A corrupção da ética política: o caso exemplar da saúde (II parte)

Mário Jorge Neves (Foto FNAM)

Durante vários anos, a ofensiva político-ideológica contra o SNS baseou-se em chavões de que a sua gestão não funcionava, que os seus resultados eram fracos e que ele representava um conceito estatizante da saúde.

À medida que o SNS se foi estruturando, mesmo sendo objeto de muitas malfeitorias de alguns governos e particularmente de alguns ministros, os resultados foram surgindo, desarmando os seus inimigos. Quando diversos relatórios da OMS e da OCDE começaram a elogiar o nosso SNS, apresentando indicadores de saúde que colocavam o nosso país nos primeiros lugares mundiais quanto ao índice de desempenho na área da saúde, a campanha anti SNS mudou de chavões.

Nos últimos anos, um dos eixos dessa campanha baseia-se na procura sistemática de se referirem ao sistema nacional de saúde e não ao serviço nacional de saúde, que têm a mesma sigla, para procurarem subalternizarem o SNS, Serviço Nacional de Saúde.  Outro eixo, que surgiu novamente com insistência nesta última campanha eleitoral, é a referência de que não importa se a gestão é pública ou privada porque o mais importante é que os cuidados de saúde sejam prestados atempadamente.

A ofensiva contra as políticas sociais e contra o direito constitucional à saúde de que o SNS (Serviço Nacional de Saúde) é o seu instrumento operacional teve, nesta última campanha eleitoral, na Iniciativa Liberal o seu porta estandarte, que se assumiu como uma versão envernizada do Chega, encabeçando o ataque à Constituição da República.

O sistema nacional de saúde inclui os vários serviços prestadores de cuidados de saúde, públicos, privados e do setor social. O Serviço Nacional de Saúde engloba os serviços públicos de saúde que asseguram o direito constitucional à saúde de todos os cidadãos, independentemente sua raça, credo ou nível socioeconómico, através de um sistema fiscal progressivo onde quem mais ganha, mais desconta.

Quando os inimigos do SNS vêm clamar pelo sistema nacional, o seu objetivo claro é colocar tudo dentro do mesmo “saco” para depois não se tornarem tão evidentes os vultuosos financiamentos aos grupos económicos privados com o dinheiro dos contribuintes.

Quanto à questão da gestão, importa desde logo frisar que ela não é neutra. Não é indiferente que a gestão seja pública ou privada, dado que as respetivas naturezas são, naturalmente, antagónicas.

Aquilo que está em causa nesta matéria não são as técnicas de gestão que se podem aplicar quer a uma ou a outra, mas a natureza de cada uma delas.

Por exemplo, o Prof. Federico Tobar, um dos mais conceituados especialistas de gestão em saúde em todo o continente americano, chama a atenção para as seguintes diferenças conceptuais entre os 2 tipos de gestão: 

  • A empresa privada existe para maximizar o património dos accionistas / A organização pública existe para atingir uma missão que é considerada socialmente valiosa.
  • O resultado financeiro é o critério de bom desempenho para a empresa privada/ A eficiência e a efectividade no cumprimento da missão é o critério de bom desempenho no serviço público.
  • A empresa privada identifica capacidades distintivas para a criação de valor/ O serviço público identifica melhores alternativas para cumprir a sua missão.

A gestão privada busca a maximização do lucro para os acionistas ou proprietários da empresa, sendo o principal objetivo da sua atividade económica. E os doentes que não dão lucro ou que não possuem recursos económicos para pagarem os cuidados prestados? Ficam abandonados à evolução natural da doença?

Outro eixo da propaganda do neoliberalismo é defender que o SNS fique destinado aos cidadãos mais carenciados e que o Estado comparticipe os cuidados de saúde prestados por entidades privadas aos cidadãos com maior poder de compra.

O Prof. Federico Tobar sobre esta questão específica referiu que “os serviços de saúde para pobres convertem-se rapidamente em serviços pobres, a sua qualidade deteriora-se, a sua efectividade diminui e não melhoram a equidade nem reduzem os custos em saúde”.

Amartya Sen recebeu o Nobel da Economia em 1998 na base da sua análise de que os países onde as condições de saúde são mais uniformes no seio da população são aqueles que apresentam melhores condições e potencialidades para o crescimento económico. Perante níveis iguais de investimento, crescem primeiro as economias baseadas em sociedades mais equitativas.

Também o Prof. Federico Tobar, em vários dos seus trabalhos, chamou a atenção que “diversos estudos sobre equidade no financiamento de serviços geraram evidência suficiente para afirmar que o gasto público em saúde, nomeadamente nos cuidados primários, regista um elevado impacto redistributivo, permitindo corrigir as desigualdades que gera o funcionamento da economia”. 

Ora, quando se iniciou a aplicação de modelos como as parcerias público/privadas e esquemas de entrega da gestão de unidades públicas a consórcios privados na Grã-Bretanha, o objetivo foi “legalizar” a canalização continuada de dinheiro dos contribuintes a esses consórcios e possibilitar a várias multinacionais negócios de grandes dimensões como está amplamente documentado em múltiplos estudos internacionais.

Para que a contestação da opinião pública fosse o mais atenuada possível, desencadearam-se previamente campanhas de diabolização dos serviços públicos, acusando-os de todas as situações que suscitavam algum grau de descontentamento, como as listas de espera, as dificuldades de marcação de consultas ou tempos muito prolongados de atendimento nas urgências.

Nos países onde o modelo privatizador da saúde foi desenvolvido, casos flagrantes da Grã-Bretanha, alguns estados do Canadá, Espanha e diversos países do leste europeu, não se verificou qualquer melhoria dos indicadores de saúde, as listas de espera sofreram um agravamento muito acentuado, os cuidados primários de saúde foram quase erradicados.

No nosso país, a aplicação dos chamados hospitais SA demonstrou também um fracasso total,  levando-os inclusive a esgotar os seus próprios capitais sociais para assegurar as contas correntes. Importa sublinhar que a defesa do SNS impõe uma contínua melhoria dos seus mecanismos de gestão e de funcionamento. O SNS é uma construção que necessita de encontrar permanentemente respostas novas e céleres aos sucessivos problemas novos que se lhe deparam.

Uma perspetiva imobilista de defender somente o conceito sem ter em conta a realidade difícil em que ele se insere, seria desastrosa para a sua continuidade como um dos fatores centrais de equidade e de coesão sociais.

O sector da saúde é provavelmente aquele que nas últimas décadas tem conhecido uma maior incorporação e revolução tecnológicas com a introdução sucessiva de novos e mais sofisticados meios técnicos e um desenvolvimento contínuo do conhecimento científico.

Como a experiência histórica demonstra, de forma muito clara, todas as revoluções tecnológicas determinam mudanças radicais nos modos de organização da produção e do trabalho. Aquilo que podemos verificar é que esses modos de organização, por exemplo nos hospitais, são os mesmos há largas décadas. Por outro lado, não existem incentivos à inovação e quando isso não existe, as organizações, sejam elas quais forem, estão condenadas à decadência.

Ao longo das três últimas décadas, a pequena e média empresa médica no nosso país foram gradualmente “engolidas” pelos grupos económicos privados, liquidando uma medicina de proximidade e com uma qualificada relação médico/doente que permitia responder às insuficiências dos serviços de saúde.

Os modelos privatizadores da saúde em múltiplos países têm demonstrado o seu fracasso global, não resolvendo nenhum dos problemas com que se debatem os cidadãos nesta área, aumentando substancialmente as despesas, vivendo sucessivos escândalos financeiros e possibilitando lucros gigantescos a diversas empresas multinacionais, particularmente americanas.

Senão existisse já, há mais de 30 anos, uma abundante experiência, amplamente documentada, dos resultados desastrosos deste modelo americanizado, ainda poderíamos compreender que a sua defesa por alguns setores político-económicos fosse só uma tentativa para encontrar respostas para uma área tão sensível na vida das pessoas como é a saúde.

Assim, quando assistimos por parte de alguns comentadores nos órgãos de comunicação social e a alguns dirigentes partidários a defenderem a privatização das áreas rentáveis na saúde com argumentos mentirosos, estamos perante casos claros de corrupção da ética política, dado que essas posições têm como único objetivo de proporcionar a grupos privados vultuosos negócios à custa do nosso dinheiro de contribuintes, transformando a saúde numa qualquer mercadoria sujeita às leis da oferta e da procura.

Todos eles conhecem, inevitavelmente, os resultados desse modelo, predador, da privatização, independentemente das máscaras com que se apresente e, mesmo assim, não têm o mínimo pudor em vir para os órgãos de comunicação social fazer a sua defesa, colocando-se como meras “correias de transmissão” dos interesses das multinacionais com negócios na saúde.

Para que a privatização dos serviços públicos de saúde seja apresentada à opinião pública como uma medida quase inevitável é preciso proceder previamente à sua deterioração continuada da sua capacidade de resposta.

É a isso que temos assistido no nosso país com as situações escandalosas de encerramento de serviços hospitalares em várias especialidades médicas, criando situações intoleráveis de insegurança e angústia em muitos milhares de cidadãos.

A corrupção da ética política não pode continuar impune!

Mário Jorge Neves, médico.

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