A morte da Saúde em Portugal

Antes do 25 de Abril de 1974, o acesso à Saúde era um privilégio dos ricos. Não havia qualquer sistema público, geral e gratuito da Saúde e a grande maioria dos cidadãos era abandonada à sua sorte, como se morrer de uma dada enfermidade fosse uma espécie de fatalidade do destino, à qual era impossível escapar.

O dado estatístico mais sintomático desta situação era o índice de mortalidade infantil (medido pelo número de crianças que faleciam no período de até um ano após o nascimento, por cada 1000 nascimentos) que atingia em 1960 o arrepiante valor de 77,5 e em 1973 o de 44,8.

Mercê da instituição do Serviço Nacional de Saúde em 1979[1], esse valor baixou para 24,3 em 1980, 10,9 em 1990, 5,5 em 2000, atingindo o valor de 3,4 em 2012 e de 2,9 em 2015 (anos em que a média da União Europeia era, respectivamente, de 3,8 e de 3,6).

Foi por isso um enorme progresso da Democracia a instituição – que se deve sobretudo a António Arnaut – de um Serviço Nacional de Saúde, universal, geral e tendencialmente gratuito, como está formalmente consagrado no artº 64º da Constituição da República Portuguesa.

Universal, porque confere a todos o direito a recorrer ao SNS, o que significa a obrigação do Estado de assegurar a adequada cobertura territorial do país com as unidades de saúde e os recursos humanos que se mostrem necessários para servir, em condições de igualdade, todos os cidadãos.

Geral, porque todos os serviços, cuidados e prestações de saúde devem estar integrados no mesmo Sistema Nacional de Saúde.

E tendencialmente gratuito, porque as prestações de Saúde não podem estar sujeitas à condição de qualquer pagamento de quem a elas recorra e, assim, as taxas ou contribuições, a existirem (o que já é de constitucionalidade mais que duvidosa), nunca poderão dificultar, muito menos impedir, pelo seu valor, o acesso aos cuidados de saúde, muito em particular aos cidadãos com menos recursos financeiros.

Ora, é esse mesmo Serviço Nacional de Saúde que tem vindo a ser paulatinamente destruído pelos sucessivos governos, mas muito em particular pelo governo Coelho/Portas e, agora, pelo governo de António Costa.

Ao mesmo tempo que o SNS vai sendo progressivamente subfinanciado, desarticulado, asfixiado e desvalorizado, parcelas crescentes do negócio da Saúde vão sendo entregues aos grandes grupos privados (Hospital da Luz, José de Mello Saúde, Lusíadas, Trofa e Hospitais Privados do Algarve), os quais vão engordando cada vez mais os respectivos lucros. Só o Grupo José de Mello Saúde, dono dos Hospitais Cuf, atingiu, no 1º semestre de 2019, 22,4 milhões de euros de lucros, uma subida de “apenas” 63,1% relativamente ao ano passado.

E invocando precisamente a falta de capacidade de resposta e o desmantelamento do SNS propositadamente criados, logo vão surgindo as vozes que, em nome da “liberdade de escolha” e da pretensa “maior eficiência do sector privado”, defendem, de forma mais aberta ou mais encapotada, a privatização da Saúde e a sua entrega – que, hoje em dia e na prática, já está em larga medida em curso… – aos grupos privados. É a descarada invocação da destruição do SNS, não para parar tal destruição, mas sim para justificar a sua privatização.

As famigeradas Parcerias Público-Privadas foram, e continuam sendo, um passo para essa mesma progressiva privatização. Mas claro que, entretanto, já aparecem também os defensores da solução de retirar o SNS do Ministério da Saúde e de o entregar a uma espécie de Instituto ou até a uma holding geridos por um CEO próprio, tudo isto inspirado no modelo da Senhora Thatcher e obedecendo à filosofia de separar as funções prestadoras (essencialmente asseguradas por privados) e as pagadoras (obviamente a cargo dos cidadãos e das entidades públicas…). 

Assim foi criado em Inglaterra o denominado “NHS England” que, como tem sido denunciado pelo Sr. Dr. Mário Jorge, Dirigente da FNAM – Federação Nacional dos Médicos, tem sido o principal instrumento da privatização dos serviços públicos da saúde de Inglaterra e da entrega dos sectores mais rentáveis dos cuidados de saúde a grandes multinacionais, como a americana HMO – United Health Group (da qual, aliás, o actual CEO do NHS inglês foi alto dirigente…) e a sul-africana Netcase.

Mas basta ir ver as consequências absolutamente desastrosas, sobretudo para os cidadãos mais pobres, a que tal privatização da saúde conduziu, para se compreenderem as gravíssimas consequências e o autêntico regresso ao passado a que esse tipo de políticas nos conduziria em Portugal.

Todavia, mais graves ainda, porque mais dissimuladas e por isso mais perigosas, são as teorias e sobretudo as práticas daqueles que, dizendo-se defensores do SNS, o estão a desmantelar e a destruir por completo, como é o caso de António Costa e do seu governo.

Com efeito, a política da Saúde seguida sistematicamente nos últimos anos, e muito em particular com os dois últimos governos, tem passado pelo subfinanciamento e asfixia financeira do SNS (a par com a multiplicação dos interesses e dos negócios que à sua sombra crescem e florescem), pela desvalorização, desqualificação e desprezo pelos seus trabalhadores (enfermeiros, médicos, técnicos de diagnóstico, auxiliares, etc.) e pelo desprezo mais absoluto pelos direitos dos doentes. 

Deste modo, o SNS e também as instituições de ensino público (designadamente as Faculdades de Medicina e de Enfermagem) estão a servir cada vez mais, e a expensas de todos os cidadãos, de plataformas de formação de técnicos altamente qualificados da área da Saúde, para depois passarem para o sector privado ou até para outros países, de forma inteiramente gratuita para estes. Tudo isto a par de uma constante manipulação e intoxicação da opinião pública, visando com ela negar ou disfarçar o estado calamitoso de serviços e unidades de saúde e desviar as atenções para alguns daqueles profissionais, sobretudo os mais firmes e reivindicativos (como os enfermeiros), procurando transformá-los em bode expiatório de uma situação de denegação dos cuidados de saúde que legitimamente cada vez mais revolta os cidadãos deles carenciados.

Porém, não obstante toda essa manipulação e mistificação, a terrível verdade é que a situação da Saúde dos portugueses está cada vez pior. Como piores estão os serviços públicos de saúde e todos os profissionais que neles, com dedicação e empenho, todos os dias trabalham.

Há cada vez mais enfermeiros a emigrarem, como há cada vez mais vagas de médicos por preencher. A situação de ausência de condições minimamente dignas para o exercício da profissão levou a que, das vagas que abriram em Lisboa nas especialidades de anestesia e de ginecologia/obstetrícia em quatro maternidades (Alfredo da Costa, Hospital de Santa Maria, S. Francisco Xavier e Amadora-Sintra), cinco (ou seja, 31,3%!) não foram preenchidas.

Multiplicam-se continuamente as notícias de escalas ilegais, em particular nas Urgências (como sucedeu recentemente no Amadora-Sintra), com um número de médicos inferior ao do critério definido pelo Colégio da Especialidade da Ordem dos Médicos, com os inerentes riscos para a saúde e até para a vida dos pacientes.

Há médicos a fazerem mais de 100 horas de urgência por mês e enfermeiros a terem de fazer dois turnos consecutivos para (só assim) poder ser assegurado o funcionamento dos respectivos serviços.

Multiplicam-se as denúncias, os protestos e os manifestos de médicos, enfermeiros e técnicos de diagnóstico e auxiliares de saúde acerca da completa indignidade das respectivas condições de trabalho e do desrespeito pela segurança, pela saúde e pela vida dos doentes.

O SNS tem, neste momento, metade dos seus médicos com 50 ou mais anos de idade, o que significa que, no máximo daqui a 5 anos, a grande maioria deles deixará de fazer urgências à noite. Por outro lado, em apenas 7 anos e mercê das péssimas condições de trabalho, o SNS perdeu 1.600 assistentes técnicos e 2.000 auxiliares de acção médica, conforme denunciou recentemente o Presidente do Sindicato Independente dos Técnicos Auxiliares de Saúde, Paulo de Carvalho. Por tal razão, há doentes que apenas almoçam às 3 da tarde e outros que aguardam, horas a fio e ensopados em urina, que lhes mudem as fraldas ou a roupa da cama

O manifesto escrito já no início deste ano por médicos e directores clínicos dos principais hospitais de Lisboa acerca do caos no Centro Hospitalar de Lisboa Central e a denúncia, feita em Agosto pela Ordem dos Enfermeiros, acerca da situação de indignidade e de insegurança nas urgências do Hospital de Braga são apenas dois dos infelizmente muitos exemplos desta autêntica calamidade.

De acordo com as estatísticas oficiais do INE, numa década (entre 2007 e 2017), o número de camas de instituições públicas de saúde desceu de 27.086 para 24.650, enquanto as camas de instituições privadas cresceram de 9134 para 10.903. Não porque as camas públicas deixassem de ser necessárias, mas porque, através da sua redução, se abriu mais espaço para os interesses privados da Saúde, com a contratualização a estes de camas “em falta” e o pagamento, pelo SNS, dos correspondentes milhões. Em 2018, e só no Algarve, tal representou 4,6 milhões de euros de custos acrescidos.

E o que faz, perante tudo isto, o Governo? Em vez de contratar os profissionais qualificados que são necessários para garantir a prestação adequada dos cuidados de saúde a que todos os cidadãos têm constitucionalmente direito, ao mesmo tempo que subfinancia as entidades públicas da saúde, força-as a recorrerem a horas extraordinárias e à contratação da prestação de serviços externos (sobretudo com empresas privadas prestadoras de serviços médicos e de enfermagem e com profissionais, essencialmente médicos, contratados “à tarefa”).

Deste modo, ficou agora a saber-se que, em 2018, o Estado – o mesmo Estado que chumba a contratação de médicos e de enfermeiros em condições profissionalmente dignas – gastou 222 milhões de euros só em pagamento de horas extraordinárias na Saúde.

Este valor astronómico – que representa um aumento de 28% relativamente a 2015 – permitiria, segundo o próprio Presidente da Associação Portuguesa de Administradores Hospitalares (APAH), Alexandre Lourenço, contratar, e de forma permanente, 7505 profissionais da saúde.

No mesmo ano de 2018, António Costa, Marta Temido, Mário Centeno e os seus parceiros de governação preferiram ainda pagar mais 105 milhões de euros (mais 7,3% que em 2017) nos tais contratos à tarefa e de prestação de serviços.

E a Ordem dos Médicos estima que a soma destes dois valores (222 + 105 = 307 milhões de euros) dava para contratar mais de 5000 médicos em horário de 40 horas semanais.

Por outro lado, se formos analisar os défices anuais do SNS (ou seja, os valores correspondentes à diferença entre as transferências do Orçamento do Estado para o SNS e o conjunto das despesas deste), verificamos que – tal como demonstrou, em estudo muito recente (21/9/2019), o economista Eugénio Rosa – eles representaram, com o anterior governo, uma média de 987,5 milhões de euros por ano, enquanto que com o governo de António Costa até aumentaram, foram em média de 1052 milhões anuais, atingindo a soma global de 5.264 milhões de euros.

Com esta forma de governar e com os consequentes e sucessivos défices do SNS, só restou às entidades públicas, para poderem funcionar, e mesmo assim muito deficientemente, endividarem-se, tendo por tal motivo a dívida dos hospitais EPE atingido os 550,4 milhões de euros em Julho de 2019.

A mentirosa propaganda governamental invoca que o valor absoluto das transferências do Orçamento do Estado para a Saúde até teria aumentado nestes anos de governação de António Costa, mas se se considerar aquilo que deve ser considerado, ou seja, a percentagem do PIB que é transferida anualmente para o mesmo SNS, forçoso se torna concluir que ela, com o actual governo, não aumentou (andando pelos 4,4%) e foi até inferior à de 2013 e 2014 (4,66% e 4,5%, respectivamente).

Quanto à ADSE, no orçamento por ela apresentado ao Governo, este – que sempre vai afirmando que não cativa despesas de Saúde… – cortou arbitrariamente 50 milhões nas despesas com Saúde e 1,5 milhões nas despesas com pessoal, impedindo assim a contratação dos funcionários que são ali estritamente necessários. E em Fevereiro deste ano cativou mais 650 mil euros dessas mesmas despesas de pessoal, obrigando deste modo à contratação de trabalhadores precários, contratados através de empresas de trabalho temporário e pagos a um valor entre 2,5€ e 2,8€ à hora!

Como consequência deste grave e sistemático subfinanciamento do SNS, bem como da degradação salarial e de carreira e do completo esgotamento e desmotivação dos seus profissionais (e que vão assim trabalhar também nos estabelecimentos dos grandes grupos privados de saúde para comporem os respectivos orçamentos familiares), a despesa total com a Saúde suportada pelas famílias aumentou enormemente, fazendo com que, conforme os dados da própria OCDE, em 2016 tal percentagem fosse de 28%, quando a média dos pares da União Europeia era de apenas 18%, estimando-se que, agora, passados 3 anos, a situação seja ainda mais grave.

A taxa de mortalidade infantil – que atingiu o número de apenas 2,7 em 2017 – em 2018 e de acordo com os dados da Pordata, actualizados em 30/4/19, subiu para 3,2, numa preocupante inversão.

Chegamos a 2019 e, contra todas as promessas eleitorais do PS e dos seus apoios parlamentares e ao contrário das sucessivas declarações de intenções do Primeiro Ministro e da Ministra da Saúde, há cerca de 700 mil cidadãos sem médico de família. Segundo a Ordem dos Médicos, as cirurgias que ultrapassam o tempo de espera clinicamente aceitável duplicaram em 2018. E 20% (um 1/5 do total!) das cirurgias mais graves e urgentes, ou seja, as feitas a doentes com cancro, foram realizadas para além dos tempos de espera aceitáveis.

Perante esta catástrofe, os que o conseguem, procuram “fugir” para consultas e cirurgias em hospitais fora da sua área de residência, mesmo que muito longínquos, tendo por isso o seu número aumentado enormemente (cerca de 20%), e havendo o mesmo, nos primeiros 6 meses de 2019, ultrapassado já os 132.000 pacientes!

O que não conseguem ou não podem fazê-lo, mas têm posses, são assim e cada vez mais empurrados para os seguros, hospitais e grupos privados da Saúde.

E àqueles que, como sucede com grande parte dos reformados, dos idosos e dos desempregados, não têm disponibilidade financeira para recorrer aos privados, outra coisa não lhes resta que não seja a rendição à doença e até à morte.

Completados que foram 40 anos sobre a criação do Serviço Nacional de Saúde e pela mão dos sucessivos governos do PSD, CDS e PS, mas em particular pela mão do actual Governo do PS, os governantes e os interesses que eles servem estão a matar, não apenas o SNS, como também os nossos concidadãos mais pobres que dele necessitam para viver com dignidade e que a ele têm direito, mas que dele se vêm cada vez mais despojados.

A permitirmos que esta situação continue, bem que nos podemos preparar, e a muito breve trecho, para o enterro definitivo do SNS e para a condenação à morte de uma significativa parte da nossa população.

António Garcia Pereira


[1] Lei nº 56/79, de 15/9.

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