A ida do dirigente nazi Mário Machado à TVI suscitou inúmeros e acesos comentários. Creio, todavia, que importa ir bem mais fundo do que os caracteres de uns quantos tweets ou publicações no Facebook.
Assim, podemos começar por questionar: podem em Democracia as mais diversas e até desvairadas ideias ser expressas? Claro que podem! E podem ou devem os seus defensores ser perseguidos pelo simples facto de defenderem essas ideias, mesmo se amplamente consideradas injustas e erradas? Claro que não! Essas mesmas ideias injustas e erradas devem ser derrotadas pela crítica e pela denúncia dos seus erros e dos seus crimes e não pela sua simples proibição ou perseguição administrativa ou policial.
Mas uma coisa é discutir e debater, a sério e aprofundadamente, as ideias erradas, em particular quando elas se procuram mascarar de simpáticas e democráticas, e outra, inteiramente distinta, é permitir, fomentar e inclusive amplificar a sua difusão e até organização, sem as sujeitar, de modo firme, exacto e fundamentado, ao confronto com a realidade e com a demonstração da sua natureza antidemocrática, xenófoba, racista e salazarenta.
Como uma coisa é permitir que alguém exprima e até divulgue um ponto de vista mais do que reprovável, inclusive nazi (e, claro, permitir também que outrem logo o qualifique e denuncie como tal…) e outra completamente distinta é possibilitar e até ajudar o objectivo de constituição e funcionamento de organizações que partilhem essas concepções ideológicas e que tratem de as aplicar e pôr em prática, coisa que a Constituição frontalmente proíbe no seu artigo 46º, nº 4. Mais ainda quando os seus defensores buscam branquear a sua verdadeira face e antes tratam de apresentar-se como gente simpática, cordial, dialogante e até democrática (até terem o varapau do Poder nas mãos…).
A ida de Mário Machado ao programa “Você na TV” da TVI deve assim ser vista sobretudo sob a perspectiva da forma e da imagem de pretensa tolerância e de pretenso respeito pelos outros com que esse indivíduo pôde ser apresentado a centenas de milhares de telespectadores.
É que Mário Machado saiu da cadeia em Maio de 2017 em liberdade condicional após ter sido condenado a um cúmulo jurídico de 10 anos de prisão devido a 6 condenações criminais (em 1997, 2010, 2012 e 2016 por crimes como os de discriminação racial, coação agravada, posse ilegal de arma, ofensa à integridade física e tentativa de extorsão), e é admirador e defensor confesso de Salazar e das suas práticas políticas, bem como do “fim do multiculturalismo” e do fim de “toda a imigração não europeia para Portugal”, e ainda do combate às “realidades artificiais” que atacam a Família, como o aborto ou a igualdade de género.
Mais! Mário Machado foi líder do grupo neonazi “Frente Nacional”, criado em 2004 e dissolvido, pela sua completa ilegalidade, em 2008. Foi fundador do movimento neonazi e skinhead “Hammerskin Portugal”. E é presentemente o líder do movimento chamado “Nova Ordem Social” que aspira a transformar-se em partido político e concorrer a eleições. Isto, quando a Constituição Portuguesa prevê no seu artigo 160º, nº 1, alínea d), que perdem forçosamente o mandato os deputados que sejam judicialmente condenados por participação em organizações que perfilhem a ideologia fascista.
A “Nova Ordem” é, aliás, um conceito criado pelos nazis durante o III Reich e que pregava abertamente a aniquilação dos grupos sociais considerados indignos de viver (como os judeus, os negros, os ciganos, os homossexuais e os deficientes) e a expulsão, escravização e até a exterminação dos considerados socialmente inferiores.
Na noite de 10 de Julho de 1995 (não de 1195, reparem!) Mário Machado esteve envolvido nos violentíssimos espancamentos de inúmeros cidadãos africanos, de que resultaram mais de uma dezena de feridos graves e o homicídio de Alcindo Monteiro, um franzino jovem português, nascido em Cabo Verde, com 27 anos de idade que nessa noite descia, sozinho, a R. Garrett quando foi cercado, encurralado e atacado por um grupo de cerca de 15 skinheads que repetidamente o esmurraram, socaram (com soqueiras de aço), pontapearam no estômago, no peito, nos testículos, na cabeça (com as tristemente célebres botas de biqueira de aço, das marcas Doc Martense Sendra) e que culminaram com uma fortíssima pancada na nuca desferida com um bloco de cimento com 21,5 cm de diâmetro e 2 cm de espessura!
Mário Machado conta ainda no seu activo com agressões graves a 5 pessoas na noite de Lisboa, enquanto outra das suas vítimas foi durante 3 horas agredida a soco e pontapés, amarrada, pendurada numa cruz, queimada e cortada, em várias partes do corpo, com um serrote. Outra ainda foi sequestrada, espancada e abandonada num lugar ermo, em Monsanto. Outra (que terá ajudado as autoridades policiais em investigações) foi ameaçada de morte, por carta, com expressões como estas: “vão-te matar à frente dos teus filhos!” e “vais pelo cano!”.
É assim evidente que a aparência “democrática” e de “simpatia” com que este personagem – que nunca se arrependeu, bem pelo contrário, de todas estas “proezas” – se tenta apresentar para melhor fazer passar as suas ideias, não passa de uma máscara. E não de um simples e inócuo “defensor de ideias polémicas” (como foi apresentado no programa da TVI), mas sim de alguém que já praticou, e repetidamente, inúmeros crimes e cujo pretenso ideário consiste na apologia do ódio, da agressão violenta e cobarde sobre os que supostamente são “inferiores” ou “deficientes” e das maiores brutalidades sobre aqueles que pensam de forma diferente da sua (desde logo os marxistas, cujas ideias são, como proclama a Nova Ordem Social, uma “ideologia que contamina”).
A dita entrevista, ou melhor, a dita operação de limpeza da imagem não constitui, por isso, e ao invés do que alguns pretenderam, qualquer concretização da liberdade de expressão ou da liberdade de informação acerca de ideias que nos merecem reprovação. É, sim, a permissão da apologia dum ideário e dum programa de acção não apenas antidemocráticos, mas nazis na sua expressão mais pura. A cujo portador foi permitido defender Salazar e o regime fascista sem nunca ser confrontado frontal e directamente com os factos históricos da demissão, da perseguição, da prisão, do degredo, da tortura e do assassinato pelos assassinos da Pide de inúmeros cidadãos que se bateram contra a ditadura.
Nem uma palavra foi dita sobre os assassinos de Ribeiro Santos, de Humberto Delgado ou de Dias Coelho, por exemplo, como nem uma palavra foi dita sobre os milhares de mortos e as dezenas de milhares de estropiados na guerra colonial.
E Mário Machado nem sequer foi confrontado, quando se pretendeu apresentar como uma espécie de “redimido” que já não pregaria o ódio, com o facto incontornável de que nunca apresentou um pedido de desculpas às vítimas dos crimes que cometeu.
E, sim, Alcindo Monteiro e restantes vítimas, nós nunca vos esqueceremos!
A citada ida à TVI foi, pois, uma inqualificável e inaceitável manobra de branqueamento e de promoção de um nazi e do partido nazi que, contra a lei e a Constituição, ele pretende criar. E não nos deveríamos esquecer nunca da história tradicional chinesa daquele camponês que, numa gélida manhã de Inverno, encontrou uma víbora congelada e que, condoído da sua situação, lhe pegou e a aconchegou junto do seu corpo agasalhado. Então, assim que o calor a descongelou, a víbora ferrou os dentes no seu salvador e matou-o em breves segundos.
Mas há um outro aspecto de toda esta questão que também não pode ser desvalorizado nem muito menos esquecido, e que é o do verdadeiro papel e das posições agora assumidas, a propósito deste caso, por muitos do que se dizem democratas ou de esquerda.
É que a pregação do fim das ideologias e a sua substituição pelas teses da “terceira via” e do “socialismo na gaveta” e pelo chamado “pragmatismo” (leia-se, o oportunismo mais descarado e até nauseabundo); o abandono daquelas que sempre foram as causas da Esquerda (o combate à pobreza, a preocupação com os mais fracos e mais vulneráveis como são os velhos, as crianças e os doentes, o apelo à solidariedade social e ao pensar colectivo); a asfixia dos pontos de vista discordantes e mais críticos e a adesão às teses mais reacionárias e policiescas (como a tristemente célebre teoria do “excesso de garantismo” e a pregação e a aplicação da inutilização e eliminação dos direitos fundamentais dos cidadãos em nome das preocupações securitárias); a defesa sistemática dos grandes interesses financeiros (designadamente em nome da necessidade de defender os Bancos, de tapar os seus “buracos” e de assim evitar os “perigos sistémicos”); o carregar com cada vez mais impostos quem vive do seu trabalho; a venda ao desbarato (ou a continuação ou manutenção dessa venda) aos grandes potentados financeiros internacionais das principais empresas e recursos nacionais; e enfim a aceitação, como normais, da distribuição e troca de tachos, de vantagens e de favores por parte dos partidos do Poder (que são quem os tem para distribuir…) e da extensa corrupção daí decorrente, tudo isto tem vindo a abrir por completo o campo a que ultra-reaccionários da pior natureza possam aparecer como “salvadores da Pátria”.
A pregarem não apenas contra “os estrangeiros que nos tiram os empregos”, contra “os ciganos que não se querem integrar”, mas também contra a corrupção, a desordem, a falta de autoridade, a intranquilidade, fazendo demagogicamente a apologia de “valores” como a ordem, o equilíbrio financeiro, a autoridade, a honradez e a paz. E conseguindo – se assim o deixarmos – escamotear que a estabilidade e a paz que prometem são afinal as dos cemitérios. Que a sua ordem é, como a História nos ensina, a do silêncio da força bruta. E que a honradez e o equilíbrio financeiro são afinal as de uma alcateia mais concentrada e mais protegida actuando sob a capa dos “superiores interesses da Nação” (como sucedia em Portugal antes do 25 de Abril com a meia dúzia de famílias que tinha toda a riqueza nas mãos).
E atacar e insultar os explorados, oprimidos e revoltados que, precisamente pela ausência de uma ideologia avançada e progressista que os cative e norteie, acabam por produzir afirmações erradas e até chocantes, logo os apodando de “fascistas” e de “reaccionários”, o que precisamente faz é atirá-los para os braços dos verdadeiros fascistas e reaccionários, e constitui o erro histórico que tem levado os Hitlers, os Trumps e os Bolsonaros ao Poder.
Significa tudo isto que o combate aos Mários Machados e às “Novas Ordens” da nossa praça não passa apenas, muito menos essencialmente, por fazer uns quantos inflamados “tweets” contra os mesmos, pois que essas publicações só lhes conferem afinal mais ressonância e notoriedade. Como aliás o demonstra o regozijo dos respectivos apoiantes ao triunfantemente proclamarem, pelas várias redes sociais, que o seu objectivo (de promoção e branqueamento) foi alcançado…
Tal combate passa sobretudo por estar no lugar certo da barricada, por defender sempre princípios correctos e não interesses de momento, também e por exemplo por não aldrabar nem mentir, por não arranjar “esquemas” de marcação de presenças e de fixação de residências para receber mais umas quantias, por seguir e aplicar sempre uma linha política de apoio e de defesa de quem vive do seu trabalho e de quem é mais pobre e mais fraco.
E só assim será possível evitar que víboras congeladas enganem desesperados e incautos…
António Garcia Pereira
A primeira vez que li uma completa e bem delineada explicação sobre este fenómeno assustador que começa a emergir na sociedade. Parabéns. Sempre gostei das suas intervenções inteligentes , só é pena que não sejam mais amplamente difundidas.
Perfeita ordenação dos factos, como sempre deveríamos fazer para não nos perdermos em frações de pensamento que nunca passam da superfície das coisas. Obrigada!
Vergonhoso. Ao estado a que estas tvs chegaram,promover imagens de nazis. Sem. Referir os tempos de antena de futilidade e atrofiamento
Texto muito bem escrito! Parabéns!
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