogação dos actuais art.º 500º-A e art.º 501º-A. É, assim, com a facilitação da denúncia da convenção pela parte patronal e a sua mais que provável caducidade, que os sindicatos são colocados no autêntico “estado de necessidade” de terem de optar entre negociar uma nova convenção com condições miseráveis – inclusive abaixo da lei – ou verem os trabalhadores seus associados, sem uma nova convenção e com a provocada caducidade da anterior, ficarem sujeitos à lei geral (o Código do Trabalho).
A tudo isto acresce ainda a atribuição, pelo art.º 497º, nº 1 do “Anteprojeto”, à entidade patronal, e não já aos trabalhadores, do poder de decisão sobre qual a convenção colectiva aplicável em caso de pluralidade de convenções, bem como o alargamento (previsto no art.º 514º) dos casos de arbitragem obrigatória, com a consequente e intencional redução do campo da negociação colectiva.
Por tudo isto, o que o Governo trata de fazer neste campo não é (como bem assinalou Leal Amado) revisitar e dinamizar, mas antes estiolar e trucidar a contratação colectiva.
Reforço da precarização contratual – Aumenta-se (art.º 148º, nº 1) o prazo máximo dos contratos a termo certo de 2 para 3 anos, e dos contratos a termo incerto de 4 para 5 anos (art.º 148º, n.º 5). Passa ainda a permitir-se a contratação a termo não só para situações de início ou lançamento de nova actividade, mesmo em empresas com mais de 250 trabalhadores [art.º 140.º, n.º 4, al. a)], como também para contratar, a prazo, quem nunca tenha trabalhado sem termo, ainda que para ocupar um posto de trabalho claramente permanente!
Simultaneamente, é eliminada (por força da revogação do actual art.º 112º, nº 6) a actual redução ou exclusão do período experimental nos casos em que a duração de estágio profissional, com avaliação positiva, para a mesma actividade e para empregador diferente, tenha sido igual ou superior a 90 dias nos últimos 12 meses.
Do mesmo passo, com as alterações ao art.º 89º-A, e através do fim da exigência das mesmas condições da admissibilidade da contratação a termo, aumenta-se drasticamente a precariedade dos contratos de trabalho com estudantes em período de férias. Ao mesmo tempo, aligeiram-se e facilitam-se (art.º 156º) os requisitos para o recurso ao trabalho intermitente.
Banco de horas individual – Muito significativamente, a proposta governamental recupera o famigerado “banco de horas individual” (que constava do primitivo art.º 208º-A do Código e fora, e bem, revogado pela Lei n.º 93/2019, de 04/09). Nos termos agora previstos, por mero “acordo” entre patrão e trabalhador – que este, se foi essa a condição para ter ou manter o emprego, tenderá a aceitar sempre, desde logo porque tal consta do regulamento interno da empresa (n.º 2) – a jornada pode ser aumentada em 2 horas por dia, podendo atingir as 50h semanais. Essas horas a mais seriam depois “compensadas” ou por redução noutras semanas, ou por pagamento em dinheiro, mas em singelo (nos termos do respectivo nº 6).
Despedimentos ilícitos – O “Anteprojeto” (art.º 392º) procura transformar em regra a (já de si constitucionalmente errónea) excepção à reintegração do trabalhador ilicitamente despedido. Presentemente, essa excepção é admissível apenas em micro-empresas (com menos de 10 trabalhadores) ou no caso de trabalhadores com cargo de administração ou direcção. Agora, essa excepção passaria a regra, passando a admitir-se a oposição do empregador à reintegração de qualquer trabalhador, em todos os tipos de empresa! Em suma, em caso de despedimento ilegal, em vez de se decretar o efeito normal – a subsistência do contrato e a consequente reintegração de quem foi indevidamente afastado por um acto ilícito – admite-se a consumação desse afastamento, desde que o empregador pague uma determinada indemnização.
Esta liberdade para expulsar todo aquele de quem não se gosta e a “monetarização” dos despedimentos ilegais, ambas promovidas pelo “Anteprojeto”, constituem não só uma violação grosseira da proibição constitucional (art.º 53º) dos despedimentos sem justa causa, como também uma claríssima demonstração dos reais objectivos deste violento ataque aos trabalhadores: transformá-los em precários, já que mesmo aqueles com vínculos aparentemente estáveis podem ser postos na rua de forma fácil e barata.
Terceirização de serviços – Muito significativamente também, é revogado o actual artigo (art.º 338º-A do Código) relativo à terceirização de serviços, que fora introduzido pela Lei n.º 13/2023, de 03/04, e que proibia o odioso e ilegítimo artifício de recorrer a essa mesma terceirização, isto é, à aquisição, junto de outras entidades (como empresas de trabalho temporário), de serviços externos para satisfazer necessidades que até então vinham sendo cumpridas por trabalhadores objecto de despedimento colectivo ou de extinção de posto de trabalho nos 12 meses anteriores.
Em suma, tratava-se de impedir o truque – tantas vezes utilizado! – de despedir trabalhadores efectivos, com determinado nível de condições, designadamente salariais, invocando o encerramento do serviço ou unidade orgânica em que prestavam actividade, para logo de seguida atribuir o desempenho da mesma função a uma prestadora de serviços que, não raras vezes, contratava depois os mesmos trabalhadores, entretanto despedidos, mas agora com vínculos precários e salários reduzidos para metade.
E, mais, a proposta governamental contém também a revogação do actual artigo (art.º 498º-A) que garantia que, em caso de terceirização legítima (neste caso) de serviços, o novo prestador tivesse de aplicar a convenção colectiva mais favorável em vigor na empresa de origem. Impedia-se, assim, que empresas prestadoras, designadamente sem contratação colectiva e sem património, pudessem impor condições degradadas de trabalho e de salários aos trabalhadores abrangidos pela referida terceirização.
Na mesma linha de intervenção, o “Anteprojeto” procura, claramente, dificultar (art.º 286º-A) o exercício de oposição, pelos trabalhadores, à transmissão da empresa ou estabelecimento, passando a determinar que tal oposição “só é eficaz se existir fundamento relevante” e exigindo que a falta de confiança do trabalhador seja “objectiva” e respeite não já, como até aqui, à política de organização do trabalho do adquirente, mas à própria pessoa deste.
É, pois, a impunidade de todo o tipo de artifícios – que, à sombra das “transmissões” e das terceirizações e à custa dos trabalhadores, têm sido levados a cabo – que o “Anteprojeto” do Governo pretende precisamente garantir e assegurar.
Total precariedade para os trabalhadores dos sectores da segurança, da limpeza e da alimentação
De uma gravidade extrema é o modo como o Governo pretende também satisfazer os patrões de sectores como os da segurança privada, refeitórios e cantinas, limpezas, etc.
Com efeito, até aqui e como resultado de uma prolongada luta dos trabalhadores desses sectores e das suas organizações, em caso e por efeito de transmissão da empresa ou estabelecimento onde os mesmos trabalhadores vinham prestando actividade, fosse por adjudicação a contratação dos respectivos serviços por concurso público ou por outro meio de selecção, no sector público ou no privado, nomeadamente de vigilância, limpeza ou refeições, por força do nº 10 do artº. 285º do Código do Trabalho eles transitavam automaticamente para a nova empresa adjudicatária com todos os seus direitos, designadamente tipo de contrato, antiguidade, categoria e salários.
Ora o que o Anteprojeto faz pela calada é pura e simplesmente revogar o supra-citado nº 10. Fazendo assim com que, a partir de agora, quando o contrato de prestação de serviços de uma dessas empresas de vigilância, de “catering” ou de limpeza chega ao seu termo, os trabalhadores que ali trabalhavam vão para a rua e a nova empresa seja livre de os ir ou não contratar e, em caso afirmativo, com contratos a prazo, antiguidade “0” e metade do salário anterior!Se isto não é satisfazer o patronato e favorecer a precariedade e baixos salários dos trabalhadores, não sei como se lhe há-de então chamar.
Trabalhadores das plataformas digitais – No que respeita a estes trabalhadores, como os da Uber e da Glovo, por exemplo, o actual art.º 12º-A (que consagra a presunção de contrato de trabalho para estes casos) sempre suscitou forte oposição por parte dessas multinacionais. Ora, não obstante Portugal estar vinculado à sua consagração legal por força da Directiva Comunitária nº 2024/2831, relativa à melhoria das condições de trabalho em plataformas, o Governo decide fazer a vontade a essas mesmas multinacionais e consagra o oposto daquilo que a referida Directiva o obriga a fazer!
Assim, elimina os factos-base da actual presunção do art.º 12º-A e remete para um absolutamente ultrapassado art.º 12º, que desconhece em absoluto as novas formas de organização e de prestação de trabalho dependente determinadas pelas novas tecnologias, em particular da época digital. E produz a falácia de, esquecendo propositadamente todos os verdadeiros e reais indícios da laboralidade (como o facto de o prestador não ter estrutura empresarial própria e inserir a sua actividade em estrutura alheia, que é quem fixa os preços dos serviços e a remuneração do prestador), introduzir no mesmo art.º12º-A, n.º 2, um pseudo-novo indício que, fazendo apelo a algumas das características próprias do trabalho nas ditas plataformas, que passam por alguma “liberdade operacional” dos respectivos trabalhadores, aponta afinal para a inexistência de contrato de trabalho!?
O que o “Anteprojeto” do Governo faz neste campo é satisfazer o patronato das multinacionais das plataformas[4], não hesitando, para tal, em recorrer ao artifício e, mesmo, à fraude à lei relativamente à Directiva Comunitária, cuja transposição, aliás, Portugal tinha antecipado com a Lei n.º 13/2023, de 03/04, através da introdução do supracitado art.º 12º-A.
Mas há mais ainda! Depois de, pelo n.º 3 do actual art.º 337º, ao estabelecer a nulidade de tal tipo de cláusulas, se ter procurado pôr termo ao escândalo das declarações abdicativas de tudo e mais alguma coisa, isto é, de todos e quaisquer créditos (passados, presentes e futuros) relativos à entidade empregadora, a outras empresas do grupo e até a gerentes e administradores, que os trabalhadores eram frequentemente constrangidos a assinar[5] para poderem receber os créditos legalmente devidos (como os relativos a férias, subsídios e respectivos proporcionais e até indemnizações legais), o “Anteprojeto” vem agora admitir as mesmas declarações abdicativas, desde que a assinatura do trabalhador seja notarialmente reconhecida, como se tal formalidade fosse impeditiva de qualquer daqueles abusos.
Formação Profissional – Também muito significativamente, e desmentindo a propaganda governamental da aposta no reforço da qualificação do trabalho, o “Anteprojeto” reduz (art.º 131º, n.º 2) para metade (20) o número de horas de formação contínua a que o trabalhador tem direito nas empresas com menos de 10 trabalhadores.
Luto gestacional e pagamento de subsídios em duodécimos – A retirada ao pai do direito (actualmente consagrado no art.º 38º-A, n.º 2) a faltar até 3 dias úteis consecutivos por motivos de luto gestacional, impondo-se-lhe agora que, quando muito, goze do direito a faltar, sem retribuição, para assistência a membro de agregado familiar (nos termos do art.º 252º), é um exemplo paradigmático da lógica deste “Anteprojeto”. Outro exemplo é o pagamento em duodécimos dos subsídios de férias e de Natal (previsto nos art.º 263º, nº 2 e art.º 264º, n.º 3, do “Anteprojeto”), expediente destinado a simular a (falsa) existência de salários mensais mais elevados e que, prolongando-se por 12 meses, sujeita o respectivo valor a uma ainda maior erosão pela inflação.
Estes são aspectos aparentemente pontuais, ou até de menor relevância, mas que têm o condão de evidenciar ainda mais a obsessão patronal assumida pelo Governo em retirar e liquidar direitos dos trabalhadores e ajustar contas com estes e com as suas conquistas, reduzindo-os à condição de autênticos servos. E que, aliás, serviram para o Governo, depois de os anunciar e defender publicamente, vir manifestar “disponibilidade” para os alterar, numa claríssima manobra destinada a desviar as atenções dos pontos essenciais.
Extinção da criminalização do trabalho não declarado e recibos verdes – Para que dúvidas não restem acerca do que os patrões e o Governo entendem por “combate à precariedade laboral”, de que fala a “Exposição de Motivos”, o “Anteprojeto” também põe fim à criminalização – introduzida em 2023 no Regime Geral das Infracções Tributárias – do trabalho não declarado. Trata-se de uma realidade onde não entram nem leis, nem Tribunais do Trabalho, nem ACT, e que, segundo o próprio Observatório de Economia e Gestão da Fraude da Faculdade de Economia do Porto, representará entre 25% e 35% de todo o PIB português[6].
E mais: os trabalhadores a recibos verdes que eram considerados, para efeitos da protecção laboral e social (prevista no art.º 10º do Código, e nos termos do art.º 140º da Lei nº 110/2009), como juridicamente independentes mas economicamente dependentes quando tivessem 50% dos seus rendimentos anuais pagos pela mesma entidade, passam agora (nº 2 do art.º 10º do “Anteprojeto”) a beneficiar dessa protecção apenas se essa percentagem for de 80%.
Não contente com tudo isto, o Governo pretende introduzir, a propósito da acção de reconhecimento de contrato de trabalho (criada para combater os “falsos recibos verdes”), um nº 2 no actual art.º 186º-M do Código de Processo do Trabalho, segundo o qual se o trabalhador – nomeadamente porque pressionado pelo patronato nesse sentido – “declarar a sua falta de interesse no prosseguimento da acção, o Juiz decreta a extinção da instância”.
Estatuto da ACT – E, também, o que se prevê com a revogação dos nºs. 3 e 4 do art.º 11º da Lei nº 102/2001 é a extinção do mecanismo de intervenção da Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT), através do qual o Inspector do Trabalho, ao detectar indícios de um despedimento ilícito, notificava a entidade patronal e, na falta de regularização, comunicava o facto ao Ministério Público.
Convém referir, ainda e uma vez mais, que em nenhuma das ocasiões em que foram aplicadas (em particular no Código do Trabalho de 2003 e nas reformas laborais da Tróica) as receitas neo-liberais produziram qualquer aumento, quer do emprego, quer da qualidade do trabalho, quer da produtividade, que, aliás, é um problema dos patrões e da falta de investimento produtivo[7].
As graves omissões do “Anteprojeto”
Num país onde a sinistralidade laboral formalmente declarada ronda, há anos a fio, o escandaloso número de 200 mil de acidentes de trabalho por ano; onde se estima que os recibos verdes fraudulentos (disfarçando de meras prestações de serviços verdadeiras relações de trabalho subordinado, assim eximidas à aplicação das leis laborais) ascendam a cerca de meio milhão; onde o assédio moral no local de trabalho, puro e duro, é impunemente praticado como “ferramenta de gestão” e atinge mais de um milhão e meio de trabalhadores[8]; e onde os salários são muito baixos (e, logo, também os custos salariais horários totais para as empresas, sendo, segundo o Eurostat, 18€ para Portugal, contra 34€ na UE-27 e 37€ na zona euro)… relativamente a todas estas autênticas chagas sociais, nem uma palavra – muito menos uma medida – se encontra, no “Anteprojeto” ou fora dele.
É, pois, forçoso concluir que a contra-reforma laboral em curso por parte do Governo da AD, com o apoio da IL e do Chega, visa, sob o argumento dos aumentos da produtividade, do emprego e da qualidade do trabalho – que nunca se verificaram com tal tipo de medidas! – enfraquecer e tolher a acção, a organização e a contratação colectivas; tornar mais baratos os despedimentos; facilitar a contratação precária; aumentar a dimensão e a desregulação dos horários de trabalho; dificultar (ainda mais) a conciliação da vida pessoal e familiar de quem trabalha com a sua vida profissional e com o exercício dos seus direitos de parentalidade; e viabilizar as operações de “externalização” para empresas sem contratação colectiva, sem o mínimo de condições de trabalho e até sem património.
Desencadeada desta forma a guerra aberta contra os trabalhadores, a estes, e às suas organizações, só lhes resta enfrentá-la e vencê-la!
É tempo de dizer basta, e de transformar a indignação em força colectiva, pois nenhuma reforma regressiva resiste quando a resposta dos trabalhadores é firme e unida. Chegou o momento em que a luta não é apenas para resistir: é para conquistar futuro!
António Garcia Pereira
[1] Onde se refere “perfil excessivamente rígido e tradicional”, “entraves à competitividade económica e produtividade das empresas”, “necessidade de mais adaptação à economia digital” e “falta de dinâmica na contratação colectiva”.
[2] Um “rebuçado” com sabor amargo, tratando-se afinal apenas de mais 2 dias de faltas consideradas justificadas, mas sem retribuição. Veja-se o art.º 249º, al. k) do “Anteprojeto”.
[3] A reedição da lastimável diatribe, do tempo da Tróica, contra a chamada “peste grisalha”.
[4] A “modesta” Uber multiplicou por 9 o seu volume de lucros, atingindo, a nível mundial, a astronómica soma de 2,7 mil milhões de euros.
[5] Como sucedeu com os trabalhadores da TAP, que, na iminência do despedimento colectivo, aceitaram rescisões por mútuo acordo.
[6] Em 2022, por exemplo, essa percentagem estimada da Economia Não Declarada foi de… 34,87%!
[7] Aliás, como demonstram os estudos do economista Eugénio Rosa, segundo o Eurostat, em 2012, a chamada produtividade por trabalhador em Portugal correspondia a 76,8% da média dos países da UE, enquanto o custo hora de trabalho representava 54,5% da média europeia. Em 2022, a produtividade era de 76,7% da UE, mas o custo hora de trabalho diminuíra para apenas 52,8%. E, segundo o Instituto Nacional de Estatística (INE), entre 2019 e 2021, os lucros das empresas não financeiras aumentaram 27,3%, enquanto a despesa com remunerações subiu apenas 7,8%!…
[8] Segundo um estudo recente do Laboratório Português de Ambientes de Trabalho Saudáveis (Labpats), em 2024, o assédio moral atingiu 27,7% da população activa portuguesa, que é de cerca de 5,5 milhões de trabalhadores.
Nota da Redacção: Este texto foi actualizado a 25 de Setembro de 2025
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