O discurso do ódio: Chega, Ventura e as mentiras contra a comunidade cigana

O essencial da propaganda fascista utiliza, desde há décadas, a técnica de cavalgar o descontentamento popular face às más condições de vida e à falta de Saúde, Habitação e Justiça com que o povo diariamente se confronta. Simultaneamente, procura criar inimigos, apresentados pública e repetidamente como os únicos culpados por todos esses males, procurando assim arregimentar e unir as suas próprias tropas. Assim foi no Terceiro Reich, como o foi na ditadura fascista, e como está a ser, presentemente, na propaganda dos partidos e movimentos de extrema-direita, como o Chega, o Ergue-te, o Habeas Corpos, o 1143 e outros quejandos.

Deste modo, se os salários são baixos e as pensões ainda mais, se a Saúde não funciona, se não há Habitação nem Justiça acessíveis e condignas, isso deve-se, segundo essa narrativa, a uma corja de outros que não os chamados “portugueses de bem”, ou seja, os imigrantes, os pretos e indostânicos, os muçulmanos, os homossexuais e os ciganos. Estes, segundo essa mesma narrativa, mil vezes repetida, não trabalham porque não querem, vivem de expedientes e de actividades ilícitas, são subsidiodependentes, têm assistência médica gratuita e, no fundo, vivem “à grande”, sempre à custa dos que trabalham, descontam uma vida inteira e tudo têm de pagar do seu bolso.

Este discurso assenta sempre, e igualmente, no apelo indirecto – ou mesmo directo – ao ódio e aos sentimentos mais rasteiros, bem como no incitamento à violência contra essas minorias, generalizando, normalizando e banalizando cada vez mais tais atitudes. E conseguem fazê-lo, em grande medida, por responsabilidade – há que reconhecê-lo – dos partidos, organizações e pessoas que se reclamam de esquerda, anti-racistas e anti-xenófobas, os quais, na convicção de que, assim agindo, conseguirão manter ou conquistar votos, se calam perante a vaga da demagogia e da mentira, furtando-se a demonstrar a falsidade dos argumentos apresentados pela extrema-direita.

As comunidades ciganas são hoje – e, aliás, têm-no sido ao longo da História – vítimas particularmente marcadas deste tipo de actuação política e social. Contudo, a situação tem-se agravado de forma muito clara nos tempos mais recentes. Há, assim, autarquias que negam ou retiram apoios – quaisquer que sejam – a essas comunidades ciganas ou a algumas das suas associações apenas porque um elemento do Chega tratou de desencadear esse mesmo tipo de ataque demagógico e insultuoso. E este é, aliás, sempre amplificado, quer por uma poderosa máquina de exploração das redes sociais, aprendida e treinada com o partido fascista espanhol VOX, quer por uma comunicação social onde desapareceu qualquer vestígio de espírito crítico, campeando, em seu lugar, o culto do sensacionalismo e de tudo o que dá audiências.

Hoje em dia muitos pais e mães ciganos vêem-se já obrigados a proteger os filhos do bullying nas escolas e forçados a explicar-lhes por que razão são apelidados de criminosos, de ociosos, de subsidiodependentes ou, até, de chulos. E muitos membros dessas mesmas comunidades receiam sair à rua, ou simplesmente ir ao supermercado ou ao café, evitando exercer a sua mais que fundamental liberdade de circulação, apenas para não terem de suportar insultos, dichotes injuriosos, ameaças e, por vezes, até a própria violência. 

Ora, tudo isto representa o mais absoluto desprezo pela dignidade do ser humano e a mais completa violação – ainda que, frequentemente, tolerada, se não mesmo aceite e incentivada – dos mais elementares princípios de uma sociedade verdadeiramente livre e democrática. E torna-se, por isso, tanto mais importante quanto urgente desmontar as mais frequentes e odiosas falsidades sobre as comunidades ciganas, incessantemente propagadas pela extrema-direita. 

Primeira mentira: 

Os ciganos recebem mensalmente largas centenas, senão mesmo milhares, de euros de RSI – Rendimento Social de Inserção, pago pelo Estado e, por isso, não trabalham nem querem trabalhar, preferindo viver à custa dos outros, os tais “portugueses de bem”.

Ora, a totalidade do valor pago pela Segurança Social a título de RSI corresponde, segundo dados da Pordata, a menos de 1% do total das despesas da Segurança Social. E, segundo essa mesma fonte, somente 3,8% dos beneficiários deste apoio são de etnia cigana, não existindo, para estes, qualquer tratamento diferente ou mais favorável do que para os restantes beneficiários.

Mais! O valor pago a título de RSI corresponde apenas à diferença entre o montante total das prestações aplicáveis e o valor equivalente e 80% dos salários ou a 100% de todos os outros rendimentos recebidos por cada agregado familiar, sendo que, em 2025, o RSI é de 242,23€ mensais por titular, 169,56€ por cada um dos restantes adultos do agregado e 121,12€ por cada criança ou jovem menor de 18 anos.

Significa isto que, por exemplo, numa família com 3 adultos e 2 crianças, o valor total do RSI abstractamente atribuível será de: 

  • Titular: 242,23€
  • Segundo adulto: 169,56€
  • Terceiro adulto: 169,56€
  • Criança 1: 121,12€
  • Criança 2: 121,12€

Total do RSI: 242,23€ + 169,56€ + 169,56€ + 121,12€ + 121,12€ = 823,59€

Mas se um dos membros receber o salário mínimo nacional (870€), então há que deduzir 80% desse salário:

  • 80% de 870€ = 696€

RSI a receber: 823,59€ – 696€ = 127,59€

Noutra hipótese, se uma das cinco pessoas do agregado tiver uma pensão de 350,00€, o RSI para as mesmas cinco pessoas será de: 

  • 823,59€ – 350,00€ = 473,59€. Ou seja: 94,72€ mensais por cabeça. 

Tudo isto para além de que, mesmo no conjunto dos beneficiários do RSI, este montante é insuficiente para garantir um nível de vida minimamente digno, o que prova que não se trata de “viver à grande”, mas antes de um apoio mínimo de sobrevivência.

Onde fica, afinal, o tão propalado pretenso recebimento, pelas famílias ciganas, dos alegados milhares de euros por mês em subsídios sociais, como o RSI? Aliás, esta mentira tem sido alimentada de forma particularmente insidiosa nas redes sociais, onde, há alguns anos, circulou amplamente a imagem de um alegado cheque passado pela Segurança Social, em nome de um cidadão cigano, com um valor de milhares de euros, apresentado como prova irrefutável de que os ciganos receberiam fortunas em RSI. A fraude era evidente para quem conhece os montantes do RSI, mas a mentira foi partilhada milhares de vezes, reforçando preconceitos e alimentando o discurso do ódio. Mais recentemente, essa mesma imagem foi reciclada, trocando-se o nome por um de origem indiana ou nepalesa, para agora atacar os imigrantes com a mesma narrativa falsa. E, quando alguns utilizadores das redes sociais decidiram, em tom de denúncia, colocar no cheque o nome de André Ventura, líder do Chega, para expor o absurdo da manipulação, as partilhas foram residuais. O que revela não só a facilidade com que estas campanhas de desinformação são adaptadas, mas também a predisposição de muitos para acreditar em mentiras que confirmem os seus preconceitos, ignorando, quando lhes convém, a evidência da falsidade.

Além disso, segundo o Inquérito às Condições, Origens e Trajectórias da População Residente em Portugal (ICOT), publicado pelo Instituto Nacional de Estatística (INE) em 24 de junho de 2024, 51% das pessoas ciganas afirmaram ter sentido discriminação, designadamente no acesso e na manutenção do emprego. Por isso, o seu principal objectivo é, precisamente, conseguir trabalho e não, de todo, viver de subsídios.

Segunda mentira: 

Quase todos os ciganos são pessoas ricas e abastadas, vivendo muito melhor do que a maioria dos portugueses. 

Ora segundo o próprio Conselho da Europa e os dados da ADFUE – Agenda Europeia dos Direitos Fundamentais, 96% da população cigana residente em Portugal vive abaixo do limiar mínimo de pobreza. E, de acordo com o Estudo Nacional sobre as Comunidades Ciganas, elaborado pelo Observatório das Comunidades Ciganas do ISCTE, 27% ainda habitam em barracas, especialmente no Algarve, e 48% dos inquiridos indicaram já ter passado ou estarem a passar fome. Além disso, as comunidades ciganas em Portugal apresentam a mais elevada taxa de doenças crónicas e a mais baixa esperança de vida de toda a União Europeia – inferior a 60 anos.

Terceira mentira: 

Os ciganos são uns malandros que vieram de fora do país para cá viver à nossa custa, não pagam impostos e usufruem de assistência médica e até de habitação gratuitas, que, porém, os portugueses têm de pagar do seu bolso.

Segundo o mesmo relatório ICOT, publicado pelo INE, 88,1% das pessoas identificadas como ciganas não têm qualquer “background migratório”, ou seja, são não apenas nascidas em Portugal, como também o são os seus pais e avós, numa percentagem que, aliás, supera a da população total: 95,3% dos ciganos nasceram em Portugal e 96,7% têm ascendência portuguesa, valores superiores aos da generalidade da população residente, que são, respectivamente, de 87,5% e 95,8%.

Para além disto, uma percentagem elevadíssima da população cigana (72,6%) integra os 20% da população com rendimentos mais baixos, pelo que necessita de apoios sociais. E importa sublinhar que não existe, de todo, qualquer regime diferenciado ou mais favorável para a população cigana, quer no acesso ao SNS, quer no pagamento de impostos.

Quarta Mentira: 

Os ciganos têm património, nível e condições de vida bem superiores aos da generalidade dos restantes cidadãos.

O mesmo relatório ICOT demonstra a completa falsidade desta pseudo-verdade, sistematicamente propagada por André Ventura. A população cigana apresenta valores muito abaixo da média nacional – isto é, de toda a população portuguesa – em vários dos mais relevantes indicadores da qualidade e das condições de vida, a saber:

  • Propriedade de bens: 30,6%, contra 70,8% da população total;
  • Conforto térmico da habitação: 46,8%, contra 72,3% do total;
  • Acesso à internet: 70%, contra 91,8%;
  • Posse de automóvel: 55,1%, contra 75,6%.

Esta é a realidade, nua e crua, que resulta dos números oficialmente apurados e publicados, e que demonstra que André Ventura e Companhia mentem despudoradamente para acicatar ânimos, alimentar ódios, virar cidadãos contra cidadãos e procurar convencer, através de mentiras mil vezes repetidas como estas, uma parte da população a dar-lhes o seu apoio e o seu voto, na infantil, mas muito perigosa, ilusão de que será perseguindo, agredindo, esmagando e expulsando os tais “inimigos” que todos os problemas do Povo, afinal, se resolverão…

É frequente ouvir-se, nas conversas de café e nas redes sociais, a velha frase feita de que “os ciganos têm um Mercedes à porta da barraca”. Este estereótipo, para além de redutor e injusto, ignora a realidade social concreta destas comunidades. Aliás, uma viatura, que é muitas vezes usada para trabalho ambulante, é apresentada como símbolo de riqueza, quando, na verdade, esconde uma vida marcada pela precariedade habitacional, pela exclusão social e por rendimentos muito abaixo do limiar da pobreza. Tal como noutras comunidades desfavorecidas, como os moradores de bairros sociais, também se dizia que certos bens de valor eram fruto do tráfico de droga ou de outras actividades ilícitas. E, de facto, por vezes isso pode corresponder à verdade. Mas a existência de casos pontuais não autoriza, em caso algum, a generalização abusiva e preconceituosa de que todos vivem do crime ou de expedientes ilícitos.

Importa deixar claro que comportamentos ilícitos, práticas abusivas ou aproveitamento indevido de apoios sociais não são exclusivos de nenhum grupo social ou comunidade étnica. Existirão, naturalmente, casos pontuais em diversos sectores da sociedade portuguesa, incluindo na comunidade cigana, tal como em muitas outras comunidades e classes sociais. Os abusos, quando existem, não podem nem devem ser ignorados – mas é fundamental denunciar, com igual firmeza, a manipulação que transforma situações individuais em arma de estigmatização, perseguição e diabolização de uma comunidade inteira. Este é o verdadeiro abuso que urge combater!

É que todas estas mentiras só servem para esconder as verdadeiras causas dos problemas sociais em Portugal, como as desigualdades estruturais, a precariedade laboral, os baixos salários, as pensões de miséria, a especulação imobiliária e a falta de habitação condigna, entre outros, desviando, assim, o foco do debate para um bode expiatório conveniente.

Compete, pois, agora aos democratas e, em particular, àqueles que se apresentam como defensores do povo, travar um combate sem tréguas contra a mentira e contra o discurso do ódio, de que, ao longo da História, sempre foram feitas as mais venenosas serpentes da Política. 

A grande questão, hoje como sempre, é simples e incontornável: quem escolhe estar à altura dessa responsabilidade – política, cívica e ética – e quem, pelo contrário, prefere virar a cara e deixar o terreno livre aos mensageiros do medo, da mentira e do ódio?

António Garcia Pereira

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