No curto espaço de um ano, vamos para novas eleições legislativas. A verdade é que, para mais perante a primeira sondagem em muitos meses que aponta para uma derrota eleitoral do PSD, o Primeiro-Ministro Luís Montenegro preferiu a sua própria demissão, sob a capa de uma moção de confiança recusada, a ter de enfrentar os resultados de uma Comissão Parlamentar de Inquérito que não fosse uma anedota.
Chegar ao ponto de tentar trocar a retirada da moção de confiança – que não podia deixar de saber que iria ser recusada, provocando assim a demissão do Governo – por umas “explicações em privado” ao PS ou por uma Comissão Parlamentar de Inquérito que teria necessariamente de apresentar resultados em 15 dias, depois alargados para 30 ou até um pouco mais, mas sempre de forma limitada e insuficiente, resulta, de facto, da ânsia de evitar, a todo o transe e a qualquer custo, ter de dar explicações ao povo sobre diversos factos da sua vida. Factos que até podem parecer privados, mas que se prendem, mais do que com o Direito, nomeadamente Penal, sobretudo com a Ética e com a transparência que devem ser exigidas a todos os que exercem funções públicas, maxime no Governo de um País. Dirigentes políticos do PSD, com a estatura moral de, por exemplo, Francisco Sá Carneiro e Barbosa de Melo, devem estar a dar voltas na tumba perante este tipo de comportamentos dos seus sucessores…
E nem Montenegro (e também os seus apoiantes mais próximos) conseguiu ser salvo por uma Comunicação Social que perdeu definitivamente o pé quanto àquilo que deveria ser o Jornalismo, mas que, subservientemente, admitiu tornar-se um mero “pé de microfone”, assistindo e divulgando pseudo-conferências de imprensa sem direito a perguntas (em que Luís Montenegro se especializou ao longo de meses a fio). Aceitou que, no passado fim-de-semana, 5 ministros fossem a 5 canais de televisão para dizerem aquilo que convinha a Montenegro, mas que, pelos vistos, este não ousava afirmar. Dispôs-se a fazer o papel de avençada do PSD, como se viu na indescritivelmente agressiva e mal-educada entrevista de Clara de Sousa a Pedro Nuno Santos, e a calar-se miseravelmente quando o inefável líder parlamentar do PSD, Hugo Soares, se permitiu destratar a Jornalista Nelma Serpa Pinto, que, correcta e educadamente, se atreveu – supremo crime! – a confrontá-lo com perguntas incómodas.
E quando políticos, parlamentares e ministros, perante algumas questões suscitadas, começam a vociferar de forma altaneira e grosseira, como fez Hugo Soares, ou a gritar “tenho mais que fazer do que vos estar sempre a responder” (como Luís Montenegro no Parlamento) ou, ao velho e mau estilo cavaquista, “Deixem-nos trabalhar! Deixem-nos trabalhar!” (como Pinto Luz), creio que estamos conversados sobre o espírito democrático deste tipo de políticos…
E a verdade nua e crua é que continuam por responder e esclarecer muitas questões relativas às actividades de Luís Montenegro, desde que, como Presidente do PSD, já era uma pessoa publicamente exposta e candidato a governar o País, e muito especialmente desde que passou a ser Primeiro-Ministro. Tais respostas e esclarecimentos não têm que ver nem com o facto de algumas dessas condutas consubstanciarem, ou não, a prática de um crime, nem com qualquer espírito de bisbilhotice ou de devassa da vida privada do cidadão Luís Montenegro. Trata-se, isso sim, de uma imposição decorrente de uma basilar exigência ética e dos princípios legais e constitucionais da absoluta transparência e exclusividade no exercício de funções públicas, desde a mera secretaria da mais modesta Junta de Freguesia até à chefia do Governo de Portugal, e, muito especialmente, no exercício dos cargos públicos de topo, nos quais o grau de exigência e a necessidade de dar o exemplo, de cima para baixo, são, compreensivelmente, ainda maiores.
Aliás, isto não deveria sequer ter de estar escrito em parte nenhuma da lei, seja a ordinária, seja a constitucional; deveria, antes, ser imposto pela consciência ética de todo aquele a quem foi confiada a gestão da res publica. Mas, infelizmente não o é, e essa é uma das razões do alastramento – e também de uma certa tolerância social para com eles – de fenómenos como o “favorzinho” ou a “cunha”, ou seja, dito com todas as letras, da corrupção. A lógica dominante passa a ser que, se um dirigente público de topo pode manter, directa ou disfarçadamente, relações de negócios com entidades privadas – sobretudo se estas desenvolvem actividades em sectores directamente tutelados ou fiscalizados pelo organismo público a que pertence –, é óbvio que o modesto funcionário da mais modesta Junta de Freguesia se poderá sentir legitimado e autorizado a solicitar e/ou a receber uma “prenda” (em dinheiro ou de outra forma) para colocar um dado processo ou documento no topo, ou na base, da respectiva pilha…
Há, assim, muito por esclarecer, e parece evidente que esse esclarecimento não pode deixar de ser exigido e prestado, quaisquer que sejam os resultados das próximas eleições legislativas e qualquer que seja a fórmula governativa adoptada na sua sequência.
Para já não falar das milionárias avenças de que Luís Montenegro beneficiou, enquanto Advogado, para o seu escritório – através de ajustes directos no valor de 400 mil euros com autarquias locais, nomeadamente as Câmaras de Espinho e de Ovar, sendo que o Presidente da primeira (Pinto Moreira) foi posteriormente constituído arguido por alegada corrupção no processo-crime da chamada “Operação Vórtice” –, há um conjunto inteiro de outras questões, e bem relevantes, que se impõe esclarecer, destacando-se entre elas as seguintes:
1 – É ou não verdade que os artigos 19.º e 39.º da Lei de Combate ao Branqueamento de Capitais impõem uma particular vigilância por parte das entidades bancárias e até obrigações de comunicação ao Ministério Público relativamente a operações financeiras (depósitos, transferências, etc.) efectuadas por “pessoas particularmente expostas”, entre as quais se incluem os dirigentes de partidos políticos e, mais ainda, os titulares de cargos públicos e respectivos familiares directos?
2 – É ou não verdade que o art.º 13.º, n.º 2, al. b) do Estatuto dos Titulares de Cargos Públicos obriga todos os seus abrangidos (e, desde logo, os membros do Governo) a declararem as contas bancárias onde tenham depositadas quantias superiores a 50 salários mínimos nacionais (o que, em 2024, sendo então o salário mínimo de 820€, correspondia a um valor de 41 mil euros)?
3 – É ou não verdade que, precisamente em 2024, Luís Montenegro adquiriu um apartamento em Lisboa pelo preço de 410 mil euros, tendo o respectivo pagamento sido efectuado mediante o recurso conjunto a diversas contas bancárias, todas significativamente contendo montantes inferiores ao valor-limite de 41 mil euros, e que, por esse motivo, estavam isentas do supra-referido e obrigatório controlo legal?
4 – Para além da já reconhecida (e, entretanto, apressadamente cessada) avença de 4.500€ mensais pagos pela Solverde à Spinumviva, empresa formalmente detida por Luís Montenegro e pela sua mulher, é ou não verdade que o conjunto de pagamentos efectuados pela mesma Solverde totalizou, entre 2021 e 2024, a quantia de 897 mil euros, dos quais 657 mil foram pagos quando Montenegro já era líder do PSD e candidato a Primeiro-Ministro?
5 – É ou não verdade que a empresa Spinumviva era uma empresa familiar, alegadamente criada para titular formalmente diversos terrenos pertencentes à família de Montenegro, mas que, afinal, não possuía no seu activo imobiliário qualquer prédio, urbano ou rústico?
6 – É ou não verdade que essa mesma empresa não possui instalações ou estabelecimento próprios, não tem telefone nem trabalhadores?
7 – É ou não verdade que, na realidade, a Spinumviva se dedicava à prestação de serviços de consultadoria jurídica em matéria de protecção de dados pessoais a várias empresas, entre as quais a Solverde?
8 – É ou não verdade que, sendo Montenegro líder partidário e posteriormente Primeiro-Ministro, e a sua mulher educadora de infância, a alegada prestação de serviços da Spinumviva era assegurada por pessoas (Juristas?), que recebiam apenas 1.000€ por mês e que, à partida, não necessitariam dessa “intermediação” para realizar tal prestação de serviços, podendo receber por ela valores significativamente superiores?
9 – É ou não verdade que os pagamentos efectuados pela Spinumviva aos profissionais contratados para prestarem efectivamente os referidos serviços representavam apenas 11% a 13% da facturação total, ficando por esclarecer – ainda mais tendo em conta a prática ausência de despesas fixas de funcionamento da empresa – para onde foram, e em benefício de quem, os restantes 87% a 89%, e a que título?
10 – É ou não verdade que o core business da Spinumviva se baseia nesses contratos de prestação de serviços de consultadoria e que estes foram angariados exclusivamente por Luís Montenegro enquanto exercia advocacia, tendo sido mantidos mesmo após a cessação dessa actividade?
11 – É ou não verdade que a venda da quota de Luís Montenegro à sua mulher, para além de poder ser considerada nula (como sustenta grande parte da melhor doutrina jurídica), é, sobretudo, um acto inócuo do ponto de vista dos seus efeitos práticos, dado o regime de bens vigente entre os cônjuges (comunhão de adquiridos), servindo apenas para criar a aparência de um “não beneficiário”, que na realidade não existe?
12 – É ou não verdade que a Solverde – pertencente a Manuel Violas – se dedica à exploração de casinos, uma actividade concessionada e fortemente controlada pelo Estado, e que a renovação da respectiva concessão – que Montenegro, enquanto Advogado, ajudou a negociar – terá de ser novamente revista e ajustada em 2025?
13 – Enfim, é ou não verdade que Montenegro ocultou tudo isto quanto pôde, coincidindo esta situação, em parte, com o período em que já exercia funções como Primeiro-Ministro?
Não nos devemos sequer dispersar com outras questões que ainda poderiam ser suscitadas, como o facto de que, estando a casa adquirida por Luís Montenegro em obras e não querendo ele permanecer na residência oficial do Primeiro-Ministro, tenha optado por ficar num hotel de luxo, com uma sumptuosa diária de quase 300€ por noite. Ou ainda o modo como a Câmara Municipal de Lisboa, presidida por Carlos Moedas, se apressou a declarar que tais obras (de ligação entre dois andares, actualmente separados, sendo um propriedade dos filhos e o outro de Luís Montenegro) não necessitariam de licença municipal, baseado-se apenas na declaração do proprietário de que não afectariam a estrutura do edifício. Para depois se vir a saber que a referida abertura de ligação só pode ser autorizada se a mesma pessoa for proprietária das duas fracções…
A grande e principal questão é saber se toda a supra-descrita conduta de Luís Montenegro, a confirmar-se (seja total ou parcialmente), configura ou não uma violação da lei e, desde logo, do essencial princípio da exclusividade no exercício de funções públicas. Mas, mais do que isso, importa perguntar: constitui ou não uma repetida, reiterada e ostensiva violação da mais elementar Ética Política? Tanto mais que Montenegro não manifestou o menor vislumbre de arrependimento por não ter actuado correctamente, nem por não ter esclarecido tudo adequadamente desde o primeiro momento.
E pode um país que se afirma como um Estado de Direito Democrático, onde todos os trabalhadores e funcionários da Administração Pública, bem como todos os agentes e entidades públicas, estão exclusivamente ao serviço do interesse público, aceitar ver-se transformado num país de sombras, ocultações, artifícios e fugas à responsabilidade como estes?!…
António Garcia Pereira
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