Celebrar a data do 8 de Março tem de ser muito mais do que uma mera e burocrática festividade, engalanada por palavras de elogio tão belas quanto ocas de sentido, num abstracto enaltecimento das mulheres.
Que a real emancipação das mulheres – só possível com a libertação de toda a sociedade – não está de todo alcançada, demonstra-o a plena actualidade do texto que, sobre este mesmo tema, publiquei há um ano atrás e que, por isso mesmo, abaixo republico.
Mas prova-o também a dura realidade dos factos e dos números.
Desde logo, segundo os próprios dados oficiais (Quadros de Pessoal de 2022-2023 do GEP – Ministério do Trabalho, da Solidariedade e Segurança Social), a remuneração base média mensal das mulheres era, em 2023, 12,7% inferior à dos homens. Porém, se essa comparação for feita relativamente apenas aos quadros superiores, esse fosso salarial – não obstante o número crescente de mulheres com as qualificações mais elevadas, número esse que, em cerca de uma década, duplicou! – alarga-se para 26%. E, conforme evidencia um recente estudo do economista Eugénio Rosa, em algumas profissões específicas, como a de dirigentes superiores, directores e gestores de organizações especializadas, ou a de técnicos de serviços jurídicos, sociais, desportivos, culturais e similares, a diferença dos salários-base das mulheres para os dos homens eleva-se, respectivamente, para 28% e 68%!
Esta marcada, profundamente injusta e até ilegal e inconstitucional diferença salarial reflecte-se também, e de forma muito evidente, nas pensões de velhice. Em Dezembro de 2023, o valor médio das pensões dos homens era de 734,51€, enquanto o das pensões das mulheres, 50 anos depois do derrube da Ditadura, se quedava por uns miseráveis 419,88€ mensais.
A taxa de incidência da precariedade laboral das mulheres tem sido sempre, e continua a ser, bem mais elevada do que a dos homens, atingindo níveis escandalosos entre as trabalhadoras mais jovens (dos 16 aos 24 anos), para as quais chega aos 52,5%!
Às horas semanais de trabalho formalmente registadas – que, aliás, para cerca de 280 mil mulheres, são 41 ou mais – acrescem as inúmeras outras horas de tarefas domésticas e cuidados familiares, que, como bem sabemos, continuam ainda a recair principalmente sobre as mulheres. E é certo que perto de 800 mil mulheres trabalham regularmente ao Sábado e mais de meio milhão ao Domingo.
Mais de metade dos desempregados oficiais são mulheres, e um terço destas encontra-se nessa situação há 1 ano ou mais. Mesmo entre as que recebem subsídio de desemprego (e apenas 44% o recebem!), a taxa de pobreza é elevadíssima, atingindo os 43%. Sem tal subsídio e outras “transferências sociais”, estima-se que essa mesma taxa de pobreza subiria para 64% entre as mulheres desempregadas.
Nos primeiros 9 meses de 2024, a Polícia Judiciária registou oficialmente 555 violações. Entre 1 de Janeiro e 15 de Novembro do mesmo ano, foram assassinadas pelo menos 25 mulheres, 20 das quais em contexto de violência de género. Só no primeiro mês deste ano de 2025, já foram assassinadas 5 mulheres às mãos de homens. Por outro lado, durante o ano passado, a PSP e a GNR registaram mais de 30.000 queixas por violência doméstica, cujas vítimas são, na esmagadora maioria das vezes, mulheres e, muitas vezes, também os seus filhos.
É assim dramaticamente verdade que, em Portugal, como aliás em todo o mundo, não obstante todas as lutas travadas e todos os direitos formalmente alcançados, as mulheres continuam ainda hoje a ser as que mais trabalham, menos ganham, enfrentam maior precariedade e menor protecção social. E são elas que, sob a capa de teorias e práticas machistas e misóginas – que precisamente buscam legitimar a exploração e a opressão a que as mulheres estão sujeitas –, são as primeiras e principais vítimas da violência doméstica e familiar, das violações e dos homicídios de género.
Ora uma sociedade que tolera, incentiva ou pratica todas estas formas de violência e atentados contra a mais elementar dignidade humana não é, e nunca poderá ser, uma sociedade verdadeiramente justa e livre! E, por isso, a luta por um mais mundo mais justo, sem exploração nem opressão, tem de continuar!
Texto de 8 de Março de 2024
A data do 8 de Março tornou-se nos dias de hoje quase uma vulgaridade, reduzindo-se em larga medida a uma mera formalidade, com pouco ou nenhum sentido político e social. E, todavia, ela foi instituída para simbolizar a heróica luta das mulheres por melhores condições de vida e de trabalho e por direitos cívicos básicos, como os do voto e da igualdade de tratamento.
Importa, assim, recordar que o início do século passado se caracterizou por importantes e heróicas lutas de mulheres trabalhadoras, muitas delas ferozmente perseguidas e reprimidas. Ficou célebre em particular uma manifestação de mais de 15.000 mulheres que, em 28 de Fevereiro de 1909, percorreram as ruas de Nova Iorque reclamando pela igualdade das mulheres e pelo voto feminino. Correspondendo a esse amplo movimento de luta, que sacudia não só a Europa como os Estados Unidos da América, na Internacional Comunista realizada em Copenhaga em 1910, a militante comunista Clara Zetkin apresentou a proposta, logo ali aprovada, de que a defesa dos direitos das mulheres passasse também pela instituição de um dia de celebração anual. E logo em 19 de Março de 1911 se realizaram acções de luta e de celebração do dia da mulher trabalhadora em diversos países da Europa.
Contudo, em 25 de Março de 1911, e porque os respectivos patrões trancavam os trabalhadores e trabalhadoras no interior das fábricas para os impedir de participarem em manifestações, um violento incêndio em Nova Iorque na “Triangle Shirtwaist Corporation” (uma fábrica de camisas com 600 hiper-exploradas trabalhadoras, na sua grande maioria imigrantes judias e italianas com idades entre os 13 anos e os 26 anos) causou a morte horrorosa de 125 mulheres e 21 homens. Os gritos de revolta contra esse bárbaro crime do capitalismo ecoaram então por todo o mundo.
Na Rússia Czarista as mulheres estiveram também na primeira linha do combate “pelo pão e pela paz”, ou seja, por melhores condições de vida e de trabalho e contra a entrada da Rússia na Primeira Guerra Mundial, realizando contínuas greves e manifestações de rua, sempre ferozmente reprimidas. Aquando da principal e mais grandiosa dessas manifestações, em 8 de Março de 1917, o Czar Nicolau II deu ordens ao General Khabalov, o sinistro chefe do distrito militar de S. Petersburgo, para abater sem dó nem piedade todas as mulheres que se recusassem a abandonar a greve. Mas as lutadoras não cederam, obrigaram o governo a ceder e contribuíram decisivamente para o derrube da ditadura Czarista.
A partir de então, o dia 8 de Março foi generalizadamente instituído como o dia internacional da mulher trabalhadora e passou a ser celebrado pelos trabalhadores e pelas trabalhadoras do mundo inteiro. Só 60 anos mais tarde, porém, e pela Resolução n.º 32/142, é que a Assembleia-Geral das Nações Unidas reconheceu formalmente o dia 8 de Março como o Dia Internacional da Mulher, mas, como vimos, ela já era e desde há muito celebrada pelo mundo do trabalho.
É também importante relembrar a luta que caracteriza a origem e consagração da data de 8 de Março como Dia da Mulher porque no ano de 2024, designadamente no nosso País, a igualdade pela qual tantas e tantos se bateram continua a ser um sonho claramente inatingido. Na verdade, não obstante todos os direitos formalmente consagrados a seguir ao 25 de Abril de 1974, a situação das mulheres em Portugal ainda hoje se caracteriza por graves e inadmissíveis desigualdades. Meio século depois do derrube da ditadura, segundo os dados da Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género (CIG), 73% dos portugueses sem qualquer nível de escolaridade são mulheres, apesar de estas hoje serem já claramente superiores em licenciaturas e mestrados (60% contra 40% de homens).
As mulheres têm uma taxa de emprego bastante inferior (51,51%) à dos homens (59,7%), como têm o dobro (9,1%) dos trabalhos a tempo parcial destes (4,7%). Enquanto a maioria (entre 60% a 70%, pelo menos) das tarefas domésticas (aqui entendidas como trabalho não pago) é executada pelas mulheres, os salários dos homens são em média 16,1% superiores e nas pensões esse fosso chega a 27,4%. Em contrapartida, os valores percentuais dos cidadãos em risco de pobreza são, em todos os escalões etários, sempre superiores para as mulheres.
Segundo um estudo de 26/12/2023 do economista Eugénio Rosa – elaborado com base nos próprios dados oficiais do Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social – o montante do ganho médio das mulheres a nível, por exemplo, dos quadros médios e do pessoal qualificado, foi em 2022 inferior ao dos homens em, respectivamente, 25,6% e 20,1%! E, numa preocupante demonstração de que estas desigualdades não estão a diminuir, no período entre 2015 e 2022, os aumentos das remunerações e ganhos médios das mulheres com maiores qualificações foram inferiores às dos homens com idênticas qualificações.
Numa brutal demonstração do que representa entre nós a permanência das concepções e práticas machistas e paternalistas, a percentagem de vítimas de violência doméstica era de 80% para as mulheres e de vítimas de crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual de 87,3%!
Se a isto se somar a resistência oposta pelo Estado português a reconhecer – ao invés do que sucede na grande maioria dos países europeus – a violação como um crime público, não necessitando assim de apresentação de queixa formal por parte da vítima, bem como a benevolência com que os crimes de violação e de abusos sexuais (quase todos cometidos contra mulheres e crianças) são tratados pela Justiça Criminal portuguesa, fica evidente como, nesta matéria da mais elementar preservação da dignidade da pessoa humana das nossas concidadãs, ainda estamos na era da “pedra lascada”…
São, pois, os dados objectivos e oficiais que comprovam que num Estado que se diz de Direto e que proclama como seus valores estruturantes fundamentais a igualdade, a não discriminação e o respeito pela dignidade da pessoa humana, as mulheres continuam a ser as últimas a serem contratadas e as primeiras a serem despedidas, a terem trabalhos precários ou a tempo parcial, a serem pior remuneradas para o mesmo tipo de funções, a arcarem com a grande maioria do trabalho não pago, designadamente o das tarefas domésticas, e a serem prejudicadas nas respectivas carreiras por engravidarem, por amamentarem ou por tomarem conta dos filhos quando estes ficam doentes.
Numa terrível demonstração de como a ideologia misógina e machista continua dominante, as mulheres continuam a ser as vítimas privilegiadas da mais grave violência doméstica, de homicídio (em 2023 houve 22 pessoas assassinadas em contexto de violência doméstica, 17 das quais mulheres e 2 meninas) e de crimes sexuais. Isto perante uma perturbante incapacidade de actuação atempada e eficaz por parte das autoridades e de uma inadmissível ausência de reacção firme por parte dos Tribunais, com casos e casos de repetidas, e dramaticamente ignoradas, queixas antes de o homicídio se consumar e com cerca de 92% de aplicação de penas suspensas aos agressores e predadores sexuais, com justificações medievais como as dos tristemente célebres acórdãos do juiz desembargador Neto de Moura.
Não é decerto por acaso que tudo isto sucede e também não é um caso de “guerra dos sexos”, mas sim de guerra contra uma sociedade que assenta e vive da exploração e da opressão do outro. Uma sociedade em que a existência de trabalhadores mais vulneráveis, com salários mais baixos e condições mais miseráveis funcionam como um “exército industrial de reserva”, ou seja, como um poderoso factor de concorrência e de pressão sobre os outros trabalhadores, procurando assim justificar e legitimar ideologicamente essa lógica divisionista, exploradora e opressora com o “argumento” da pretensa inferioridade e até da “coisificação” das mulheres.
Como disse Eleanor Marx, em resposta a um misógino e machista que se proclamava socialista, Belfort Bax, que criticara e atacara Clara Zetkin, “a mulher no regime capitalista é uma dupla proletária – ela tem dois tipos de trabalho, o trabalho de produtor na fábrica e o trabalho de dona de casa e mãe em casa. Por um lado, os seus músculos e o seu sangue são gastos para o benefício imediato do capitalista e, por outro lado, para o seu benefício futuro – para apoiar e alimentar uma nova geração de proletários… Trabalha lá, trabalha aqui!”.
Não há uma sociedade verdadeiramente livre nem verdadeiramente democrática sem a destruição deste tipo de relações sociais e a construção de uma sociedade nova, mais justa e mais igual.
Como proclamou a poetisa, filósofa e activista dos direitos cívicos americanos, Audre Lorde, “Eu não sou livre enquanto alguma mulher não o for, mesmo quando as correntes dela forem muito diferentes da minha”.
E é por isso que a luta libertadora das mulheres tem de continuar e é também, tem necessariamente de ser, a luta pela libertação de toda a sociedade!
Viva o 8 de Março!
Viva a Mulher Trabalhadora!
António Garcia Pereira
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