O assassinato de Ivanice Costa: a pena de morte e as execuções sumárias regressaram a Portugal?

Na 4ª feira da passada semana, dia 15/11, às 3H35 da madrugada, na zona da Encarnação, mais uma pessoa – desta vez Ivanice Carvalho da Costa, de 36 anos, que seguia de carro ao lado do namorado e ia a caminho do trabalho, num café do Aeroporto – foi morta a tiro por agentes da PSP.

Entre 2006 e 2016, outros 31 cidadãos foram baleados e mortos por elementos da PSP ou da GNR.

Até ao momento, não conhecemos de todo a versão do namorado de Ivanice e condutor do veículo, mas apenas a da própria PSP, desde logo através de um comunicado tornado público às 12H23, ou seja, cerca de 9 horas após o sucedido.

A “explicação” policial para mais este assassinato foi a de que os agentes terão confundido a viatura em causa (um Renault Megane) com outra (um Seat Leon) em que, meia hora antes, vários indivíduos, todos homens, teriam efectuado disparos de armas de fogo e escapado a uma perseguição policial desencadeada desde Almada, após um violento arrombamento de uma caixa multibanco.

É preciso, porém, dizer com toda a clareza que a dita “explicação” para procurar justificar o homicídio às mãos da polícia da 32ª vítima, além de perfeitamente tosca, não justifica coisa alguma.

Por um lado, porque “confusões” destas – as viaturas, as matrículas e os ocupantes eram diferentes – são tão inverosímeis quanto inaceitáveis, mais ainda quando se trata de dezenas de disparos policiais e efectuados por trás e a meia altura (ou seja, à altura e na direcção adequadas a provocar morte).

Muitos de nós ainda nos recordamos de como, em 16 de Maio de 1977, o jovem advogado sabugalense Fitz Augusto Neves Quintela, quando circulava acompanhado da mulher na zona do Monsanto, foi brutalmente assassinado a tiro por uma brigada policial que precisamente alegou ter “confundido” o respectivo carro com o utilizado pelos autores de um assalto ocorrido em Linda-a-Velha.

Mas, mesmo que fosse o veículo utilizado por suspeitos de um assalto, e mesmo que ele não parasse numa barreira policial, é legítimo matar quem o conduz ou, pior, outra pessoa que nele viaja, para assim conseguir a respectiva imobilização? Não, de todo!

Todos nos deveremos recordar também da forma como o rapper MC Snake (nome artístico do cidadão Nuno Manaças) foi morto a tiro pela polícia, uma vez mais com tiros disparados por detrás e a meia altura, na madrugada de 15 de Março de 1010, junto aos Pupilos do Exército. Isto, depois de, ao volante de uma pequena viatura, não ter parado numa operação STOP junto à Doca de Santo Amaro, e sem que tivesse praticado qualquer atitude violenta e muito menos usado ou sequer exibido qualquer arma de fogo (ao invés do que “fontes policiais” chegaram a avançar na altura).

O uso de arma de fogo com disparos efectuados na direcção de uma pessoa apenas tem justificação, quer legal, quer regulamentar (Decreto-lei nº 457/99, de 5/11), como medida extrema e de absoluta necessidade na legítima defesa do próprio autor ou de terceiros. Ou seja, quando os tiros se mostram necessários, adequados e proporcionais para fazer face a uma ameaça grave, iminente ou já em curso, para a vida ou integridade física de alguém.

E é aliás por isso mesmo que, sempre que se verifica (mais) uma morte praticada pela polícia, logo surge a versão de que o condutor (ou a pessoa com quem ele teria sido confundido) teria tido uma conduta criminosa e perigosa contra os autores dos disparos, os quais, coitados, para salvarem a própria vida, ter-se-iam visto então “obrigados” a disparar.

Todavia, a verdade é que mesmo a versão policial de que os ocupantes do Seat Leon do assalto teriam anteriormente efectuado disparos (assim se tentando sustentar que os polícias estariam nervosos ou até receosos) não teve até agora qualquer confirmação. Na verdade, segundo foi (mais ou menos silenciosamente) entretanto noticiado, nem as viaturas policiais envolvidas na perseguição ostentam o impacto de qualquer bala, nem até ao momento terão sido encontrados pela Polícia Judiciária quaisquer vestígios (designadamente projectéis ou cápsulas vazias) desses disparos de balas alegadamente feitos.

Depois, se os disparos policiais se destinassem a imobilizar a viatura, seriam efectuados para os pneus, logo, em trajectória de cima para baixo e nunca paralela ao solo. E se consistissem numa reacção a uma qualquer tentativa de atropelamento capaz de causar a morte ou graves danos aos polícias (como a PSP pretende alegar), então eles teriam de ter sido efectuados de frente e não por detrás como efectivamente foram todos, e em número de cerca de 40, metade dos quais acertaram mesmo na viatura.

O disparo, por parte de agentes com instrução e treino de tiro, de dezenas de tiros, a meia altura, na direcção de um veículo que já transpôs os ditos polícias está completamente fora do quadro legal da possibilidade do uso de arma de fogo para repelir uma agressão actual e ilícita, dirigida contra o agente ou terceiros, quadro legal esse que exige, além da demonstração dessa agressão, que exista um “perigo iminente de morte ou ofensa grave à integridade física”. 

E quando se está fora desse quadro legal e se desfecham 4 dezenas de tiros a meia altura sobre um veículo que se está a afastar não se está, obviamente, a agir em legítima defesa!

Está é a cometer-se uma autêntica e totalmente inadmissível execução sumária, que sempre seria inaceitável mesmo relativamente ao autor do mais violento dos crimes, que deve é ser julgado e condenado nos Tribunais, e não na rua ou na televisão, e de acordo com as leis do país e não a “lei da selva”. Mas que é ainda mais inaceitável na pessoa de (mais) uma vítima inocente como Ivanice Costa, uma jovem brasileira, trabalhadora de um estabelecimento de restauração do Aeroporto Humberto Delgado, a caminho do seu ganha-pão.

Como é também absolutamente inaceitável que vejamos responsáveis da PSP a procurar defender publicamente o tão legal quanto eticamente indefensável (ao estilo de “a polícia pode e deve disparar contra pessoas em caso de agressão ilícita” ou “se tem armas, é para as usar”). E, mais ainda, que o Comando da PSP se tenha atrevido – é o termo – a vir fazer um comunicado a difundir a versão dos polícias (que, em vez de terem sido imediatamente suspensos, se encontram ao serviço, embora convenientemente “recolhidos” em tarefas administrativas) e, antes de qualquer averiguação isenta a cargo das entidades competentes (a Polícia Judiciária e o Ministério Público, em matéria criminal, e a Inspecção Geral da Administração Interna – IGAI, em matéria disciplinar), a propalar versões e a adoptar posições de desculpabilização do crime cometido.

O Ministro da Administração Interna, como responsável máximo das polícias, nada diz de concreto a não ser que “todas as forças de segurança estão bem coordenadas”, por nada se responsabiliza e tenta assim escapar entre os pingos da chuva. E a Ministra da Justiça até se atreveu a comentar que este caso não teria “provocado alarme social”!? E mesmo entidades e organismos como a Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados, a quem competiria o elementar dever de a denunciar, se calam perante esta barbárie.

A qual, sendo absolutamente intolerável, já era infelizmente expectável. Pela lógica quer das “Justiças” sumárias praticadas cada vez mais livre e impunemente pela Comunicação Social, quer das “equipes de intervenção rápida” e dos “corpos de intervenção” que são criados, mantidos e treinados (como já se vira, por exemplo, na noite de 14 de Novembro de 2012 em frente ao Parlamento, em 5 de Fevereiro de 2015 na Esquadra de Alfragide ou em 17 de Maio de 2015 junto à porta 16 do Estádio de Guimarães) para, em nome das ditas “intervenções musculadas”, primeiro baterem brutalmente ou dispararem mortalmente e só depois dizerem ou perguntarem alguma coisa. Para de seguida justificarem essas actuações criminosas com os velhos e relhos argumentos da invocação da prévia prática de agressões, ameaças ou insultos por parte das vítimas, plasmados em relatórios depois devidamente “acondicionados” para o efeito.

Não! Os agentes policiais não são juízes e não lhes compete julgar, sentenciar e sancionar cidadãos, sejam eles quem forem e tenham feito o que fizeram!

Não! A pena de morte não regressou a Portugal e não pode haver lugar a execuções sumárias! 

Não! Os responsáveis por este tipo de actos, desde os seus executantes directos aos que os dirigem e encobrem, não podem deixar de ser devida e exemplarmente responsabilizados!

Lisboa, 23 de Novembro de 2017

António Garcia Pereira

Um comentário a “O assassinato de Ivanice Costa: a pena de morte e as execuções sumárias regressaram a Portugal?”

  1. Não diz nada sobre o condutor k não parou à ordem daPSP ou GNR,não tinha C.condução e k fez na Suíça.A

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