Por que razão os privilegiados têm medo de quotas, pretos e ciganos?
Sou preta e vivo na Cova da Moura. Nunca conheci outra vida senão pobreza, miséria, trabalhar muito, receber mal, dormir no meio de lixo e humidade, comer restos do dia, cuidar de filhos, ser filha de violência, ter violência no meu quotidiano, ver violência à minha volta.
Dizem-me que vou ter uma quota para entrar na Universidade porque sou preta. Apenas porque sou preta. Terei esse direito?
Os brancos vão deixar? Vão-me mesmo dar essa oportunidade? Em nome do direito universal humano da igualdade?
Assim pensaria se fosse a preta da Cova da Moura e vivesse estes factos. Assim pensaria se fosse cigana vivenciando factos semelhantes. Ou se fosse lésbica ou gay e não pudesse gozar os mesmos direitos dos heterossexuais. Ou se tivesse uma deficiência e não fosse incluída numa escola para gente sem deficiência. Ou só por ser mulher. Ou mulher e preta. Ou mulher e cigana.
Penso que estamos de acordo se eu disser que os exemplos acima são de cidadãos como qualquer um. Não são criminosos sem direitos. São gente de qualquer cor, etnia, religião, género, vivem como podem, andam de carro, burro ou passe Navegante.
Talvez também concordemos genericamente que pelo meio há uns que são mais cidadãos que outros. Chamam-se privilegiados. São aqueles que têm o poder de dizer quem são os cidadãos que têm mais direitos por serem mais ou menos cidadãos que outros. Pensam eles. Mas quem são eles?
Vista-se alguém com um sério saia-casaco, ou um fato composto, gel no cabelo ou laca, ar arranjado e limpo. Calcem-se estes homens e mulheres com um discurso violento, intransigente, intolerante, ignorante e cheio de ódio, mascarado de “vamos acabar com o politicamente correcto tão típico das esquerdas”. Olhem estes que se consideram imaculados intelectuais (apenas não usam o intelecto para olhar o mundo e os outros, ou usam-no com fins maliciosos). Gente respeitável de uma estirpe social (aquela que come com dez talheres) conhecedora de um mundo distorcido. Ou são “wannabe”. Ou são o cão que ladra para guardar o dono, mas dorme na rua. Estes são os privilegiados.
Estes homens e mulheres sentem-se ameaçados. Têm medo de que alguém lhes possa retirar a posição de ilusório poder. Têm medo de que pretos, ciganos, monhés, gays e outros diferentes cheguem às universidades ou a lugares de topo. Ou aos lugares deles.
Dizem no seu discurso que têm os valores morais de um determinado grupo – “os outros” são os grupos diferentes em valores. Logo, nunca poderão estar ao mesmo nível.
Claro, a minha criada não deve ir estudar para a Universidade e ficar ao mesmo nível, podendo até ultrapassar-me a vários níveis. Muito menos se entrar por “quota”, porque é preta ou cigana. Abro a porta para eles entrarem no meu mundo e isso nem pensar.
Temos estes homens e mulheres que nunca viveram situações de descriminação, exclusão ou empobrecimento projectado, a opinar que devemos deitar abaixo o que eles chamam de politicamente correcto (sendo o politicamente correcto a construção de um caminho para proporcionar direitos e oportunidades iguais a qualquer sapiens para que por mérito próprio venha a chegar onde chegam os que já os têm – por partilharem a mesma cor, a mesma religião, por herança de património, por comunhão territorial ganhadora, por privilégio de género ou qualquer outro.
Os privilegiados intolerantes ao construírem muros de medo e ao pavimentarem o caminho para acabar com os direitos humanos iguais mostram que querem que não aconteça a igualdade de oportunidades e direitos entre sapiens. Para que a liberdade de escolha não faça parte nem sirva a vida de qualquer sapiens. Afinal, os sapiens privilegiados de fato, gravata e intelecto distorcido são mais sapiens que os outros, segundo a sua perspectiva.
Assim nascem Órbans, Salvinis, Venturas, Trumps, Bolsonaros e quejandos. Com vestes destas nasceram os homens e mulheres que banalizaram o mal e fizeram o III Reich, a Espanha Franquista, a Itália de Mussolini, a URSS de Estaline, o Portugal de Salazar.
Entre outros regimes do mesmo calibre sempre apoiados por uns que têm mais direitos que outros. Por decreto divino, achismo ou intelectualismo de fina estirpe.
Silenciá-los não é dizer que não podem ter opiniões diferentes. Alguns julgam-se os arautos do moderno politicamente incorrecto. Porque dizem o que se diz à boca pequena nos vãos de escada. Eu digo-lhes, pensem como quiserem claro, mas espremam o intelecto apenas quando estiverem sozinhos nas vossas casas de banho enquanto puxam o autoclismo.
Por que razão hão-de ter privilégios especiais – ou quotas – os ciganos, os pretos, os Sírios refugiados, os gays ou os trans que querem direitos iguais?
Por uma razão muito simples. Pretos e ciganos venham de onde vierem andam há séculos a ser discriminados e excluídos. Sem terem a oportunidade para provar, mostrar e aplicar o mérito que têm.
Se os privilegiados não percebem esta razão então não são inteligentemente politicamente incorrectos, mas sim estúpidos. Aconselho uma consulta com o professor Karamba, aquele que faz feitiços, para vos desamarrar o intelecto porque não o conseguem usar.
Ou então são serpentes conscientes a germinar no ovo sabendo bem o que fazem. Mas sapiens responsáveis, conscientes e inteligentes não são.
Se acho bem as quotas? Não necessariamente.
Se o mundo fosse justo, meritocrático e se todos tivéssemos as mesmas oportunidades e direitos não haveria necessidade de quotas.
Resultam? Nem sempre, se as desigualdades continuam de outras formas.
Enquanto isso não acontece os que têm privilégios – o poder de legislar e executar – têm de promover direitos iguais para todos. Simples.
Deveria ser o mérito um critério? Talvez. Num mundo onde as assimetrias não fossem o pano de fundo.
Então primeiro nivelemos os direitos humanos. Estendamo-los a todos sem excepção como diz a sua Carta e as Constituições Democráticas.
Depois discutimos se os anjos querem sexo.
Entretanto enquanto o pau vai e vem, criem-se as quotas para dar oportunidades. Para mulheres, gays, pretos, ciganos, ou qualquer minoria. Simples. Chama-se evolução em nome de algo maior. Para o lixo os privilégios de meia-dúzia.
Na terra de Mandela, o fim do apartheid fez com que o governo sul-africano optasse pelas quotas positivas para empregos e universidades. Porquê? Porque os pretos tinham sido excluídos da sociedade sul-africana durante largos anos. Simples de perceber. Corre mal? Corrijam-se os erros.
E adapte-se a economia que cria desigualdades aos sapiens e não o contrário. Aqui reside o busílis. Os privilegiados não vão nesta cantiga. Podem achar a melodia popular mas não a vão tocar nas suas rádios.
Democraticamente posso e devo aceitar todas as formas de intolerância, ódio e racismo como símbolo da liberdade de expressão?
Não devo, nem quero!
Porque ao fazê-lo estou a suicidar-me! Ao autorizá-los, dou espaço ao caminho de supressão da própria democracia.
Estarei a deixar entrar o inimigo nas linhas de defesa dos direitos para todos.
Está escrito nos livros de História que foi assim que aconteceu e se banalizou o mal. E nos livros de Filosofia. Carl Popper ensinou sobre a intolerância para com os intolerantes. Por lógica humana.
Os privilegiados que usam o intelecto também o percebem. Só há um caminho, o da igualdade e inclusão. Os direitos iguais. Não é utopia nem lirismo, é pensamento lógico.
Tal como a obsolescência programada, o projecto de ditaduras de privilegiados para privilegiados sempre esteve em cima da mesa da caverna do sapiens. E agora com medo de perderem privilégios parecem de novo muito assustados.
Tudo farão para ganhar. Por isso não me posso esquecer de lhes perceber o jogo e não deixar. Como Mandela aprendeu a língua dos seus inimigos para entender o seu pensamento e comunicar com eles em vantagem, assim devemos fazer perante os intolerantes. Colocando limites ao seu discurso enviesado. Aprendendo-o, estudando-o, conhecendo-o e não o permitindo.
Se me quiser salvar – eu sapiens – tenho que colocar limites e construir um muro antagonizando os intolerantes. Não deixar a intolerância entrar na minha casa, no meu país, no meu quintal, na minha mente.
Porque magoa, porque ofende a essência humana, porque ofende o direito à diferença. Porque as ofensas levam à agressão física, psíquica, moral e à exclusão como membro da sociedade, sem direitos nem oportunidades. Escolho ser intolerante com o intolerante antes que a intolerância me invada, destrua e trace o meu fim.
Assinado,
Uma preta que levou uma vida a sofrer discriminação, exclusão e ofensas. Uma sapiens que quer direitos iguais para todos os sapiens. Com braço esquerdo e direito, longe de divisões. Praticante em estado zen da filosofia de Popper.
Anabela Ferreira
Será que se está a referir a África?ou ao médio oriente? Em Portugal, que eu saiba, a constituição garante direitos iguais para todos. Depois há o esforço individual de cada um. Há a procura e o aproveitamento de oportunidades que possam surgir. Isto é para a gente comum, como eu sou, porque os privilegiados têm um mundo diferente. Então quem é que tem direito a quotas? Os pretos? Os ciganos? Os Sírios? Os homossexuais? Então e os brancos heterossexuais? Será que todos os brancos heterossexuais, homens ou mulheres, são privilegiados? Isto é racismo. Se cada um, independentemente da sua cor ou etnia, se esforçar, poderá não ser administrador de empresas mas poderá ter uma vida honesta. Evidentemente que há pessoas muito ambiciosas e que estarão sempre insatisfeitas, mas isso acontece em qualquer grupo social. Eu, embora branco, nasci pobre, comecei a trabalhar numa loja aos treze anos, fui trabalhador estudante, esforcei-me muito mas melhorei a minha vida. Os meus pais eram analfabetos. Não sou rico mas o que tenho chega. Pelo que foi a minha vida dou muito valor ao esforço individual. Nunca vivi de subsídios do Estado nem tive direito a casa de renda económica e pago pontualmente os meus impostos. Está claro que não compreendo isso das cotas.
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Obrigada por comentar. Se reler o texto também entenderá para além do que foi a sua vida e a de tantos brancos não privilegiados. Ou pretos e ciganos ou de qualquer outra minoria. São as condições económicas que determinam as assimetrias. A culpa não é sua nem minha. No entanto quando temos graves assimetrias que não deixam que um preto pobre chegue sequer à mesa do branco pobre temos de fazer qualquer coisa para nivelar entende? Imagine que tem 6 filhos. De várias etnias e 3 brancos. Todos se sentam à mesa mas apenas os seus 3 filhos brancos recebem uma porção da refeição. Sendo que 1 recebe muito e os outros 2 recebem sobras. Os outros não recebem nada. Percebe a metáfora/analogia?
Se reler o texto irá entender melhor a minha opinião sobre a existência de quotas. Porque tenho que dar de comer aos meus 3 filhos que nunca comeram, nem sequer as sobras. Obrigada.