Resistir, organizar, transformar: por um novo programa de acção popular

A situação que hoje vivemos – socialmente injusta, politicamente perigosa e economicamente opressiva – tem raízes bem mais antigas e profundas do que parece. E é exactamente por isso que não a podemos esquecer, nem tão-pouco desvalorizar.

Na verdade, mal conseguiu derrubar a velha sociedade feudal, a nova classe dominante – a burguesia – tratou de proibir, de imediato, todas as formas de organização e de luta colectiva dos trabalhadores. Em França, pátria da Revolução Burguesa de 1789, tal foi feito pela Lei Le Chapelier, de 1791, a qual, sob o pretexto de combater quaisquer tentativas de restabelecer a antiga organização corporativa medieval, proibiu toda e qualquer forma de agremiação de trabalhadores, prevendo ainda a sua punição como crime, com pesadas penas de prisão.

A violenta perseguição e repressão contra todas as formas de organização e de luta colectiva dos trabalhadores foi sendo enfrentada e derrotada com o derramamento de muito sangue, muito suor e muitas lágrimas. O 1.º de Maio, que hoje celebramos como feriado, rememora e celebra, afinal, um conjunto de heróicas lutas pelo estabelecimento da jornada máxima de oito horas de trabalho diário e, em particular, a prisão de oito dirigentes anarco-sindicalistas norte-americanos, que ficaram conhecidos como os “Mártires de Chicago”, devido à sua condenação à morte num julgamento-farsa e à consumação da execução, por enforcamento, de quatro deles. 

Simultaneamente, a nova classe dominante, em nome dos princípios jurídicos da liberdade contratual e da autonomia da vontade das partes, tratou de impor que a fixação e regulamentação das condições de trabalho fosse feita individualmente, isto é, ao nível de cada contrato de trabalho, no qual, naturalmente, a vontade da parte mais forte – o patrão – se sobrepunha sempre à da parte mais fraca (aquela que, de seu, apenas possuía a força dos seus braços), impondo-lhes as mais desumanas condições.

Ora, a estes desígnios da classe dos capitalistas, sempre os trabalhadores souberam opor a sua disposição de luta, a sua unidade, a sua organização e o seu combate. E importa relembrar toda esta experiência histórica, precisamente porque ela nos demonstra que, em todos os períodos mais agudos de crise do sistema capitalista, se intensificaram sempre os ataques aos trabalhadores, aos seus direitos e, em particular, à sua acção colectiva.

Por outro lado, assistiu-se sempre a processos cada vez mais apurados de anestesia colectiva e de desarmamento ideológico daqueles que, afinal, tudo constroem. E tal tem ocorrido de forma particularmente acelerada na época actual, com o império dos ecrãs e o cada vez mais passivo e acrítico consumo daquilo que esses mesmos ecrãs, por via de algoritmos programados para esse fim, transmitem diariamente – tendência que contribui para a formação de uma multidão crescente de zombies (ou de “cretinos digitais”, na célebre expressão de Michel Desmurget), cada vez mais formatados para não pensarem, nada questionarem, tudo aceitarem e, assim, cumprirem servilmente tudo o que lhes for ordenado.

Este profundo acriticismo, perfeitamente planeado e executado, manifesta-se também no permanente destilar de ideologia marcada pelo mais agudo dos individualismos, bem como na contínua mistificação da realidade e na tentativa de impor a ideia da pretensa impossibilidade da sua transformação. Tudo isto consubstancia uma autêntica “missa”, que prega, desde logo, a absoluta inevitabilidade daquilo que existe, a completa ausência de alternativas e a total inutilidade de qualquer esforço de mudança. Prega ainda o suposto “fim da História” e a alegada falta de sentido em se falar em Esquerda e Direita, sustentando um autêntico pântano ideológico, no qual os princípios éticos desaparecem por completo, para dar lugar ao absoluto privilégio do superficial, do espectacular, do imediato e do mais profundo dos oportunismos.

Utiliza, de forma calculada e sistemática, a cultura do medo, do vexame e da humilhação, disseminada de alto a baixo na sociedade. E, à boa maneira do Estatuto do Trabalho Nacional do fascismo, fala em “colaboradores” em vez de “trabalhadores”, em “benefícios” em vez de “direitos”, em “reestruturações” ou “downsizings” em vez de “despedimentos”, em “reajustes” em vez de cortes salariais, em “capital humano” ou até em “Pessoas e Cultura” em vez de gestão de pessoal, etc., etc., etc.

Importa notar também que as associações representativas dos trabalhadores surgiram, inicialmente, como verdadeiras instituições de socorros mútuos – a chamada “fase mutualista” do sindicalismo – destinadas a acudir a situações de infortúnio, como a doença ou o acidente de trabalho. Mas, logo depois, e mesmo enfrentando proibições e perseguições, essas estruturas associativas foram-se afirmando, progressivamente, como órgãos de luta: primeiro, de luta económica, nomeadamente por melhores salários e por horários de trabalho menos penosos, para, finalmente, se tornarem órgãos de luta política e social, através dos quais os trabalhadores procuravam combater também, para não dizer sobretudo, pela construção de uma sociedade melhor e mais justa, a todos os níveis.

Deste modo, para este sindicalismo activo e ofensivo, por assim dizer, era igualmente importante que os trabalhadores se unissem, se organizassem e combatessem não apenas por salários dignos ou por adequadas condições de Segurança e Saúde, mas também por uma Educação, uma Saúde e uma Habitação de qualidade e acessíveis a todos, e não apenas a uma pequena minoria, bem como pela Paz, contra as guerras imperialistas e genocidas. Porém, sobretudo a partir dos anos 80 do século passado, assistiu-se a um recuo dramático e profundamente negativo, não apenas das organizações sindicais e outras entidades representativas dos trabalhadores, mas também das organizações políticas, nomeadamente daquelas que se diziam defensoras desses mesmos trabalhadores.

Assim, em nome do pretenso “apartidarismo” dos sindicatos, assistiu-se à sua completa despolitização e mesmo dessocialização. Estes deixaram de se ocupar das grandes questões da sociedade e aceitaram voltar a ser meros defensores de interesses socioprofissionais, ou seja, instrumentos de uma luta económica mais básica.

O tão glosado “Pacto Social” – alcançado sob a bandeira recauchutada dos tão apregoados, durante o corporativismo, “Bem Comum” e “Paz Social” – consubstanciou, assim, uma “solução” profundamente negativa para os trabalhadores. Esta consistiu em que estes, bem como as suas organizações, aceitassem, em troca da promessa de não serem efectuados mais despedimentos ou da concessão de uns miseráveis cêntimos de aumento salarial, abdicar de direitos fundamentais de extrema relevância, desde logo o basilar e essencial direito à greve, até a direitos como os das creches infantis para os filhos, a natureza automática das promoções ou, pelo menos, os mecanismos de controlo dos actos de gestão, em matéria de avaliação e progressão na carreira, etc., etc., etc.

A linguagem sindical e, paralelamente, a linguagem política deixaram de ser a da luta por uma sociedade mais justa, sem exploração nem opressão, para se tornarem a do miserabilismo dos aumentos remuneratórios, e pouco, ou mesmo nada, mais do que isso.

Ora, foi precisamente neste terreno mole do oportunismo e do derrotismo que a classe capitalista conseguiu, através das sucessivas reformas laborais que levou a cabo (e até com o apoio expresso de algumas centrais sindicais e de partidos ditos de esquerda) atacar a contratação colectiva, estabelecendo a regra da sua caducidade, e restringir a acção colectiva, limitando e diminuindo os direitos das organizações sindicais e restringindo fortemente o direito à greve, designadamente através do recurso sistemático à definição de verdadeiros serviços máximos como “serviços mínimos” e ao decretamento da requisição civil. E, uma vez individualizadas desta forma as relações de trabalho, passou a ser possível que os contratos individuais previssem condições menos favoráveis do que a própria lei e que atribuíssem todos os poderes aos patrões (nomeadamente no que toca ao tempo, ao local e às funções a desempenhar) em nome da já referida (e de facto inexistente, para quem de seu apenas tinha a força dos seus braços) liberdade contratual.

Saúde, Educação, Justiça – designadamente laboral –, Segurança e Saúde no trabalho, Paz, Desenvolvimento Económico e combate à Pobreza desapareceram por completo, ou quase, do mapa dos sindicatos e dos partidos políticos de esquerda. Os primeiros passaram a aceitar o seu papel e natureza de meros órgãos de representação socioprofissional; os segundos, por sua vez, admitiram que a distinção entre Esquerda e Direita, o papel das ideologias, o pensamento crítico e a mobilização dos cidadãos para a construção de um mundo melhor passassem a ser olhados como “chão que deu uvas”, uma coisa ultrapassada e inútil, com os consequentes, e cada vez mais agravados, desarmamento ideológico e deliquescência política.

Tendo-se caminhado, praticamente sem resistência digna desse nome, sempre por este caminho, a situação chegou, também entre nós, a um ponto tal que ou nos erguemos e lutamos, ou continuamos a virar a cara à luta e a olhar para o lado… e ajoelharemos para sempre! 

Não se trata de nenhuma figura de estilo! 

Quando temos um Governo que já demonstrou, de forma clara, a intenção de aplicar o programa do Partido fascista Chega (ainda que, por agora, formalmente sem este) desde logo em matéria de imigração, mas também no que respeita aos direitos dos trabalhadores…

Quando Ventura afirma que se for Governo, e Portugal vier a ser novamente condenado pelo Tribunal Europeu dos Direitos Humanos por violação da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, retirará o país da mesma…

Quando, relativamente à Educação, a grande medida apresentada pelo Executivo de Montenegro é deixar tudo na mesma, aumentar as propinas e endividar os estudantes através de empréstimos bancários… 

Quando os nossos governantes demonstram um absoluto e repugnante servilismo perante os manejos militaristas da NATO, e um silêncio cúmplice, igualmente repugnante, face ao genocídio em curso em Gaza, com as mãos sujas de sangue…

Quando nos tentam convencer de que é normal o encerramento sistemático de diversas urgências hospitalares, ou que o tempo de triagem (não de atendimento) no principal hospital do país, o Hospital de Santa Maria, seja, por exemplo, de seis horas…

Quando um milhão e seiscentos mil cidadãos portugueses não têm médico de família e o essencial da política governamental assenta na privatização das unidades e serviços de saúde que sejam mais rentáveis…

Quando aumentam todos os dias os despejos, em particular de pessoas idosas, enquanto os jovens não conseguem aceder a habitação condigna – tudo isto enquanto as cidades são transformadas em parques de hotéis, entregues ao livre campear dos negócios imobiliários…

Quando se continuam a registar, anualmente, cerca de duzentos mil acidentes de trabalho…

Quando a chamada “economia informal” ou “não registada” – ou seja, aquela que existe e funciona completamente à margem da lei e dos direitos de quem trabalha – já representa mais de um terço de todo o produto interno bruto…

E quando campeiam, cada vez mais, a arrogância e a violência dos fascistas contra todos os que os critiquem ou lhes façam frente…

… É tempo de dizermos: BASTA!

Proclamemos, pois, o fim da submissão e da indiferença! Chegou a altura de nos erguermos em luta, por toda a parte e por todos os meios! A defesa dos nossos direitos faz-se, sobretudo, na rua e através da mobilização dos esforços de todos! Organizemo-nos, como fizemos em 1974 e 1975, em comissões de moradores, de trabalhadores, de estudantes, de professores, de doentes, de profissionais de saúde, de jovens, de idosos, de pessoas da cultura para discutirmos os nossos problemas, decidirmos colectivamente as medidas a adoptar e as colocarmos em prática. Para, em liberdade, elegermos e demitirmos os nossos representantes, e exigirmos que nos prestem contas da sua actividade.

E qual deve ser a argamassa, o cimento unificador, que caracterize e una todas estas formas de organização e de luta? Deve tratar-se de um verdadeiro Programa de Acção, política e social, assente, pelo menos, nos seguintes grandes pontos:

1. Defesa intransigente dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, em particular dos mais vulneráveis, com sancionamento exemplar de todos os que, especialmente através da violência (que os fascistas adoptam cada vez mais), os ataquem ou violem.

2. Defesa da Paz, com a saída da NATO e a denúncia e o combate implacável ao genocídio praticado pelo governo sionista de Israel, através do corte de relações diplomáticas, da imposição de sanções e da expulsão de organizações cujas deliberações Israel reiteradamente desrespeita.

3. Na Saúde, defesa e melhoria do Serviço Nacional de Saúde, com o devido apetrechamento técnico, material e humano, garantindo o seu adequado funcionamento; e a recusa firme das negociatas feitas com – e à custa da – saúde dos cidadãos, como as que visam a privatização das Unidades Locais de Saúde.

4. Defesa da Habitação com dignidade e acessível para todos, mediante a municipalização dos solos; imposição de zonas de construção de habitação acessível em todos os Planos Directores Municipais (PDM); e a imposição de arrendamento das casas devolutas (que, só em Lisboa, são mais de 48 mil!).

5. No Trabalho, defesa prioritária do direito à greve; revogação de todas as medidas laborais da Troika; fim da caducidade da contratação colectiva e da possibilidade de esta, ou os contratos individuais de trabalho, estabelecerem condições menos favoráveis às previstas na lei; imposição de que as indemnizações por despedimento sejam, no mínimo, de um mês (e não de 14 dias) de remuneração mensal (e não apenas do salário base) por cada ano de antiguidade; e reforço dos mecanismos de fiscalização e penalização das práticas ilegais de gestão, como a discriminação e o assédio moral.

6. Justiça acessível a todos, com a redução ou mesmo eliminação das taxas de justiça, especialmente nas questões laborais, habitacionais e de Família e Menores; e instituição da obrigação de prestação regular de contas pelos responsáveis da administração da Justiça.

7. Na Educação, transformação da actual lógica do sistema de ensino, orientando-o para aquilo que verdadeiramente deve ser: um instrumento de desenvolvimento do pensamento crítico e de formação de cidadãos activos e conscientes, com particular reforço das Humanidades e a valorização da função do Professor.

Chegou a hora. À luta, pois, com todos e por todos

Por Justiça, por Liberdade, por Democracia!

António Garcia Pereira

3 comentários a “Resistir, organizar, transformar: por um novo programa de acção popular”

  1. Alvaro Sampaio diz:

    Excelente artigo. Bem estruturado e com um verdadeiro plano de acção política.

  2. João Ribeiro Mendes diz:

    A arrogância e ignorância generalizadas, estão a elevar ao expoente máximo a prática da prepotência na nossa sociedade, com uma regressão civilizacional sem precedentes.

  3. Helena Fraga diz:

    Excelente artigo! Quero voltar a ler… “Chegou a hora!”

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