O Acagaçado!

Não há palavra mais certeira. “Acagaçado” define como poucas o estado anímico daquele que, dominado pelo medo, se arrasta pela vida como quem atravessa uma corda bamba, esticada entre dois pontos inalcançáveis, sobre um abismo que não perdoa. Cada passo é dado com a hesitação do condenado, sem rede, sem plano e sem vergonha — mas com muito, muito pânico.

O homem em questão, há muito tempo que se habituou a confundir convicção com conveniência. Mente com a leveza de quem respira, com a desfaçatez de quem já não distingue promessas de papel de rascunhos de ideias que nunca foram para cumprir. Palavras não lhe faltam — actos, é que nem vê-los. Sempre acima da lei, acima da crítica, acima da moral. Ou pelo menos é aí que se julga, inchado de um ego tão grande quanto a sua falta de coerência.

Surge-nos agora com um sorriso amarelo, muito gasto e muito cínico, desses que mais parecem uma careta de quem tenta esconder o desespero com dentes cerrados. Sorriso de quem sabe que o fim está próximo, mas ainda assim insiste em dançar no convés do navio, enquanto este já mete água por todos os lados.

Era o homem do “não é não”, lembram-se? Da firmeza impostada, do muro onde se encostava com pose de quem nunca trairia os seus próprios princípios. Pois bem, hoje dá o braço ao insultuoso, ao ofensivo, ao inaceitável. Ao chefe de bando que antes o humilhou e agora o abraça — e ele, num síndrome de Estocolmo político, retribui, todo contente. É a versão institucionalizada daquele velho ditado: “só o marido é que não sabe que é marido ofendido!”.

Pior: finge que não vê o que já está à vista de todos. Que os sinais estão aí, berrantes, estampados nos jornais e nas paredes: directores de escola indignados, especialistas em alerta, o país que recua décadas por decisões que cheiram a censura e cheiram mal. Quando se corta a sexualidade da cidadania e se disfarça com moralismos ocos, não é por prudência, é por medo — ou pior, por cobardia e cumplicidade. Os mesmos que não há muitos anos enchiam a boca com os modelos nórdicos, os verdadeiros sociais-democratas, agora vergam-se perante ideologias com saudades da régua e da palmatória, do obscurantismo disfarçado de moralidade religiosa mas poeirenta.

E o homem, o Acagaçado, vai seguindo. Ou porque acredita que será salvo pelo novo aliado, ou porque já não acredita em nada — excepto em salvar a própria pele. Mas o que não percebe, ou recusa perceber, é que aqueles que hoje o usam como escadote, amanhã o empurrarão pelas escadas abaixo sem remorso. Já o diz a história, que costuma falar alto e claro aos que param para a ouvir. Pena que ele não a oiça.

O mais triste é que este filme é velho. Os moralismos hipócritas, os falsos pudores que escondem práticas bem menos castas — os véus das beatas que tapam tudo menos a intenção de apanhar o padre na sacristia, o sacristão ou outro devoto, os padres zelosos que se dedicam mais ao corpo do que à alma das suas paroquianas — já conhecemos bem. Nada de novo, apenas um regresso à velha fórmula do medo e do silêncio, agora com roupagem nova e discurso de “defesa da família”.

E o homem, pálido e vitaminado apenas por doses cavalares de ilusão, vai-se deixando levar. Pelos escudeiros ferozes, pelos estrategas parlamentares da confusão, pelos Almeidas centristas de expressão oleosa que se colam a tudo e a todos, tornando-se indistinguíveis dos venturosos que fingem combater.

O país? Vai ficando a ver, com a paciência dos santos, o desalento dos lúcidos e a esperança dos teimosos. Porque é preciso querer, e querer muito, para travar este desvario que nos quer empurrar para o passado. É preciso coragem para deixar de estar acagaçado — e começar, finalmente, a levantar a voz.

Carlos Pereira Martins

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