Finalmente, a 03/02/25, quase nove anos após o seu início[1], e subscrita por quatro Procuradores[2], chegou a extensíssima acusação (1325 páginas) do chamado processo Tutti Frutti: 60 arguidos, muitos deles autarcas, quase todos do PS e do PSD, acusados de crimes que vão da corrupção activa e passiva ao branqueamento de capitais e tráfico de influências, passando pela prevaricação, falsificação de documentos e até burla qualificada.
Do ponto de vista criminal, estas acusações terão agora de ser judicialmente confirmadas e poderão, ou não, conduzir a uma condenação com trânsito em julgado, para que se saiba quais destes arguidos poderão afinal ser considerados penalmente culpados. Mas, do ponto de vista social e política, é inegável que estamos perante um fenómeno de enorme gravidade e dimensão, uma espécie de rede tentacular de negociatas com dinheiros públicos, que terá chegado à combinação e manipulação de resultados eleitorais e que, no entender do Ministério Público, lesou o Estado em, pelo menos, 600 mil euros. É uma vergonha que mostra bem até onde podem ir os Partidos da área do Poder, ao considerarem os cargos e os dinheiros públicos como propriedade sua, a distribuir pelas respectivas clientelas.
Mais do que um fenómeno conjuntural ou passageiro, trata-se de um problema essencialmente estrutural, que evidencia um nível muito grave e preocupante de degradação dos partidos do Poder. Revela também a ausência de um mínimo de escrutínio e controlo democrático sobre os candidatos, os dirigentes e os responsáveis que os propõem e que, depois, quase sempre os apoiam e sustentam até ao limite. Comprovam-no, e de forma eloquente, as meteóricas carreiras de muitos dos personagens envolvidos, mesmo depois de já serem conhecidos alguns dos seus abusos, golpes e dislates, de par com o rápido e eficaz silenciamento daqueles que os procuraram denunciar, e mais do que isso, tentaram combater a alma mater de todo este ambiente abusivo e permissivo: a concepção de que quem é eleito não só não tem de prestar contas, diariamente, aos cidadãos que supostamente representa e dirige, como pode e deve beneficiar pessoalmente – bem como os seus amigos – de vantagens especiais e dos recursos logísticos e financeiros a que, por força do cargo, tem acesso.
Mas este despacho de acusação suscita – ou melhor, deveria suscitar – igualmente um conjunto de outras observações que, todavia, com poucas e muito honrosas excepções, quase não se ouvem em lado nenhum: o Ministério Público continua a achar que não só não tem de dar explicações, como também pode fazer os remoques que bem entende. Ou seja, não dá qualquer explicação para a enorme duração deste processo nem para a completa ultrapassagem do prazo legal máximo para a conclusão de um inquérito – que foi excedido em seis vezes[3]. Assim, continua a demonstrar que encara esses prazos legais como algo que se aplica aos outros, os cidadãos ofendidos ou arguidos, mas não a si próprio, como se estivesse acima da lei.
O Ministério Público também não dá qualquer explicação, nem muito menos pede qualquer desculpa, pelas repetidas violações do segredo de Justiça praticadas neste processo ao longo dos últimos anos, inclusive envolvendo nomes de pessoas que não foram agora acusadas, mas que, devido ao lamaçal sobre elas lançado, sofreram entretanto verdadeiros homicídios de carácter.
Finalmente – e porventura isto é o mais grave e importante – nos termos da lei[4], o despacho final que encerra um inquérito-crime só pode ser de acusação, se se recolheram indícios suficientes da prática de um crime por determinada pessoa, ou de arquivamento, exactamente porque tais indícios não foram encontrados. Despachos de arquivamento acompanhados de remoques, juízos de censura ou pretensas reprimendas éticas, como os que constam deste despacho sobre Fernando Medina e Duarte Cordeiro[5], são algo que a lei não prevê nem permite, de todo! Mas continuam a ser feitos, impunemente, por Procuradores que gostam de se arvorar numa espécie de reservas morais da Nação e reguladores ético-sociais.
Contam para tal – e é preciso afirmá-lo com clareza – com o silêncio, para não dizer com a cobardia, de uma classe política que demonstra ter medo da Justiça criminal e, em particular, do próprio Ministério Público[6]. É caso para dizer que, mesmo com a mudança do seu dirigente máximo, o PGR, tudo continua essencialmente na mesma no Ministério Público, comprovando também a sua completa incapacidade para a autocrítica e a autocorrecção.
A Procuradora-Geral Adjunta Maria José Fernandes, num texto significativamente intitulado “Cinquenta anos do Sindicato do Ministério Público – poderosa pequenez”[7], faz uma análise tão certeira quanto demolidora daquilo em que, no último meio século, se transformaram o Ministério Público, o seu Conselho Superior e o seu Sindicato. Mostra como – ao contrário do que estas entidades e os seus “amigos” e “defensores oficiosos”, nomeadamente na Comunicação Social, sempre gostaram de apregoar – foi precisamente o caminho que seguiram que tem vindo a destruir a ideia e o papel de um “Ministério Público independente do poder político e empenhado na defesa de legalidade e dos direitos fundamentais dos cidadãos, em qualquer uma das diferentes órbitas jurisdicionais em que fossem visados”. Pouco disto tem feito a parte dirigente do Ministério Público, e não é agindo como acima se descreve que se combate verdadeira e eficazmente a corrupção.
Como muito bem refere a Dra. Maria José Fernandes, “quem detém poder quer perpetuá-lo e, para isso, carece de um adversário permanente, ainda que imaginário. No caso do SMMP (Sindicato dos Magistrados do Ministério Público – nota nossa) o adversário, às vezes declarado, outras subentendido, dependendo de quem está, é o poder político e também quem ouse tecer críticas”.
O combate firme e eficaz contra a corrupção nada tem que ver – antes é gravemente prejudicado – com práticas como a de arrastar suspeitas durante quase uma década (divulgando-as pelo caminho) e, depois, recorrer a uma mesquinha vingança contra quem não se conseguiu acusar, mas que também não tem qualquer meio de se defender das caluniosas “reprimendas ético-sociais” do Ministério Público.
E é por isso que, contra ventos e marés, se impõe que todos nós – tutti quanti – proclamemos e defendamos que, tal como na saúde, na Educação ou na Segurança, “A nós, cidadãos, o que é da Justiça!”
António Garcia Pereira
[1] O processo tem o n.º 152/16.8TELSB, o que significa que data desse mesmo ano de 2016.
[2] Esses quatro procuradores são Andrea Marques, Bruno Alcarva, Carlos Rodrigues e José Bernardo Domingues.
[3] O prazo máximo para o encerramento de um inquérito-crime, nos termos do art.º 276.º do Código do Processo Penal, é de oito meses, podendo, nos casos mais graves e considerados de excepcional complexidade, estender-se até aos 18 meses.
[4] Nos termos dos art.º 276.º, art.º 277.º e art.º 283.º do Código de Processo Penal.
[5] Fernando Medina e Duarte Cordeiro não foram acusados. O primeiro foi constituído arguido há três meses, com grande espalhafato (para quê?), enquanto o segundo nunca chegou sequer a sê-lo. No entanto, sendo um dos nomes “naturais” para candidato do PS à Câmara de Lisboa, acabou por abandonar, pelo menos para já, a actividade política.
[6] As sempre cirúrgicas, e sempre impunes, violações do segredo de Justiça, a par das atoardas que as acompanham, difundidas pela imprensa mais sensacionalista, tornaram-se, de facto, numa arma letal.
[7] Publicado no Jornal “Público” a 2/2/2025.
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