Há quase sessenta anos águas cálidas da Guiné-Bissau – na altura do século XV a Bossassum, a Onça Africana – banhavam o meu umbigo. O primeiro território além Sahara, dentro do continente Africano a ser encontrado e aportado pelas naus dos Portugueses. Eram boas e fáceis de navegar as reentrâncias daquele golfo, pensaram os marinheiros, o escriba e os capitães ao serviço de um Monarca e de um Papa -”vamos ver que riquezas encontramos…”
Preambulando,
Tenho por auto-proclamada missão sacar do meu chapéu de magia todas as histórias que conseguir criar ou re-criar sobre o meu continente africano. Servem para trazer à luz quão imenso, profundo, rico e belo que é. Espalhámo-nos como espécie por todos os continentes que o planeta nos colocou à disposição para encontrarmos.
Talvez o conselho dos deuses tenha dito numa nuvem condensada que se liquidificou – “ide e tomai-os todos, são vossos. Cuidai das suas florestas, mares, rios e vida animal. Nos solos encontrareis riquezas poderosas para vos ajudar a sobreviver, no planeta da atmosfera”. Fomos-nos sub-dividindo em ramos, a partir do tronco da mesma árvore. Alguns desconseguiram entender e subverteram a mensagem. Foi iliteracia sobre análise de texto.
Os ramos mais perto do sol, produziam diversos sub ramos com mais melanina, criando uma capa escura para protecção dos vasos sanguíneos, da linfa, dos músculos e do coração. Esse músculo comum, que precisa de energia vital para espalhar oxigénio no corpo da vida, por um curto período.
Com ele a árvore indicava sobre o sentir – “vejam bem, a terra dura, o corpo não”. A natureza é sábia.
Aos ramos mais escondidos do sol assegurava-se que para sobreviver podiam ficar mais desprotegidos. Os seus irmãos do mesmo sangue, com veias iguais seriam iguais sempre, com a poupança na melanina. Sábia, a natureza. Os troncos foram seguindo diversas direcções, misturando-se uns, outros criando os seus próprios ninhos. Iguais na raiz, seiva, tronco e casca vindas da mesma árvore. Diferentes nos ramos que inventassem para si.
O âmago do continente,Passaram-se muitos séculos de histórias da espécie que sabe perfeitamente criar distopias afastando-se das utopias. Novamente a doença da iliteracia das almas doentes. A árvore cresceu em todas as longitudes da sua raiz uterina perada, porque em forma de pêra.
E onde estão elas?
Não se esqueçam, estão no mesmo lugar da ancestralidade humana. As raízes continuam a observar o céu, a rasgar a terra, a dar frutos, a aguardar o dia de ser finalmente apreciada como nosso chão sagrado. Vêem os seus troncos sangrando envolvidos nas estúpidas guerras dos homens, pela sua posse.
Mas ela não é de ninguém – pensa com os botões… ela é de todos casa-mãe! Pensem no desgosto de ver os seus filhos ambiciosos, que não se sabem comportar nem dividir a sua farta mesa. Vê também que há uns troncos da sua raiz tratados como filhos de deuses inferiores – Ah estes filhos de uma iliteracia em interpretação de raízes…pensa com o coração fitchadu na dor enumerando as costas voltadas: “Um filho branco mata um filho preto só porque este é preto. Um filho preto mata outro filho preto porque quer ficar nas boas graças do irmão branco. Um filho preto mata um filho branco só porque o ódio da separação lhe enche o coração.”
No meio do jogo do ódio chega o espertalhaço que percebe a manipulação e num golpe de marketing assegura-se que a roda da divisão não termine nunca.
“Ó maldição! Estes milandos são xikuembo!”
E onde estão os ramos poetas?
As vozes dos políticos falam tão alto que esses filhos desgraçados nunca são ouvidos. Por não serem ouvidos – eles que gritam, cantam e escrevem as raízes das aflições – caem impérios, são trituradas e engolidas civilizações. Enquanto o chão sagrado vai escutando as vozes dos filhos…separados por não verem a raiz, a seiva, o tronco, a casca…
Epilogando
No dia 25 de Maio de 1963 foi criada a Organização de Unidade Africana (OUA), na Etiópia, com o objetivo de defender e emancipar o continente africano contra a colonização por parte dos irmãos Europeus. Visava também o combate contra os regimes de apartheid remanescentes do período de quase cinco séculos de Escravatura iniciada. Esta, iniciada na Época das Descobertas, na Idade Média, com ela vindo posteriormente a divisão do Continente na Conferência de Berlim em 1884 em 54 cantos (como se de fatias de pizza de tratassem).
Nesses cantos (deles, cinco ex-Lusíadas) – origem de tantas culturas, civilizações, reinos e muitas cantigas, onde se falam 2092 Línguas, que os colonizadores não se deram apenas ao trabalho de não as aprender como fizeram o desfavor de as tentar destruir, retirando-lhes a alma, desumanizando os frutos dos troncos, chamamos Áfrika.
Em 2002, a OUA foi substituída pela União Africana mas a celebração da data manteve-se. Este dia recorda a luta pela independência do continente africano. Simboliza o desejo de um continente mais unido, organizado, desenvolvido e livre. Eu celebro África diariamente. Nas minhas criações. Porque não só sou de lá como sou o conjunto de todas as minhas linhagens, tribos e histórias antepassadas.
Sou filha da Inteligência Ancestral. Ou talvez da Inteligência Autêntica. O meu ADN. Psiuu…e teu também!
A origem do mal ante-posfácio
Há uma cena de um crime. Sabemos os locais onde colocar as fitas. Não sinto nenhum ódio contra o meu irmão, o dos troncos que fizeram mal ao útero sagrado da nossa mãe. No entanto quero que reconheça o que aconteceu (o que os seus antepassados fizeram acontecer e calaram).
Que veja os crimes cometidos – de fratricídio, matricídio e familicídio como são – como crimes! Que o corpo enterrado seja exumado e se percebam as causas da morte. Que seja lido o auto da autópsia do crime em praça- pública. Quero que reconheça os traumas deixados e que perduram. Não faz mais sentido continuar a furtar-se à conversa entre ramos. Que perceba as consequências – as de ter deixado os campos minados, as almas sujas e vendidas, que ainda hoje faz de tudo para as sujar sem as deixar limpar-se.
Uns irmãos estenderam a mão suja, não para elevar mas para enterrar. Continuam a fazê-lo. Quero que entenda que não há cura sem estender de novo a mão. Desta vez, uma mão limpa. Como numa relação com complicações, sentam-se as partes para se ouvir, consertar, remediar, curar, apertar as mãos. Respirar. Encontrar a paz, mesmo que imperfeita. Por esta ser vital para oxigenar a vida da Humanidade.
Posfaciando, fica o meu poema a ela, a esta minha mãe – o meu chão, coberto pelo mesmo céu que cobre todos os ramos da mesma árvore.
Ao ritmo de um tambor africano // bate o meu coração//amor vadio//de te ter entranhada//quando e sempre de longe te estranho//Profunda com as tuas minas de diamantes//ouro e rubis//chão guardador do meu sangue vermelho retinto // dos meus ancestrais//ventre de filhos naturais//e de vasta bastardia//esconderijo do meu umbigo//ao som de um batuque oferecido// feliz e envaidecida rebolas//mostrando os teus abundantes quadris//estendo o olhar por ti//vejo-te quando de improviso// o deserto beija o mar//estendo os braços para te acompanhar//o ritmo//sinto de impulso// o rio a abraçar o mangal//enriqueço por te ter em mim// em silêncio e inspiração// diamante extraído//esculpido em anel solar//preta cor de respeito// de homem escravizado//de mulher misturada com branco//por ele violada//mestiça filha// casa chão//berço//futuro// passado da humanidade//preta cor//raiz da liberdade//alma pintada de mistura multicores//Senhora da Candelária//mãe Ubuntu//sou porque tu és//língua Bantu // minha preta criança// roubada// esventrada pela cobiça//Deixa-me pedir-te- não mais rastejes//não fiques no fundo do poço que teimam em te enterrar//agarra a corda presa nas tuas asas//observa o céu que silenciosamente te observa//e te espera//escapa da prisão//solta-te//sobe//trepa// ouve a voz dos poetas que aconselham//és luz de natureza humana//reaprende a voar// escreve no teu seio//vou voltar//recebe-me no teu coração//minha raiz//seiva//casca//tronco//força motriz//eu recebo o teu abraço de verdade// para no meu peito a saudade se concertar.
As veias abertas de África. Agradeço a quem me lê e ouve. Aproveitando-lhe o dia de celebração. O continente por ser mãe alberga todos, dá abrigo a quem quer que seja. Ela é casa, não é alojamento local temporário. Nem pertence à sociedade do espectáculo. É por natureza um espectáculo. Sagrado.
Os factos duros da sua vida são outros quinhentos. São parte do passado quinhentista que assentou no cimento do presente. Confrontamo-nos diariamente com o mesmo problema de racismo. Não se pode perpetuar, no entando pode, se o passado não for entendido.
Para entendermos quão fundo e grave é o assunto, eu assunto: – graças ao 25 de Abril de 1974, os países africanos cujas populações até 1963 eram consideradas indígenas sob a bota lusa, ganharam liberdade, bem como o colonizador.
Qualquer um já pode dizer o que lhe vai na alma. Mas não devia poder nem devia, sobre o assunto que falamos – o racismo. Porque é um crime que ainda não foi legalmente criminalizado. E no entanto foi largamente permitido, institucionalizado e imposto como sistema. Mais uma vez o desconseguimento e a distorção da interpretação de texto.
Se um deputado ou polícia, ou magistrado ou cidadão comum quiser ofender racialmente, inferiorizando alguém de cor preta, pode fazê-lo sem consequências. Porque esse foi o sistema vigente por quinhentos anos. Entendem ou preciso fazer um pequeno desenho?
Tenho uma intenção – fazer conhecer o lado que foi obrigado a estar calado. Não venho colonizar nem forçar – quem quer que seja – a pensar como eu. Era o que mais faltava. O reverso no entanto já foi feito, não se esqueçam. Nem venho reinventar a História. Demorei muitos anos de estudo para ver o que não me contavam. O que me escondiam para que eu não viesse a saber, nunca. Nos livros. Agora há mais livros, mais estudos, mais revelações. O conhecimento é público, o corpo foi exposto e respira oxigénio.
O passado explica o presente na Europa, nas Américas e também em África. Sobretudo em termos de racismo – sistema estrutural com base na inferioridade de quem produz mais da proteína melanina. Repito o que já disse tantas vezes – o racismo reverso não existe pela simples razão de nunca ter existido uma estrutura montada inferiorizando e desumanizando uma pessoa branca.
Só há reverso se houver igual no lado direito. Não precisamos de literacia. Ou será que precisamos? Estou cá, em auto-proclamada missão de desconstruir e transmitir. Venho colocar o número 9 para ser visto. Até agora só era vista a perspectiva do número 6.
Nunca me mandem calar. Não acontecerá.
Anabela Ferreira
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