As lições a tirar de uma derrota anunciada

Os resultados destas eleições legislativas de 2025 devem merecer uma reflexão crítica e aprofundada, em particular por parte dos partidos que se proclamam de esquerda.

A esquerda parlamentar sofreu – e não há como negá-lo – uma estrondosa derrota nestas eleições. O PCP perdeu 22 mil votos e 1 deputado, ficando com 3. O BE perdeu cerca de 150 mil votos e 3 deputados, ficando apenas com 1. Já o PS perdeu cerca de 400 mil votos face a 2024, bem como 18 deputados, contando agora apenas com 58.

Por seu turno, o PSD obteve mais 160 mil votos, elegendo mais 9 deputados do que há um ano, totalizando agora 86. O Chega, com mais 240 mil votos, conquistou mais 8 deputados, ficando com 58. A IL, por sua vez, com um acréscimo de 18 mil votos, passou de 8 para 9 deputados. Em conjunto, estes três partidos da direita (e sem contar sequer com os 4 mandatos da imigração) ultrapassam a maioria de dois terços necessária para proceder a uma revisão constitucional.

Como foi que as coisas chegaram a este ponto, perguntarão muitos. 

A verdade, nua e crua, é que esta era uma derrota há muito anunciada dos partidos da esquerda parlamentar, que têm vindo a abandonar a defesa clara e firme dos direitos de quem trabalha e das causas que sempre foram próprias da esquerda: a defesa dos mais fracos e desfavorecidos, a luta contra a injustiça social, o desemprego, a falta de habitação e de cuidados de saúde, bem como o combate à corrupção e aos compadrios, como tenho vindo, aliás, a demonstrar, com exemplos concretos, em diversos artigos que fui publicando ao longo destes últimos anos – alguns dos quais chegaram mesmo a ser acusados por pessoas de esquerda, de irem contra a própria esquerda!

Devem agora (com particular destaque para o PS e para o BE) ser confrontados com a responsabilidade da sua postura eleiçoeira: ora a piscar o olho ao centro (ou seja, à direita), na esperança de captar mais votos, ora a desviar o centro da sua actividade, não para os problemas fundamentais do povo português, mas sim para questões colaterais ou até para chamadas causas ditas fracturantes ou identitárias (que até poderão ser importantes, mas não são as principais).

Se é para, de forma seguidista, aceitar os ditames da União Europeia e pôr em prática as suas políticas de protecção dos grandes interesses económicos e financeiros (a começar pelos da banca), a privatização dos principais sectores da economia e a sucessiva restrição dos direitos dos cidadãos, muitos eleitores terão pensado que mais vale que sejam os partidos que o defendem clara e abertamente a fazê-lo. É que, ao contrário do que muitos dirigentes dos partidos da esquerda parlamentar julgam, também em termos eleitorais – e, ao menos a certo prazo –, os tacticismos e oportunismos não compensam.

Finalmente, o crescimento de um partido de extrema-direita, e mesmo fascista, como é o Chega deve merecer não receios nem recuos, mas sim atenção e resistência. Tal ascensão do Chega deve-se, antes de mais e acima de tudo, ao abandono, por parte dos partidos da esquerda parlamentar, do combate aos problemas que mais afectam o quotidiano do cidadão comum: a falta de emprego e de habitação, os baixos salários e as pensões de miséria, a liquidação em curso do SNS, o desastre que é a educação, o combate à corrupção, entre outros. E, naturalmente, um tal abandono é algo que – como sempre sucedeu ao longo da História – os populistas mais ferozes (como Hitler, na Alemanha dos anos 30, e, mais recentemente, Milei, na Argentina) sempre souberam, e continuam a saber, aproveitar para se alcandorarem ao poder.

Mas há outros factores que também contribuíram para esse resultado e que merecem, igualmente, a nossa cuidada atenção. 

Por um lado, o ambiente geral de despolitização e de “desideologização” dos trabalhadores, com o consequente e livre campear da ideia de que “a diferença entre Esquerda e Direita deixou de fazer sentido”, bem como da lógica segundo a qual o dinheiro, o poder e o sucesso a qualquer custo são os valores superiores, de que os fins justificam os meios e, enfim, de que a culpa dos problemas que nos afectam não é de quem nos explora e oprime, mas sim dos “outros” – afinal, seres humanos iguais a nós, apenas com uma cor, etnia, religião, orientação sexual ou credo político diferente do nosso.

Por outro lado, houve também uma utilização muito eficaz das redes sociais, de falsos perfis e de notícias falsas – técnicas que o Chega aprendeu, designadamente, junto dos seus congéneres espanhóis, como o VOX – e que, precisamente pela ausência de espírito crítico e pela sedução do imediatismo e do sensacionalismo, captam um grande número de pessoas, sobretudo aqueles cada vez mais reféns do “império dos ecrãs”. Nomeadamente, em muitos grupos de vizinhos nas redes sociais, proliferam comentários que reproduzem e reforçam ideias de extrema-direita, com alguma frequência sem que os próprios intervenientes tenham consciência clara do seu conteúdo ideológico. Estas ideias vão sendo alimentadas dia após dia, num ambiente de medo, frustração e desinformação. E, nesse contexto, quem se diz de esquerda, em particular da esquerda parlamentar, em vez de procurar esclarecer e dialogar, adopta muitas vezes uma postura de (pretensa) superioridade moral e intelectual que, longe de ajudar, apenas contribui para afastar ainda mais quem já se sente desamparado e abandonado. Essa arrogância – real ou assim percebida – cimenta o caminho.

É fundamental distinguir entre os dirigentes do Chega – que, consciente e deliberadamente, promovem o ódio, a divisão e o autoritarismo – e os sectores da população que, fruto da frustração, da desinformação e da exclusão, acabam por reproduzir algumas dessas ideias. Criticar com firmeza, até com veemência, os primeiros é não apenas legítimo, mas necessário. Já perante um cidadão comum – um elemento das massas – que adopta ou repete certos discursos da extrema-direita, o que se impõe é uma atitude de esclarecimento e persuasão. Não se trata de hostilizar à partida, mas de confrontar com factos e argumentos, de expor a raiz dos problemas reais, de mostrar quem verdadeiramente beneficia da divisão e da alienação. Porque só assim, e não com superioridade moral, se trava o avanço das ideias reaccionárias entre o povo.

Por fim, uma Comunicação Social simultaneamente sedenta de sensacionalismo, porque este gera audiências, e ávida por se manter próxima de tudo quanto lhe pareça ser, ou possa vir a ser, Poder, deu uma cobertura gigantesca às acções e posições do Chega. A forma como, sobretudo as televisões, ofereceram longos tempos de antena aos achaques de Ventura e às suas deslocações entre hospitais é disso um triste, mas mais do que significativo, exemplo… Por acaso, fizeram o mesmo quando Luís Montenegro foi hospitalizado devido a um problema de arritmia, no passado mês de Março? Ou, pior ainda, quando Jerónimo de Sousa, em 2022, teve de abandonar a campanha eleitoral para ser operado de urgência a um problema cardíaco? Não! A diferença de tratamento diz muito sobre o que se promove e o que se discrimina no espaço público…

Com estes resultados eleitorais, a nova composição do Parlamento e a situação política que assim se propicia, os tempos que se avizinham serão, seguramente, duros e difíceis. Com a revisão constitucional agora ao alcance (ou mesmo sem ela), é de prever a destruição e o aniquilamento dos direitos que ainda restam formalmente consagrados aos cidadãos e, em particular, aos trabalhadores: greve, organização e acção sindical, contratação colectiva, despedimentos, contratação precária, mas também a liberdade de expressão, a liberdade de organização e de manifestação – tudo isso será, decerto, submetido ao rolo compressor das “reformas estruturais” e do “menos Estado, melhor Estado” proclamadas pelos fervorosos adeptos das teorias da Escola de Chicago e da tróica. 

E as palavras de ordem que se ouviram já ontem à noite mostram bem o que nos espera. Desde o grito de “Já passámos!”, em clara e provocatória resposta fascista ao célebre grito antifascista “Não Passarão”, até ao “Chora, Pedro!”, clamado pelos apoiantes de Ventura, ou às declarações do próprio, risonho e arrogantemente triunfante: “Matámos o partido de Álvaro Cunhal”, “Varremos do mapa o Bloco de Esquerda” e, mais significativamente ainda, “Dizem que fomos agressivos… ainda não viram nada!”. Tudo isto deve ser levado a sério, com plena consciência do que representa: ameaça, apelo ao ódio, insulto, perseguição e, sim, até o risco real de agressão.

Todavia, não é chorando, mas sim aprendendo com as derrotas que se consegue avançar. Como também não é alimentando ilusões eleitoralistas que se alcança a verdadeira democracia para o povo. Essa conquista faz-se, isso sim, através da organização e da luta – nas fábricas e nas empresas, nos bairros, nas escolas, em suma, na rua – pelos direitos e interesses de quem verdadeiramente tudo cria e tudo produz. 

Essa luta já era, é – e agora será mais ainda – dura e difícil. Mas é quando o mar está mais revolto que, afinal, se conhecem os verdadeiros marinheiros. Como diz o velho, belo poema de Manuel Alegre:

Mesmo na noite mais triste,

Em tempo de servidão,

Há sempre alguém que resiste, 

Há sempre alguém que diz não.

E nós somos – temos de ser – essa resistência!

António Garcia Pereira

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