As PPP na saúde (3ª parte)

Mário Jorge Neves (Foto FNAM)

“De todas as formas de desigualdade, a injustiça nos cuidados de saúde é a mais espantosa e desumana”. (Martin Luther King Jr.)

O modelo ultra liberal das PPP na Grã -Bretanha foi posteriormente importado por vários países quando alguns anos depois já era evidente o seu fracasso em todos os aspetos com que tinha sido apresentado e justificado. Alguns desses países onde este modelo teve maior expressão foram o Canadá, onde é conhecido como P3, a Austrália, e a Espanha. Por questões de espaço do texto e de maior proximidade geográfica, importa abordar a experiência na nossa vizinha Espanha.

Em 1997, foi criada uma PPP no Hospital de Alzira na região autónoma de Valência, sob o governo regional do PP presidido por Eduardo Zaplana. Este modelo apresentou uma unidade hospitalar com um baixo número de camas e com um baixo número de profissionais. O consórcio Ribera Salud dispunha de um financiamento per capita da população abrangida. Este sistema conduz, desde logo, à segmentação da população em subpopulações de alto, médio e baixo risco.

Por outro lado, foi-lhe permitido receber pessoas de outras áreas geográficas que eram objeto de pagamento por cada atendimento. Isso permitiu-lhes aumentar a faturação. Na sua atividade, era dada prioridade aos seguros privados o que criou logo 2 níveis de prestação de cuidados. Começou a sua atividade em 1999. No primeiro ano teve 1 milhão de euros de prejuízo, 900.000 em 2000, 450.000 em 2001 e 2,76 milhões em 2002. O governo regional teve de optar pela rescisão do contrato em 2003.

A decisão de rescindir o contrato veio mostrar que a Conselleria de Sanidad de Valencia gastara aproximadamente 40% do seu orçamento para construção de novos centros públicos num único serviço de gestão privada. Elaborou um novo contrato que já englobava a privatização dos centros de saúde da mesma área geográfica, que ficaram ligados ao mesmo consórcio privado. A Generalitat de Valencia abriu novo concurso e, curiosamente, o mesmo consórcio ganhou o concurso.

Entre 2006 e 2010 foram construídos na região de Valencia mais 4 hospitais com o mesmo modelo de Alzira: Torrevieja, Denia, Elche e Manises. Todos eles englobaram os centros de saúde da sua área geográfica envolvente. Em 2018, a Generalitat de Valencia decidiu extinguir o contrato de concessão do Hospital de Alzira e esta unidade hospitalar passou a 100% pública. Em torno dos negócios das grandes empresas com a saúde dos cidadãos, importa dispor de um quadro sumário das movimentações de negócios que têm acontecido em Espanha.

Em Abril de 2014, a multinacional norteamericana Centene Corporation comprou 50% do capital que a Bankia tinha na Ribera Salud. IDC /Capio Sanidad é uma das principais empresas privadas de saúde em Espanha. Gere 4 hospitais públicos em Madrid. Na Catalunha possui 3 . Esteve integrada até 2010 na multinacional Capio, donde saiu ao ser comprada (60%) pelo fundo britânico de capital de risco CVC Parteners , passando a designar-se IDC. 

HIMA San Pablo é uma empresa porto-riqueinha. Veio para Espanha pela mão da Ribera Salud. DLA Piper:  a filial espanhola da empresa DLA Piper tem relações empresariais de assessoria com o fundo britânico do CVC. Em 2013, esta empresa integrou como conselheiro mundial o ex primeiro ministro espanhol José Maria Aznar.

LBEIP BV: é um grupo de investimento integrado no britânico Lloyds Banking que controla 3 serviços de saúde semipúblicos em Madrid. Entre 2023 e 2024 comprou as construtoras espanholas Sacyr e FCC e mais de 40% dos hospitais Coslada, Parla e Arganada, tornando-se o principal proprietários de hospitais PFI em Madrid.

Unilabs: esta empresa suiça está integrada na multinacional Capio a quem foi adjudicada conjuntamente com a Ribera Salud a gestão do Laboratório Central de Análises Clínicas de Madrid. A Unilabs contratou depois como assessor o ex conselheiro de saúde da Comunidad de Madrid, Juan José de Guemes, que tinha privatizado o laboratório central de análises clínicas de Madrid.

Clece: esta filial da construtora ACS é conjuntamente com a Ferroser (filial da FCC) a principal adjudicatária dos serviços não prestadores de cuidados de saúde dos hospitais e centros de saúde de Madrid.

Se na região de Valência o modelo único são as PPP, na região de Madrid e nalgumas outras regiões coexistem as duas versões, PPP e PFI. Nas PPP, as empresas concessionárias encarregam-se do processo de construção até à gestão clínica, enquanto nas PFI as empresas concessionárias se encarregam da construção e depois dos serviços não assistenciais, exceto dos profissionais de saúde. Em Madrid coexistem as duas versões. Existem 11 com gestão privada com os 2 modelos: 7 com a fórmula PFI e 4 com PPP.

Em 2005, o governo autónomo deu luz verde ao primeiro hospital em Madrid que copiava o modelo Alzira, o Hospital de Valdemoro gerido pela Capio, que é propriedade da CVC.

A empresa Sanitas é propriedade do grupo British United Provident Association (BUPA) e possui um hospital geral em Barcelona designado Hospital Sanitas CiMA.

A BUPA é a maior companhia privada de saúde na Grã-Bretanha.

A empresa Essentium, especializada em obras civis, num dado momento decidiu criar uma divisão hospitalar e escolheu para a dirigir o ex-conselheiro de saúde do governo autonómico de Madrid, Manuel Lamela, chefiado por Esperanza Aguirre de 2003 a 2012. Manuel Lamela tinha sido o planificador de projeto global de saúde privada em toda a região de Madrid denominado “ Madrid, Ciudad de la Salud”, cujo objetivo era juntar todos os centros privados para potenciar o turismo de saúde.

Centene Corporation: em abril de 2014, esta companhia norteamericana comprou 50% da Bankia que tinha a propriedade de Ribera Salud. É uma das principais empresas privadas de saúde nos Estados Unidos e a maior parte do seu negócio é a nível do Medicare. Em 2012, o fundo Doughty Hanson adquiriu a USP Hospitals ao Royal Bank of Scotland. A USP gere 12 hospitais e 26 centros de saúde. Adeslas e Sanitas formam com a Caja de Ahorros del Mediterrâneo e a Bancaja (Bankia) o grupo de saúde Ribera Salud. As 4 principais companhias hospitalares privadas são: Capio, Adeslas , USP e Quiron.

Em várias regiões autónomas de Espanha, com particular destaque para Valência, Madrid, Catalunha, Galiza, Baleares, Aragão e Murcia, as PPP tiveram uma grande expansão e foram palco de diversos escândalos a nível das chamadas “portas giratórias” com uma elevada promiscuidade entre titulares ou ex-titulares de cargos públicos e os negócios privados.

No caso da Catalunha, os governos independentistas chefiados pela Convergencia iUnió ( C i U), desencadearam sempre uma política neoliberal agressiva contra os serviços públicos, em particular na saúde, promovendo privatizações e debilitando a gestão pública. A título de exemplo, nos últimos anos faltam a nível dos cuidados de saúde primários  nessa região, mais de 1500 médicos e mais de 1500 enfermeiros , carências que se vão arrastando cronicamente.

Outra forma privatizadora que foi tentada com início na Galiza foram as fundações de hospitais. Em 1995, a Junta Autonómica criou a Fundação do Hospital Verin , copiada do modelo britânico em que a gestão era privatizada , mantendo-se a titularidade pública. Estendeu-se depois a Maiorca, Madrid e La Rioja, mas não teve mais impacto no volume dos negócios privados. Na Galiza, as unidades de cuidados de saúde primários foram absorvidas pelas unidades hospitalares. O argumento principal foi a necessidade de racionalizar a gestão, integrando os níveis de prestação de cuidados. Mas a realidade que rapidamente emergiu, foi que os cuidados de saúde primários perderam o reduzido poder que detinham dentro do sistema de saúde, perderam no volume das verbas orçamentais que lhes eram destinadas e perderam na capacidade negocial dentro da própria estrutura hierárquica da saúde.

Se os cuidados de saúde primários ficam debilitados na sua capacidade de gestão e no seu peso negocial, não é possível garantir a acessibilidade e a continuidade dos cuidados de saúde às pessoas ao longo da sua vida, nem desenvolver medidas preventivas em muitas patologias. Não existe nenhuma evidência sobre as vantagens no modelo de gestão privada na saúde, bem pelo contrário. Em todos os projetos implementados nos vários países, a diminuição do número de camas, a diminuição do número de profissionais de saúde e a deterioração progressiva dos parâmetros da qualidade da prestação dos cuidados de saúde, estiveram sempre presentes.

A Profª Jean Shaoul, da Universidade de Manchester, apresentou em 2008 um estudo onde analisava os custos dos 12 primeiros hospitais PFI na Grã-Bretanha que mostrou que eles representaram um encargo superior a 60 milhões de libras por ano em comparação com o financiamento pelos dinheiros públicos. Naturalmente, os profissionais de saúde estão no centro do sistema e a sua formação contínua e a motivação são as bases fundamentais de uma prestação de cuidados de elevada qualidade.

Em diversos países, tem-se verificado uma diminuição acentuada de profissionais nos serviços públicos de saúde. A gestão autoritária e a degradação continuada dos salários e das condições de trabalho, formam parte da estratégia de afronta e de desmantelamento dos serviços públicos, concretamente na saúde. Múltiplas experiências têm demonstrado que os profissionais envolvidos nos processos de decisão estão muito mais motivados e produzem mais e com maior qualidade.

A estratégia privatizadora e de desarticulação dos serviços públicos de saúde, usa um instrumento chamado a “desnatação” que consiste em aliciar os profissionais mais diferenciados, oferecendo-lhes melhores condições de trabalho e, sobretudo, melhores condições salariais. Mostra a experiência acumulada em diversos países, que este tipo de aliciamento só dura enquanto os grupos económicos privados não adquirem uma fatia importante do mercado da saúde. A partir daí, tudo se altera rapidamente para pior e os profissionais ficam numa posição laboral de grande debilidade. Diversos instrumentos dessa estratégia têm vindo a ser montados nos últimos 15 anos no nosso país.

Aneurin Bevan, considerado o “pai” do NHS britânico disse um dia que “ o Serviço Nacional de Saúde durará enquanto houver pessoas dispostas a lutar por ele”. Com o nosso SNS, passar-se-á o mesmo. 

Não deixemos que nos roubem a maior conquista social e humanista da nossa Democracia 

Mário Jorge Neves

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