Sinto-me, com todas as palavras, profundamente chocado e revoltado. Não é simples perturbação, não é incómodo momentâneo — é uma inquietação funda, moral e cívica, porque sei, como todos deveríamos saber, que não há almoços grátis. Aquilo que nos vendem como benesses — a informação a que temos acesso, os cuidados de saúde que nos são prestados, os serviços públicos de que dependemos — não são dádivas de um poder magnânimo, são conquistas que custam. E são pagas por nós. Com os nossos impostos, com o trabalho de cada um, com o suor colectivo de uma sociedade inteira.
Por isso, quando aquilo que nos é devido em troca — nomeadamente, uma informação digna, plural e justa — nos é negado ou pervertido, não posso calar-me.
Refiro-me agora a um episódio muito concreto. Ponho de lado, por agora, os últimos três ou quatro dias inteiros de emissão contínua e redundante em todos os canais de televisão, directos repetidos até à exaustão, com os mesmos rostos e os mesmos lugares, numa espécie de teatro da repetição repetida das anteriores repetições, que pouco ou nada acrescenta à compreensão do que se passa. O que me indigna hoje, e profundamente, é o silêncio — o silêncio ensurdecedor — sobre um acontecimento de verdadeira importância histórica, moral e civilizacional.
Ontem estive na Academia Militar, no velório do General Amadeu Garcia dos Santos, Militar de Abril, figura decisiva no 25 de Abril de 1974. Foi ele quem, do Posto de Comando da Pontinha, dirigiu todas as transmissões militares naquele dia que viria a mudar para sempre o destino de Portugal. Desse núcleo, desse centro nevrálgico da Revolução dos Cravos, resta entre nós apenas o Major Sanches Osório — que a vida lhe reserve ainda muitos anos, com saúde e memória viva.
Na Academia, ao lado do corpo daquele que ajudou a libertar um povo inteiro da opressão, vi chegar os dois Presidentes da República, ambos identificados com os ideais de Abril: Ramalho Eanes e Marcelo Rebelo de Sousa. Juntos, prestaram a devida homenagem ao Homem e ao Militar. Um gesto que honra, a eles próprios e ao Povo português em nome de quem a Liberdade foi conquistada.
Vi também Camaradas de Abril — Vasco Lourenço, Aprígio Ramalho, Ramiro Rodrigues, Martins Guerreiro — que se recolheram em silêncio em frente da urna, logo depois dos dois Presidentes da República, actual e passado, com a dignidade de quem sabe o peso da História e o preço da coragem. Registei esses momentos com discrição, em fotografia, mas não os partilho aqui por respeito — o pudor impõe-se onde a imagem não pode traduzir a dimensão íntima do significado.
E no entanto — e aqui a revolta se acende — nenhuma estação de televisão, nenhuma rádio, nenhum jornal de relevo marcou presença. Nenhum repórter, nenhum microfone. Nenhuma palavra. Um vazio que não é apenas ausência: é omissão consciente, é escolha editorial, é desprezo activo por aquilo que deveria ser valorizado como património colectivo.
E o mesmo se passou hoje na Academia Militar onde as honras foram prestadas publicamente em frente do Paço da Rainha e onde a qualidade dos discursos do Presidente Da República Portuguesa e do Chefe de Estado Maior das Forças Armadas se juntar à nobreza da homilia do Senhor bispo de Lisboa. E o mesmo no Cemitério do Alto de São João, logo de seguida. Não estamos a falar de falta de espaços, de exiguidade dos locais ! Falamos de silenciar. Silenciar Abril e quem agora o representa.
Estamos a falar de alguém que arriscou a vida pela nossa liberdade, pela nossa democracia. E que hoje é esquecido ou ignorado por aqueles que deveriam, no mínimo, contar a sua história. Não é só uma falha — é uma ofensa. Uma traição, mesmo, aos valores que dizem defender. A memória de um povo não pode ser apagada por conveniências mediáticas ou por cálculos de audiência.
Estou chocado e revoltado. Surgem-me à memória outras lembranças. Então, e os Partidos Políticos, que hoje existem porque este e outros seus camaradas foram tão generosos ao ponto de esquecer a sua própria vida?! Não haveria um representante, pelo menos, de cada força política democrática para ali os fazer lembrar? E tantos outros, instituições, associações, sociedade civil e tantos mais !
Estou chocado e revoltado porque ninguém se deve vender, muito menos por tão pouco. Porque há valores que são maiores do que qualquer manchete ou alinhamento de noticiário. Porque Abril não foi feito para ser esquecido.
E porque há heróis que, mesmo quando partem em silêncio, devem continuar a ser lembrados com voz firme, cabeça erguida e gratidão colectiva.
Carlos Pereira Martins
Deixe um comentário