Fala-se muito, e com naturais razões, da corrupção em torno de bens materiais, de negócios económicos e de troca de favores pessoais, mas aquilo que comanda tudo isto de forma mais indireta é a corrupção da ética política. Nas últimas décadas, os valores e os princípios políticos foram sendo, também, tornados mercadorias sob a imperante ideologia neoliberal. A generalidade das lideranças políticas nos planos nacional e internacional, têm demonstrado uma enorme mediocridade e a ausência de quaisquer preocupações de coerência e de seriedade.
A corrupção da ética política começa logo pelo comportamento dos vários partidos políticos cujo peso eleitoral os coloca como numa posição suscetível de lhes possibilitar o exercício de funções governativas, pomposamente designados como fazendo parte do “arco da governação”, quando nos períodos eleitorais fazem abundantes promessas e uma vez no poder ou não as cumprem ou até tomam medidas em sentido oposto. Por outro lado, é também notória a duplicidade do comportamento partidário que perante situações idênticas, adota posições antagónicas consoante está no governo ou na oposição, Estes comportamentos têm sido dos que mais têm descredibilizado a atividade político-partidária junto dos cidadãos e, por via disso, ajudado a extrema-direita a aumentar progressivamente as suas votações.
Desde o seu nascimento que o SNS tem estado sob fogo intenso de grupos de interesses privados que pretendem apropriar-se do apetecível negócio da saúde. Alguns gestores privados já têm deixado claro ao longo dos anos que o negócio da saúde e dos mais importantes e lucrativos. Houve até um deles que afirmou numa entrevista que a seguir ao negócio das armas, a saúde era o mais lucrativo.
Em 1982, o governo presidido por Pinto Balsemão desencadeou a primeira tentativa de liquidar o SNS através do DL nº 254/82, onde a pretexto transformar as administrações distritais de saúde em administrações regionais de saúde revogou 46 artigos da Lei de Bases da Saúde.
Em 1984, o Tribunal Constitucional, através do Acordão nº 39/84 declarou inconstitucional o DL nº 254/82.
Mais tarde, entre 2002 e 2005, o então ministro da saúde Luis Filipe Pereira nunca conseguiu disfarçar o seu ódio ao Serviço Nacional de Saúde preferindo referir-se sempre ao Sistema Nacional de Saúde. Depois de um ativo passado de ortodoxia estalinista, Luís Filipe Pereira fez uma viragem política de 180 graus, passando a um devoto da versão mais selvagem do neoliberalismo.
Toda a sua política foi sempre virada para a destruição do Serviço Nacional de Saúde, programando a privatização dos serviços públicos de saúde, de que podemos destacar: a criação dos “Hospitais SA”, com capital social dividido em quotas e a regerem-se pelo Código da Sociedades Comerciais, através da Lei nº 27/2002, que introduziu alterações à Lei nº 48/90 (gestão hospitalar); o DL nº 185/2002, que instituiu o enquadramento legal das PPP (Parcerias Público-Privadas); e ainda o DL nº 60/2003 que visava a privatização integral dos centros de saúde e a eliminação da medicina geral e familiar, passando a existir o chamado “médico assistente”. Nessa altura, diversas destacadas personagens da nossa sociedade insurgiram-se contra essa política e denunciaram os seus reais objetivos.
Num artigo de opinião no jornal “ Primeiro de Janeiro” de 30/1/2003 o Dr Paulo Mendo, ex vice-presidente do PSD, afirmou: “Orgulho-me de com muitos profissionais e políticos dedicados e competentes de todos os partidos, para com eles, no governo ou na oposição ter ajudado a construir o melhor serviço público português. Subfinanciado, sempre atacado por alguma comunicação social que vive de casos, de árvores, recusando-se a ver a floresta, o Serviço Nacional de Saúde precisa de quem o ame e dele faça o pilar do sistema nacional de saúde e não de mudanças feitas sem critérios sanitarista apenas porque mudar é preciso e quem discorda é reacionário “.
Numa entrevista ao jornal “Médico de Família”, na edição de Junho de 2003, o “Pai do SNS”, Dr. António Arnaut, respondeu às perguntas do jornalista, importando destacar as seguintes:
– “Está-se a tentar fazer uma inversão, transferindo-se o máximo de competências para o sector privado, deixando o público reduzido a um papel insignificante. Um esvaziamento do sector público – devo dizê-lo em abono da verdade – iniciado pelo Governo socialista, quando Correia de Campos foi ministro da saúde”.
– “…Este Ministro é um empresário dos Mellos emprestado à Saúde. Pode ser um bom empresário, um bom gestor, mas não tem sensibilidade para os problemas da saúde, que têm que ver com direitos humanos. Sobretudo no que toca às classes mais desfavorecidas”.
– À pergunta se o atual ministro está a tentar destruir o S.N.S., respondeu “É verdade. O Luís Filipe Pereira, que eu não conheço pessoalmente mas que me merece consideração, é mais sensível à Organização Mundial do Comércio, que considera tudo uma mercadoria, do que aos princípios corretos da Organização Mundial de Saúde. O que este ministro quer fazer é empresarializar os centros de saúde e os hospitais e construir novos hospitais em parceria com a iniciativa privada”.
– Não concorda com essa intenção? “Claro que não. O Governo, através da empresarialização e da construção de novas unidades de saúde em parceria com os privados, quer alienar prestações que o Estado tem o dever de assegurar”.
– Eticamente, como classifica o avanço no sentido da privatização? “Estamos perante um neoliberalismo selvagem. A Saúde é um sector especial porque cobre direitos fundamentais. Portanto, o Estado, enquanto existirem esta Constituição e os pactos internacionais sobre direitos fundamentais, não pode privatizar…”
– Considera que as parcerias público-privado são um tiro no escuro? “Não, porque o Governo apontou para um alvo. E esse é fazer uma privatização indireta. Eles vão criar sociedades anónimas de capitais públicos. Essas sociedades anónimas gerem-se pela lei das sociedades comerciais. E é da essência das sociedades comerciais que um acionista pode vender as suas ações…”.
Na edição do então “ Portugal Diário”, a 28/1/2004, foi publicada a seguinte notícia com o título “«Favorecimento» do sector privado, acusa médico”.
“O diretor do serviço de cirurgia cardiotorácica dos Hospitais da Universidade de Coimbra, Manuel Antunes, alertou hoje para o risco de «favorecimento» do sector privado nas parcerias para a gestão de unidades de saúde. Este médico, que falava no primeiro debate do ciclo Fórum Gulbenkian de Saúde, sustentou que «o sector privado pode e deve constituir um padrão de comparação com o sector público, mas não pode ser favorecido». Algo que o responsável acredita poder ocorrer nas parcerias público / privado, para a gestão das unidades de saúde, depois de o Estado ter «reconhecido a incapacidade em organizar a sua gestão», lamentou”.
O então jornal “Primeiro de Janeiro” na sua edição de 28/10/2004 publicou um artigo de opinião do Dr Paulo Mendo com o titulo “A reforma da saúde”.
Transcrevem-se os seguintes extratos:
– “Há perto de dois anos, pouco tempo depois do início da cavalgada de mudanças que o atual Ministro de Saúde iniciou, disse em artigo neste jornal (30/01/2003) que «nem tudo o que é mudança significa progresso e melhoria» ”.
– “Ainda sem avaliação da situação real dos trinta hospitais SA que justificação tem a extensão do processo a mais umas dezenas? Será porque deixam de ser despesa pública e passam a investimento? Garantia de maior eficiência e humanidade no atendimento não é com certeza.
– Serão necessários dez novos hospitais? Onde estão os estudos que o demonstrem? É verdade que temos uma taxa de ocupação de 75%? Se assim é onde está a prioridade? E porquê as parcerias? Já avaliaram o resultado deste método que estudos ingleses, académicos e sérios, contestam quer do ponto de vista económico quer, o que é pior, de qualidade de cuidados?
Sendo as taxas moderadores apenas uma forma de disciplinar o acesso e nunca uma forma de financiamento da saúde, problema muito mais complexo que, esse sim, deveria ser urgentemente resolvido politicamente, porque será que o Ministério volta a afirmar a sua criação, sabendo que o Presidente da República a rejeita, bem apoiado na Constituição que lhe cabe defender? Será para se afirmar, depois, vítima impedida de continuar a salvar o Serviço Nacional de Saúde (SNS)?”.
– “Atos médicos em saldo! Supermercado da saúde! Onde está a Ordem, Deus meu? Onde está essa famosa Entidade Reguladora da Saúde?”.
– “Sem ponderação nem bom senso, com um financiamento irracional e de penúria, com um défice anunciado de dois mil duzentos e oitenta milhões de euros, o atual Ministério, numa fuga para a frente pretende rapidamente, numa legislatura, transformar o Serviço Nacional de Saúde numa grande «holding» cheia de administradores privados bem pagos, em que o Estado seja progressiva, mas rapidamente, reduzido a pagador do sistema e a prestação de serviços passe a ser garantida, sobretudo, pelo sector privado.
– Em poucos anos se esta política, oposta aos objetivos da social-democracia, continuar, ficará Portugal a braços com o sistema mais caro e mais incontrolável dos sistemas de saúde do mundo! E menos humano e solidário. Aliás, o S.A. não quererá dizer Sem Alma?
O Jornal de Notícias na sua edição de 13/11/2004 publicou uma notícia com o título “D. Januário apreensivo com o rumo da Saúde:
“Orador convidado do 1.º encontro de reflexão e discussão sobre a realidade do sector, o bispo das Forças Armadas e de Segurança fez-se eco de algumas reações públicas em relação às tendências que estão a ser seguidas, como a empresarialização dos hospitais, e concluiu que o que pode vir pode ser «assustador»”.
“Sublinhando que a iniciativa privada não pode posicionar-se num sector como o da Saúde com uma visão mercantilista, D. Januário notou, com preocupação, que, na linguagem dos hospitais SA, os utentes passaram a ser designados por clientes e que o mais importante «parece ser a gestão em vez das pessoas». O bispo salientou ainda que a opinião pública, que também representa, «dá-se conta de uma visão mercantilista inquietante. De uma gestão onde as mais importante «parece ser a gestão em vez das pessoas». O bispo salientou ainda que a opinião pública, que também representa, «dá-se conta de uma visão mercantilista inquietante. De uma gestão onde as prioridades mais prioritárias não são o doente que entretanto passou a «cliente» ”.
O jornal “Expresso”, em 26/10/2002, publicou um artigo com o título “Privatização da Saúde em xeque” em que eram divulgadas declarações do Dr. António Arnaut considerando que “com a experiência catastrófica do Amadora-Sintra, se o Executivo estivesse preocupado em servir o interesse público não preparava estas reformas” e ainda que “fica claro que o ministro da saúde quer desmantelar o S.N.S. em benefício do sector privado e que este Estado está ao serviço de multinacionais”.
O jornal “Público”, a 18/01/2003, publicou uma “carta aberta” do Prof. Dr. Carmona da Mota, prestigiado professor de pediatra da Faculdade de Medicina de Coimbra, com o título “O tremendo SNS, o melhor serviço público português”.
Neste curto e incisivo texto, o Prof. Dr. Carmona da Mota referiu as seguintes questões fundamentais:
– No livro de Villaverde Cabral, “Saúde e Doença em Portugal”, 85% da população considera satisfatória a cobertura e a prestação dos cuidados nos serviços públicos.
– A mortalidade dos recém-nascidos passou de 12,1 por mil, em 1985, para 2,9, em 2001.
– A mortalidade perinatal foi de 6,1 por mil em 2000, um terço do valor de 1983 (a média europeia é 6,3).
– A taxa de mortalidade de crianças com menos de 5 anos foi de 6 por mil, igual à de países como a França, Espanha, Bélgica, Holanda e inferior à do Reino Unido.
– O desempenho do sistema de saúde português foi classificado pela Organização Mundial de Saúde (O.M.S.) no 12.º lugar mundial… qual o serviço público português que consegue um resultado semelhante ao do SNS? A justiça, a administração pública, o sistema fiscal, as polícias, as forças armadas, o ensino?
– Segundo o “World Competitiveness 2002”, que compara 49 economias mundiais, Portugal está abaixo do 35.º lugar e a produtividade portuguesa é 48% da média da União Europeia.
– O “Relatório do Desenvolvimento Humano 2002” coloca Portugal no 28.º lugar mundial e os adultos portugueses são os menos qualificados da OCDE.
– Portugal está em último lugar numa tabela elaborada pela UNICEF ácerca da eficácia dos sistemas educativos em 24 países industrializados.
– O SNS não precisa de uma alternativa, mas de reorganização.
– Malfadado SNS de que muitos irão ter saudades e alguns remorsos quando já não houver remédio. Saudades, os que mais precisarem; remorsos, os que mais criticaram.
Os Hospitais SA, enquanto existiram, estiveram sempre envoltos em “trapalhadas” e constituíram uma experiência desastrosa e com resultados claramente inferiores aos hospitais do chamado setor público administrativo.
A própria experiência da gestão privada do Hospital Amadora/Sintra por um conhecido grupo económico, foi incapaz de mostrar qualquer vantagem em relação aos hospitais de gestão pública.
Aliás, foi com essa gestão privada que se inauguraram os encerramentos de maternidades como pode ser testemunhado por esta notícia do “Dário de Notícias” de 6/12/2004 com o título: “Maternidade encerrada no Amadora-Sintra”.
“Hospital fechou serviço de urgência durante dois dias por falta de médicos”.
“Durante o fim-de-semana, as grávidas que se dirigiram às urgências de ginecologia e obstetrícia do Hospital Amadora-Sintra encontraram os serviços fechados. «Só na segunda de manhã, hoje não há médicos», explica a rececionista, remetendo para uma nota afixada na parede, com data de sexta-feira. «Os serviços encontram-se temporariamente encerrados. Em situações de urgência devem dirigir-se aos hospitais S. Francisco Xavier, Maternidade Alfredo da Costa, Magalhães Coutinho ou Garcia de Orta». No comunicado, lamenta-se a decisão, mas sem explicações”.
“Contactado pelo DN, o hospital não adiantou muito mais, confirmando apenas que existem 24 obstetras na unidade e que, no turno deste fim-de-semana, não estava disponível o número mínimo de seis profissionais para assegurar os serviços. Os responsáveis pelo Fernando da Fonseca dizem, no entanto, que a falta de clínicos está a ser resolvida através de um esforço de recrutamento”.
Importa analisar, agora, as novas faces da cruzada contra o SNS.
Mário Jorge Neves, médico
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