O Tempo da Justiça é o Tempo da Liberdade

Começo com uma constatação simples, mas profundamente perturbadora, o sistema judicial português sofre de um mal crónico, antigo, até agora nunca curado. A sua incapacidade de cumprir os prazos legais fixados para a duração dos inquéritos criminais. Não é uma mera falha administrativa. Não é uma questão de gestão interna de tribunais ou de recursos humanos. É, antes de tudo o mais, um problema constitucional. Um problema de direitos, liberdades e garantias. É uma ferida aberta na dignidade do Estado de direito.

Num inquérito que se arrasta durante anos sem fim, o que está em causa não é apenas o tempo do processo, é o tempo da vida das pessoas, é o tempo do cidadão que vive sob suspeita, é o tempo da vítima que espera por justiça, é o tempo em que o cidadão tem a vida suspensa, é o tempo de uma sociedade que começa a desconfiar que a justiça portuguesa tem relógios que não batem à mesma hora para todos. Vivemos num sistema em que os prazos legais existem, mas não vinculam. Existem no papel, mas não na prática. São, dizem-nos, “indicativos”. 

Indicativos???

Como se a Constituição fosse um manual de boas intenções, como se o número 4 do artigo 20 da Constituição da República Portuguesa, que garante a todos o direito a uma decisão em prazo razoável, pudesse ser interpretado como uma recomendação facultativa. Não é uma recomendação facultativa, é um direito fundamental, com força vinculativa directa, reconhecido pela nossa Lei Fundamental. Não há zonas cinzentas, não há excepções corporativas. Quando o Estado investiga sem limite temporal, está a violar a Constituição. Quando o sistema judicial permite que isso aconteça, sem sanção, está a subverter o próprio Estado de direito.

Mas o problema é ainda mais grave. Em vez de se reconhecer esta falha, o sistema tem cultivado uma espécie de ficção institucional. Uma ficção segundo a qual os prazos estão ali, na lei, apenas para enfeitar o Código do Processo Penal. O Ministério Público, dizem-nos, pode ultrapassar esses prazos desde que… não se note muito. O problema é que se nota e, quando se nota, o remédio é sempre o mesmo, mais tempo, mais prorrogação, mais inquérito. É o paradoxo da celeridade sem fim.

Entre 6% e 8% dos inquéritos e procedimentos criminais em Portugal terminam por prescrição ou por perda de objeto, quase sempre em resultado da falta de diligência processual. Esta percentagem, que à primeira vista pode parecer modesta, traduz-se em números alarmantes, entre 18 a 25 mil processos que acabam sem decisão sem culpa provada nem inocência reconhecida. São crimes que ficaram por julgar, vítimas que ficaram sem resposta, suspeitos que viveram anos sob a sombra da incerteza, e um Estado que, no fim, falhou a todos. 

Cada processo prescrito representa não só a derrota da justiça, mas também a erosão da confiança pública nas suas instituições. A prescrição, quando resulta da inércia ou da desorganização do sistema, não é uma consequência natural do tempo, é um fracasso estrutural. Esse fracasso tem rostos, os cidadãos que esperam por uma decisão e nunca a recebem, as vítimas que perdem o direito à reparação e os arguidos que, mesmo inocentes, carregam indefinidamente o estigma da suspeita. A justiça que não chega a tempo deixa de ser justiça, é apenas burocracia com toga.

Esta prática não é apenas juridicamente errada, é moralmente inaceitável. É a consagração da irresponsabilidade institucional. Se um cidadão ultrapassa um prazo legal, sofre as consequências, mas se é o Estado a ultrapassá-lo, inventa-se uma doutrina, a dos prazos indicativos. Assim se instala a desigualdade, uma desigualdade profundamente inconstitucional, que viola o artigo 13.º da Constituição e o princípio elementar de que a lei deve vincular todos, sobretudo aqueles que a aplicam.

Há ainda um outro fenómeno, mais insidioso, mais perigoso, talvez o mais grave de todos, o dos inquéritos que se eternizam quando envolvem figuras públicas. Aqueles processos que parecem nunca terminar, mas que, curiosamente, ganham vida em momentos muito específicos, em períodos de agitação política, em vésperas de eleições, ou quando certos debates públicos ganham demasiada intensidade. Surgem então as fugas selectivas de informação, sempre “oportunas”, sempre “anónimas”, que alimentam o julgamento mediático e condicionam o espaço público.

O segredo de justiça transforma-se em segredo de ninguém.

Outro efeito profundamente corrosivo desta cultura de inquéritos sem fim é a devassa da vida privada. Sob o pretexto da investigação, o inquérito transforma-se, demasiadas vezes, numa autêntica pesca de arrasto, onde se recolhe tudo, comunicações, dados pessoais, fragmentos de vida, sem critério, sem limite, sem respeito pelo princípio da necessidade e da proporcionalidade. O que é recolhido, ainda que nada tenha a ver com o crime investigado, permanece arquivado, disponível, pronto a ser usado, mais tarde, noutro contexto, quando se revelar “útil”. 

O caso recentemente conhecido do Juiz Ivo Rosa é, infelizmente, paradigmático, uma oportuna denúncia anónima, uma investigação que se prolonga, que invade, que expõe, que transforma o cidadão, mesmo um juiz, em objeto de escrutínio público sem defesa e, tudo isto, porque o juiz proferia decisões que não agradavam ao MP. Quando o inquérito se converte em devassa, quando o segredo de justiça serve de capa à violação da intimidade, o Estado deixa de proteger e passa a vigiar. A fronteira entre justiça e intrusão dissolve-se. Nesse momento, o processo penal deixa de ser instrumento de verdade para se tornar instrumento de poder. O inquérito, em vez de ser instrumento de verdade, passa a ser arma de influência. O processo penal, que devia proteger o cidadão contra o abuso de poder, converte-se ele próprio num instrumento de poder.

Isto não é Estado de direito, é Estado de suspeição!

É o uso do tempo processual como forma de condicionamento político. Quando o poder de investigar se confunde com o poder de influenciar, a separação de poderes deixa de ser um princípio constitucional e passa a ser uma ficção perigosa. Quando um inquérito se arrasta indefinidamente, sem decisão, mas com fugas cirúrgicas e diligências oportunas, o que se mantém não é a justiça, é a utilidade política da suspeita. Se isto acontece com figuras públicas, expostas ao escrutínio e ao debate, o que não acontecerá com o cidadão comum, que não tem voz nem palco para se defender?

A separação de poderes tem de ser efetiva, não pode estar à mercê de interesses obscuros, nem de agendas escondidas sob o manto da justiça. O poder judicial existe para garantir a independência, não para ser um instrumento de influência. O Ministério Público, que tem um papel central no inquérito, deve exercer esse poder com rigor, mas também com responsabilidade temporal.

O tempo, em justiça, é uma forma de poder e, todo o poder, precisa de limite e escrutínio. A demora injustificada num processo penal é, por si só, uma forma de violação de direitos humanos. Prolongar indefinidamente a incerteza jurídica de uma pessoa é uma forma de sofrimento psíquico comparável à privação de liberdade. Mesmo assim, é espantoso, ainda precisamos de repetir o óbvio. 

O artigo 276.º fixa prazos máximos de duração, distintos consoante a natureza e a complexidade dos crimes mais, prevê expressamente a possibilidade de prorrogação fundamentada. Ora, se os prazos fossem apenas “indicativos”, para que serviria prever prorrogações? A lei seria redundante! Logo, a interpretação dominante é não só ilegítima, como ilógica.

O próprio legislador reconhece, ao consagrar a figura da aceleração processual nos artigos 108.º a 110.º do Código de Processo Penal, que os prazos são vinculativos e que a sua ultrapassagem constitui uma violação do direito à duração razoável do processo. Se os prazos fossem meramente indicativos, não haveria necessidade de prever um mecanismo de “aceleração”. 

Este instituto existe precisamente para forçar o cumprimento dos prazos legais e prevenir a violação de direitos fundamentais. Contudo, na prática, a aceleração processual é muitas vezes utilizada apenas em processos em risco de prescrição, servindo para apressar a acusação e fazer com que a prescrição ocorra já em sede judicial e não na fase de inquérito. Dados recentes do Conselho Superior da Magistratura mostram que, em 2023, apenas 15 pedidos de aceleração processual foram registados e apenas 3 deferidos, o que demonstra que este instrumento é residual e ineficaz no combate à morosidade processual.

A duração razoável do inquérito é um parâmetro de validade constitucional, não uma recomendação de eficiência. O incumprimento sistemático dos prazos não é apenas um problema de gestão, é uma violação do dever de proteção dos direitos fundamentais, como tal, gera responsabilidade do Estado. Como se não bastasse a violação dos direitos individuais, há ainda o dano coletivo, o dano à confiança pública na justiça. Quando os cidadãos percebem que o Estado não cumpre os seus próprios prazos, perdem a fé no sistema. Quando o sistema deixa de inspirar confiança, deixa também de ter legitimidade. O Estado que ignora as suas próprias leis converte a legalidade em fachada e a justiça em ritual.

É tempo de dizer claramente, o incumprimento injustificado dos prazos de inquérito deve ter consequência jurídica efetiva. Não podemos continuar a aceitar uma justiça sem prazos e sem sanções.

Caso fosse aplicada hoje uma regra de arquivamento automático para todos os inquéritos que já ultrapassaram os prazos legais, uma estimativa conservadora aponta para cerca de 75 mil a arquivar imediatamente e, numa estimativa mais grave cerca de 125 mil inquéritos seriam arquivados imediatamente. A solução mais conforme à Constituição é simples e lógica, se o Estado ultrapassa o prazo sem justificação legal, o inquérito deve ser arquivado. Não por benevolência, mas por respeito à legalidade. Não para favorecer o arguido, mas para proteger o cidadão. Um Estado de direito não é compatível com a arbitrariedade temporal.

Haverá quem diga que isso criaria “impunidade”, mas não há maior impunidade do que a do próprio Estado quando viola a lei que jurou cumprir. Uma justiça que ignora os seus limites deixa de ser justiça e transforma-se em poder puro. O poder sem limite é a antítese da Constituição.

A justiça portuguesa precisa de coragem. Coragem para olhar de frente para o seu próprio espelho. Coragem para admitir que, por detrás de milhares de inquéritos pendentes, há milhares de vidas suspensas. Coragem para reconhecer que a morosidade não é uma fatalidade, é uma escolha institucional, Coragem, finalmente, para cumprir o que já está escrito, que o prazo é vinculativo, que a lei vincula o Estado, que o tempo da justiça é o tempo da liberdade.

Não é só a justiça que tem de ter coragem. Também o poder executivo e legislativo tem de ter coragem para exigir, clarificando se necessário, que é ao poder executivo e ao poder legislativo que compete legislar. Aos tribunais compete apenas aplicar a lei. É preciso coragem política para dizer basta!

Os prazos do inquérito são, na verdade, os limites do poder punitivo do Estado. Ultrapassá-los sem sanção é transformar a lei num ornamento e a Constituição num adereço. A justiça só será justa quando o tempo deixar de ser uma arma nas mãos do Estado e voltar a ser uma garantia nas mãos do cidadão.

Em 2024 existiam cerca de 305 mil inquéritos pendentes. Ao longo do ano de 2023 foram movimentados 733 mil inquéritos, sendo 480 mil novas entradas e 253 mil inquéritos transitados do ano anterior. Foram concluídos 428 mil o que nos deixa os já referidos 305 mil inquéritos pendentes. Importa sublinhar que existem inquéritos de diferentes graus de complexidade, desde procedimentos sumários e de menor gravidade até aos designados “mega-processos”, cuja tramitação, pela própria natureza técnica e probatória tem um tratamento diferente.

A análise dos últimos anos revela uma tendência clara de aumento de pendências. O prazo médio de inquérito ultrapassa frequentemente os 3 anos, com casos que se estendem para além de uma década. Este fenómeno explica em grande parte o crescimento das pendências judiciais e amplifica o impacto sobre os direitos das pessoas envolvidas. Não estamos aqui a discutir técnica jurídica, estamos a discutir ética pública, estamos a discutir a coerência de um Estado que se quer democrático e de um sistema que se quer digno. O cumprimento dos prazos é a pedra de toque dessa coerência.

O cidadão tem o direito de saber, num prazo razoável, se é culpado ou inocente, se será acusado ou se o Estado reconhece que não tem razão. Esse é o mínimo ético e jurídico que um Estado civilizado deve garantir.

Quem beneficia do atual estado da justiça? 

Uma leitura sóbria indica que a morosidade beneficia atores que retiram vantagem política ou institucional da incerteza. A demora funciona como instrumento de influência, permite manter pessoas em zona de sombra, condicionar decisões políticas, fazer circular informação seletiva e preservar estruturas internas que resistem à responsabilização. Em termos práticos, a opacidade favorece atores que não desejam a clarificação rápida dos factos, nomeadamente em momentos políticos sensíveis.

Há soluções? Sim há!

  • Desde logo a implementação imediata de auditorias temporais automatizadas em todos os serviços do Ministério Público e forças de polícia, com relatórios públicos trimestrais; 
  • Que se imponha o arquivamento automático quando o prazo legal é ultrapassado sem prorrogação judicial fundamentada; 
  • Proceda-se à criação de um mecanismo de prorrogação excepcional acompanhado de parecer público e fundamentação específica sujeita a controle judicial; 
  • Introduza-se um regime de responsabilidade disciplinar célere e eficaz para magistrados e responsáveis institucionais que demonstrem incumprimento sistemático; 
  • Crie-se um portal público de transparência com indicadores por inquérito (data de abertura, prazos, prorrogações, estado processual), com anonimização quando necessário para proteção de terceiros; 
  • Reforce-se, sempre que necessário, os meios humanos e técnicos para tramitação célere dos megaprocessos (equipas dedicadas, prazos máximos específicos e metas de conclusão).
  • Intervenha-se, através dum movimento de cidadania, junto da Assembleia da República, nomeadamente junto da Comissão Parlamentar de Direitos, Liberdades e Garantias garantindo a discussão em sede própria duma eventual clarificação da Lei e do seu cumprimento.

Termino com uma ideia simples, mas essencial. A justiça não é apenas um tribunal, é um pacto de confiança entre o cidadão e o Estado, esse pacto exige tempo, tempo razoável, tempo cumprido, tempo justo. Quando o Estado não cumpre os seus prazos, rompe o pacto. Quando o pacto se rompe, o Estado de direito vacila.

Por isso, não é de menos exigir que os prazos legais sejam respeitados como se respeita a Constituição, porque é isso que são, expressão direta da Constituição.

A justiça só é justa quando também é célere. A celeridade, quando é vinculativa, é a forma mais concreta de liberdade. Defender prazos é defender direitos. Cumprir a lei é o primeiro dever de quem tem o poder de a aplicar.

O tempo da justiça é, e tem de ser, o tempo da liberdade.

Jacinto Furtado

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