No final do dia 25 de Abril de 1974 tombou o governo de Marcelo Caetano e, com ele, um regime fascista que durara 48 anos. Foram, e são, por isso perfeitamente compreensíveis quer as manifestações populares de júbilo que nesse dia estalaram por todo o País, quer as celebrações, até hoje, dessa data histórica.
Porém, quando olhamos para o estado a que isto chegou 48 anos após a queda do fascismo, creio ser imprescindível que tenhamos presentes os ensinamentos que podemos, e devemos, retirar de toda essa experiência acumulada de cerca de meio século.
E o primeiro desses ensinamentos é o do papel absolutamente relevante desempenhado pelo povo português que, recorde-se, desobedeceu às primeiras indicações e determinações do Movimento das Forças Armadas para ficar em casa e aí aguardar tranquilamente o decurso dos acontecimentos, antes vindo em massa para a rua. O seu papel foi primordial no desfecho das próprias operações militares, no cerco (e posterior rendição) da sede da Pide (o único objectivo do golpe militar que não fora cumprido e sem um “plano B” para garantir de imediato a sua tomada), na prisão dos esbirros da polícia política, na imposição da libertação de todos (sem qualquer excepção) os presos políticos anti-fascistas, e no desenvolver de uma caminhada visando tomar nas próprias mãos a construção de uma sociedade verdadeiramente nova e de um mundo melhor, nomeadamente com a ocupação das casas devolutas e das terras abandonadas para as entregar a quem delas necessitava para viver, e com a constituição de comissões de moradores, de trabalhadores, de defensores do ambiente, de pais, de alunos, em suma de todos os elementos do Povo, para democraticamente debaterem os seus problemas e decidirem a respectiva resolução.
O segundo desses ensinamento é o da situação a que conduziu o desviar dessa fervilhante e generosa corrente revolucionária, levado a cabo por todos aqueles que, dizendo-se defensores, amigos e até representantes dos trabalhadores, os convenceram de que construir a sociedade sem opressão nem exploração a que eles justamente aspiravam era afinal algo que se poderia alcançar mantendo perfeitamente intacto o aparelho de Estado burguês e tão somente substituindo os seus antigos dirigentes e gestores por novos personagens de cravo vermelho ao peito.
Hoje, quando muitos se apercebem de que era mesmo necessário “ter ido mais longe” – repetindo, aliás e muito frequentemente, que “é preciso um novo 25 de Abril” – é então imprescindível não esquecer onde conduziram essas ilusões reformistas e a preservação do essencial da sociedade capitalista que elas permitiram.
Por fim, o terceiro ensinamento é o de que não ter adequadamente preservado a memória daquilo que eram verdadeiramente os tempos de repressão, de atraso, de fome, de miséria e de guerra do regime de antes do 25 de Abril (permitindo assim as mistificações e as falsidades dos “salvadores da Pátria” dos tempos modernos), e ter, com o mais nauseabundo dos oportunismos (ainda que envernizado como “pragmatismo” e “modernidade”), abandonado sucessivamente os princípios e as causas mais justas (que sempre foram apanágio da verdadeira Esquerda, como a preocupação com e a defesa dos mais fracos, dos mais velhos, dos mais pobres, dos mais doentes e dos mais vulneráveis, e bem assim a luta contra todas as formas de injustiça e de abuso e a exigência da permanente prestação de contas pelos titulares de cargos públicos), é o que tem conduzido a que os admiradores do antes do 25 de Abril tenham hoje: 12 dos 230 deputados do Parlamento português, mais de 41% dos votos nas eleições presidenciais francesas, 15% dos deputados do Bundestag alemão, 13% dos parlamentos holandês e sueco e até que se tenham instalado no Poder em países como a Hungria!…
Nunca foi, por isso, tão actual o notável poema de Vinicius de Moraes, “Operário em construção”, de que transcrevo este trecho:
(…)
Sentindo que a violência
Não dobraria o operário
Um dia tentou o patrão
Dobrá-lo de modo vário.
De sorte que o foi levando
Ao alto da construção
E num momento de tempo
Mostrou-lhe toda a região
E apontando-a ao operário
Fez-lhe esta declaração:
– Dar-te-ei todo esse poder
E a sua satisfação
Porque a mim me foi entregue
E dou-o a quem bem quiser.
Dou-te tempo de lazer
Dou-te tempo de mulher.
Portanto, tudo o que vês
Será teu se me adorares
E, ainda mais, se abandonares
O que te faz dizer não.
Disse, e fitou o operário
Que olhava e que refletia
Mas o que via o operário
O patrão nunca veria.
O operário via as casas
E dentro das estruturas
Via coisas, objetos
Produtos, manufaturas.
Via tudo o que fazia
O lucro do seu patrão
E em cada coisa que via
Misteriosamente havia
A marca de sua mão.
E o operário disse: Não!
– Loucura! – gritou o patrão
Não vês o que te dou eu?
– Mentira! – disse o operário
Não podes dar-me o que é meu.
António Garcia Pereira
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