O regresso do Império do Medo

Ao longo da História, o medo revelou-se um instrumento decisivo na consolidação e manutenção de todas as formas de poder autoritário. O medo de ser perseguido, preso, torturado e até assassinado, como nos tempos da Inquisição ou das ditaduras nazi e fascista. O medo de perder a casa. O medo de ser prejudicado ou mesmo de perder o emprego e, logo, o ganha-pão. O medo de ser escarnecido, hostilizado ou até agredido. O medo da morte na fogueira, imposto pelos esbirros da Inquisição àqueles que não abjurassem das suas convicções – como sucedeu com Giordano Bruno – era não só um bárbaro castigo para os que desafiassem a autoridade constituída e os seus dogmas, como também um sério aviso àqueles que, porventura, pensassem adoptar semelhante postura, assim os dissuadindo de a tomar.

Entre nós, e antes do 25 de Abril, o conhecimento da existência dos milhares de bufos informadores da Pide e a subsequente prisão, tortura e até assassinato dos denunciados, desempenhava o mesmo papel. E a imposição, de alto a baixo da sociedade, da lógica do “ordens são ordens e são para cumprir” e do “manda quem pode, obedece quem deve” era assegurada não só pela aplicação do duro castigo aos desobedientes – os “subversivos”, como então se dizia – mas também pela “mensagem” que assim se fazia passar à restante sociedade: “se pensarem em fazer o mesmo, já sabem o que vos espera…

Ora, poder-se-ia pensar que, passado meio século sobre o derrube do regime fascista, esse metódico e institucional uso do medo teria passado à História. Mas não só não passou, como, em particular nos últimos tempos, se tem assistido ao seu sucessivo recrudescimento. O império do medo está de volta, acompanhado, aliás, por uma crescente opacidade no funcionamento das várias organizações e até de instituições e organismos, públicos e privados. E assim, desde logo, temos a gestão “científica” do medo, teorizada e defendida, como já por diversas vezes referi, pelo Prémio Nobel da Economia e arauto da famigerada “Escola de Chicago”, Milton Friedman. Foi ele quem sustentou, na sequência – e a propósito – da catastrófica destruição de Nova Orleães pelo Furacão Katrina, que essa era uma excelente ocasião para, aproveitando o estado de choque das populações, impor medidas como a privatização da grande maioria das escolas.

Tal como viríamos a assistir também, aquando da crise financeira, quando, para procurar justificar as brutais medidas do “Memorando da Troika” – ou até para ir além delas… –, se acenava continuamente com o espectro da bancarrota do país, da pobreza generalizada e do desemprego em massa, avançando então com máximas como: “não há alternativa” e “mais vale um mau emprego do que nenhum emprego”.

Voltámos a assistir a algo semelhante quando, sob a invocação do combate à pandemia da covid-19, se procurou impor – muitas vezes de forma manifestamente inconstitucional – medidas claramente restritivas de direitos fundamentais. Desde a insólita suspensão do direito à greve até à imposição de confinamentos e recolheres obrigatórios aplicados apenas a alguns, e só em determinados dias. E para aqueles que então procuraram defender a respectiva justeza com base na sua alegada excepcionalidade e temporaneidade, veja-se, como ainda hoje, diversos organismos públicos (de conservatórias a serviços de finanças, por exemplo) continuam a não assegurar o legalmente obrigatório atendimento presencial, impondo marcações e consultas exclusivamente online. Isto, dois anos e meio depois da declaração formal do fim do estado de alerta e da cessação da vigência de todos os diplomas legais aprovados no âmbito da pandemia (a 30/09/22)!

Relembremos também o tom ameaçador usado pelo agente do SIS que, arvorando-se em órgão de polícia criminal – que não é – foi “recuperar” o computador de serviço de Frederico Pinheiro, o ex-adjunto do ex-ministro João Galamba, perante a inicial reticência daquele: “Isto está a escalar, o Frederico está a escalar e não pode ser. Se não entregar vai ter problemas. Nós não queremos que isto tenha problemas”.

Por outro lado, no mundo do trabalho, o assédio moral foi convertido numa autêntica “ferramenta de gestão”, isto é, num eficaz instrumento de punição e condicionamento do comportamento dos trabalhadores. Estimando-se que entre 500 e 700 mil trabalhadores e trabalhadoras sejam, ou já tenham sido, vítimas de processos graves de assédio moral, a verdade é que a fraquíssima resposta do sistema de Justiça a essa barbárie laboral (nomeadamente com todo o peso do ónus da prova lançado sobre os ombros da vítima, e com indemnizações absolutamente irrisórias, mesmo nos poucos casos dados como provados) faz com que, também neste campo, o crime, afinal, compense. E já se chegou mesmo ao ponto de se tornar usual – e de se pretender apresentar como normal e aceitável – a inclusão de cláusulas contratuais, nomeadamente em mútuos acordos de rescisão dos contratos de trabalho, em que o trabalhador, para poder receber os seus créditos, tem de declarar que abdica de falar sobre a empresa, os seus administradores e gerentes, e até sobre todas as outras empresas do grupo e respectivos administradores!…

Também é conhecida a forma como, dentro de corporações mais fechadas (das Forças Armadas e forças policiais às universidades, passando por colégios internos, magistraturas e igrejas, por exemplo), mesmo a prática dos maiores abusos, inclusive de natureza sexual, é protegida e mantida impune pela lei do silêncio e do medo, execrando-se e perseguindo-se, implacável e miseravelmente, todo aquele que ouse quebrá-la, denunciando tais abusos e os seus autores. E as mais violentas e sórdidas “praxes” têm precisamente o objectivo de, também em nome da lógica do “o melhor é comeres e calares” e do “amanhã poderás fazer a outros o que hoje te fazem a ti”, perpetuar essa forma de organização social.

Mais ainda: se, hoje, no mundo laboral privado, impera, designadamente em nome da “confidencialidade” e da “lealdade”, a lógica do arbítrio e do medo, o mesmo se verifica, e de forma crescente, em toda a sociedade e de alto a baixo na Administração Pública. São, assim, raríssimos os juízes e procuradores que, não pertencendo ao “triangulo dourado” dos Conselhos Superiores, do Centro de Estudos Judiciários ou do Sindicato, ousam falar livremente e criticar o que está mal na Justiça. Tal como nenhum oficial da Marinha no activo, no tempo de Gouveia e Melo como Chefe do Estado-Maior da Armada, se atrevia, ou ainda hoje se atreve, a contestar decisões ou posições erradas do próprio.

Um professor ou investigador considerado “fora da caixa”, por ousar discordar abertamente das práticas de “lealdade” e de “reverência” reinantes nas nossas Universidades, dificilmente escapará a ver a sua carreira irremediavelmente prejudicada. À imposição, designadamente à custa do medo, da “lei da rolha”, acresce a absoluta opacidade: tudo é confidencial, tudo é reservado, tudo é secreto.

É assim que a “cultura empresarial” reinante, sobretudo em certos sectores (como o das Novas Tecnologias, mas também em empresas como, por exemplo, a TAP, em particular nos tempos do reinado da Madame Christine), procura impor o segredo quanto às condições remuneratórias de cada trabalhador, ou então punir com despedimento a revelação de um negócio ruinoso para os interesses da própria empresa.

É assim também que, por exemplo, o Conselho Superior da Magistratura (CSM), ao ser solicitado pelo jornal online “Página Um” a disponibilizar informações que nada tinham de sigilosas, recusou fazê-lo. Ignorou a recomendação da Comissão de Acesso a Documentos Administrativos (CADA), não respeitou a sentença do Tribunal Administrativo que lhe ordenava essa disponibilização e só cedeu, finalmente, após o Presidente do CSM (que é também Presidente do Supremo Tribunal de Justiça) ter sido condenado, na sequência de confirmação da decisão pela 2.ª instância, de novo recurso e nova acção do Tribunal Administrativo, e ao fim de três anos de luta judicial, a uma sanção compulsória de multa de 50€ por cada dia que passasse sem que fosse concedido o acesso solicitado. É que estava em causa o acesso ao inquérito acerca da distribuição do caso Marquês ao Juiz Carlos Alexandre, e o CSM é o órgão constitucionalmente previsto para a gestão e disciplina dos juízes!…

Mas um dos exemplos mais significativos de onde conduz esta sociedade do medo, e até mesmo do terror, e do silêncio que a encobre, é o das vítimas de violência doméstica. Sobre a sua dramática situação, não é mais possível continuarmos a permitir um silencioso e um esquecimento tão cúmplices quanto dolorosos.

No ano de 2024, a PSP e a GNR registaram mais de 30.000 queixas, que representam, ainda assim, apenas uma pequena parcela da realidade – provavelmente cerca de ¼ do total das situações. Verificaram-se 22 homicídios em contexto de violência doméstica: 19 mulheres e 3 homens. Mas, como bem sabe o grupo “Por um País mais Justo” – a que tenho a honra de pertencer, conjuntamente com a Dra. Manuela Eanes, o Prof. Doutor Rui Pereira, a Dra. Dulce Rocha, a Dra. Isabel Aguiar e a pintora e activista Francisca Magalhães de Barros – e sobretudo a Francisca (porque lhe chegam inúmeros relatos diariamente), tudo começa, desde logo, com agressões contínuas, quase sempre entre quatro paredes, e muitas vezes perante os próprios filhos. Mas são também as ameaças de morte, repetidas e gravíssimas; os actos de despersonalização (como as mutilações, o rapar do cabelo e das sobrancelhas); as violações cometidas sistematicamente sob o “sagrado” manto do casamento ou da vida em comum, e sob a impunidade garantida pela manutenção da velha e anacrónica máxima: “entre homem e mulher não metas a colher”.

Mas é também a vergonha, perante um clima social que tolera a violência e censura a agredida; a dependência económica, que faz com que esta não tenha para onde ir; o terror de que, se se queixar ou fugir e o agressor a apanhar, ainda seja pior; e, para mal e vergonha de todos nós, a profunda desconfiança no que as autoridades – policiais, judiciais e administrativas – possam fazer… ou deixar de fazer.

Numa recente entrevista televisiva, uma vítima de grave e reiterada violência doméstica, então militar e hoje advogada, relatou que, antes de ter conseguido arranjar coragem para fugir de vez, apresentou 15 (quinze!) queixas, todas elas arquivadas. E denunciou também o mais do que justificado terror que muitas mães vítimas de violência doméstica têm da Segurança Social. Porque o que mais sucede nessas situações (ainda mais quando a mãe procura apoio social) é os filhos serem primeiro “sinalizados” e, depois, retirados às mães… pela própria Segurança Social.

E mesmo quando há processos nos tribunais de Família e Menores, muitas vítimas vêem-se forçadas a aceitar condições inomináveis, como a manutenção dos contactos com o agressor, sob pena de perderem a guarda dos filhos. Tudo isto com base em relatórios elaborados por técnicas que, não raras vezes, nem chegam a ver as crianças, mas produzem falsidades que os juízes tomam depois, e sem ordenar quaisquer diligências, como uma autêntica “bíblia”. Os pretensos “acordos” neste campo são, na maioria dos casos, uma repugnante imposição da “lei do terror” às vítimas, que, para não perderem de vez os filhos, se vêem obrigadas a aceitá-los.

A autonomização do crime do feminicídio (o crime mais grave de ódio contra as mulheres), a punição mais severa do crime de violência doméstica (para impedir a hoje tão comum e facilmente aplicada medida de suspensão da pena), e a consagração expressa do concurso de crimes quando a agressão ocorra perante os filhos da vítima directa, os quais são também vítimas – estas são medidas concretas, que podem perfeitamente ser aprovadas pela nova Assembleia da República e que só pecam por tardias.

Mas, para além disso, e acima de tudo, é preciso combater a lógica, a política e a cultura do medo. Punindo quem agride e quem viola direitos, mas também recusando, denunciando e nunca aceitando que órgãos e agentes públicos, julgando-se impunes e acima da Lei, possam continuar a actuar como até aqui.

Porque bem sabemos, afinal, onde conduzem as políticas do medo e as práticas da cumplicidade: quando pais de famílias pobres, mesmo empregados, não conseguem arranjar casa e constroem uma, mesmo que seja (de novo!) uma barraca, a primeira entidade pública que lhes aparece pela frente é a polícia, armada até aos dentes, para garantir o despejo. E a segunda são as técnicas da Segurança Social, para lhes retirarem os filhos sob o pretexto de que essas famílias, agora despejadas, não têm onde os criar… Que indigna sociedade é esta, afinal?

António Garcia Pereira

2 comentários a “O regresso do Império do Medo”

  1. Bravo Dr. Garcia Pereira. Gostei muito.Admiro as suas intervenções. Claro que não sou jurista mas não preciso desta qualidade para sentir a sua enorme competência e a coragem com que nos ensina a pensar. Obrigado !

  2. M V Cabral diz:

    Desculpe mas mistura tudo e esquece-se das ferozes ditaduras da dita “esquerda” como a Rússia, a China e arredores… Por piores q sejam, não se pode comparar as univrsidades portuguesas com as da Coreia do Norte e arredores!

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