Dilema do manicómio

“Fica bem no país que tão bem te acolheu e te formou”. Ainda tenho que ouvir isto?

Bem, cuidado com o que me dizem. Pode servir para mais um texto didático.

Esta frase foi-me dita hoje por eu estar a criticar a manifestação sem ventura de uma chaga que precisa tornar-se um desconseguimento prático. Por ser fascista e racista. E na raiz destes partidos está o ovo da serpente a aguardar presas.

Esta frase já a ouvi centenas de vezes, juntando-a a outras com o mesmo teor racista. Assim como comportamentos. Desde os cinco anos de idade, altura em que vim viver para o meu país, a minha ala deste manicómio.

Ela só tem um efeito sobre mim, relembrar a quem diz que o racismo não existe, que ele está aí. Vivo e lúcido. Mascarado como é costume luso, mas esta frase deixa a máscara cair.

Este vírus do racismo demora-se na minha vida a ser eliminado. Nem com anti-corpos se lava. Suja e amarrota mas não me tira a cor que um ” preto branco” português com uma Guineense-Cabo-Verdiana fizeram. Passa às gerações subsequentes. Já viram esta merda?

Mas também não faz desaparecer a vontade de eliminar a ideia dos que julgam que o “branco” é superior a alguma outra cor. Por esta ser de uma ignorância atroz.

Os meus avós Portugueses e “brancos” cheios de pretidão na sua ascendência Portuguesa, que me acolheram e formaram estão neste momento em pé, nas suas covas, morrendo com vergonha alheia.

Já vivo tão bem com este vírus das frases e pensamentos racistas, que só tenho um pensamento: endurecer a minha luta para o eliminar, como faz qualquer cientista. Encontrar a cura. Como? Pela Educação?

Então, esse foi o caminho que adoptei. Estudando e escrevendo.

Porque esta ideia dura apenas há seiscentos anos e como nasceu pela mão humana, pode ser derrubada por mão humana.

Sobre o vírus racismo chegamos então a este país. Que não me acolheu assim tão bem, já que fui sempre alvo do racismo que dizem não existir.

Mas como é o meu país, vou lutar. Arregacei as mangas. E bati-me a punho.

Ou esta merda acaba comigo, ou eu ajudo o exército dos que querem acabar com ela. Eu explico. Como se isto fosse um manicómio.

O mundo é o meu manicómio. Por ser parte dele, tenho-o por meu.

Por ser da raça que lhe traz uma história colectiva de evolução, a humana, é meu.

Ora o manicómio está dividido em alas. A minha coube-me ser de várias.

Em solo africano e de directa descendência portuguesa. Logo uma das minhas alas é Portugal.

Por Portugal falarei sempre. Para o bem e para o mal. Gostem ou não. Criticá-lo-ei e cuidarei dele. De fora da ala ou dentro, contem comigo para fazer parte.

Acolheu-me por ser meu chão (como o é o meu continente africano) ou como o mundo me acolheu. Estamos no manicómio e não há outro lugar para ir.

Sou uma empreendedora de passaporte, fazendo workshops de formação por onde passo, no resto do manicómio, neste sopro a que chamamos vida.

Mas, será sempre a minha obrigação como cidadã deste meu país que me ajudou a formar e a acolher a nacionalidade, procurar que seja um país melhor.

Tanto me formou, como outras alas do manicómio me formaram e continuam a formar e me acolhem umas melhor que outras.

Tem sido essa a tónica que acentua a minha vida.

Eu sou negra brasileira, negra americana, palestina, francesa, belga, congolesa, guineense, gay, trans, ou rowinga, se tiver de defender o chão que me acolher e me estiver a formar, ou simplesmente a ser humana com outros humanos.

Esta é a beleza desta experiência humana em vida.

Não percebem isto seus racistas? Não.

A ignorância até faz doer à distância.

Continuando, vou criticar, desobeder a leis injustas e posicionar-me na trincheira do lado que é o meu, o dos que vieram para lutar sem nunca terem tido privilégios.

Incluo lutar pelo lado dos “brancos” (entre aspas porque somos todos pretos sabiam racistas?), vítimas de pobreza e da manipulação dos selvagens que julgam que eu sou uma ingrata por não beijar o chão dos racistas, manipuladores e ladrões que praticam terrorismo sem bombas.

Sejam eles quais forem. Incluindo na minha ala. Ou em qualquer outra, depende de onde o passaporte me levar.

Assistimos a um golpe de mestre.

Uma manifestação de racistas tem um lema com a sua negação.

É um golpe de mestre militarizar as polícias e permitir-lhes por lei, matar pretos indiscriminadamente reclamando “que todas as vidas importam”.

Exemplos não faltam.

Como se todos fossêmos desconseguidos cognitivos e sofressêmos de eclâmpsia neuronal no que diz respeito a literacia e História querem-nos atirar ao fogo. Só que sabemos que o medo está a mudar de lugar e as máscaras a cair.

A manipulação tem várias demonstrações de golpes de mestre. São tão boas que até um leitão se manifesta a favor da continuação da fábrica de enchidos.

E com ela – a manipulação – os racistas continuam racistas, os estúpidos estúpidos e os ignorantes continuarão deseducados. Por livre arbítrio.

Benza-os os deuses do Olimpo. Se tiverem tempo. Eu não tenho.

Sabemos o que querem os doentes mais loucos e perigosos deste manicómio. E nunca deverão ser perdoados porque sabem bem o que fazem. Enganam muitos médicos e doentes por isso tenho por dever denunciá-los.

Enquanto numa ala do manicómio os doidos a sério fazem a sua parte, na ala da administração hospitalar e seus corpos dirigentes, pelos mortos e desconseguidos que somos nós, vai descendo a ladeira uma procissão descambada em sucessivos disparates ao som de um acordeon desafinado, dobrando incongruentes avé-marias, discursos biliosos e ácidos que alimentam os ignorantes vigilantes.

Rebentam fossas e o cheiro nauseabundo invade todas as instalações. Não há escapatória. Os doentes, com cores diferentes nas pulseiras, dependente da gravidade do seu estado mental, olham-se surpresos: aqui não há visitantes, estamos todos internados.

O mal espalhou-se, banalizou-se e tornou-se fácil de engolir. De novo.

Mais há uns mais perigosos que outros.

O ignaro que me manda para a minha terra, ou me diz para não ser ingrata é só isso, ignaro, logo passível de manipulação que esqueço rapidamente porque não me ofende.

Dali apenas aparece um perigo. O do efeito da banalidade do mal, segundo Hanna Arendt. Pode vir a obedecer cegamente, a ordens manipuladas.

A pulseira que me veste o pulso diz-me que uma vez colocada no regime “all inclusive” deste manicómio, tenho a obrigação de combater os loucos perigosos e manipuladores. Esses sim. São o perigo real.

Em qualquer chão que me acolha e me ajude a formar como ser nesta experiência de vida humana tenho a obrigação de estar atenta e não deixar portas abertas entre as alas colocando avisos, contando histórias de racismo.

Quem não tiver consciência, educação ou cognição para entender isto é porque ( infelizmente) nunca teve um chão que o acolhesse ou formasse.

E é normalmente na esterilidade que os manipuladores semeiam e colhem os seus defensores.

A frase que ouvi, profundamente racista, define um racista, quer ele saiba disso, ou não. Quer seja por ignorância ou manipulação. Ou máscara mal ajeitada a tornar a verdadeira face impossível de esconder.

Repito, este perigo irei sempre combater, dentro da minha ala ou noutra qualquer que me sirva de chão.

Para teu bem, minha ala doente infectada com um vírus perigoso e que por causa dele nem sempre me acolheste bem, minha Ìtaca onde sempre regresso, depois de me cruzar com Lestrigões e Cíclopes, fora e dentro das tuas portas, quero ver-te um dia sem estes inimigos com os quais me tenho confrontado. E que uma ala sã renasça.

Anabela Ferreira

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