Enfrentamos hoje, indiscutivelmente, tempos difíceis. Somos um País com mais de 2 milhões em situação de pobreza, ou seja, mais de 1/5 da população. Dentre estes, cerca de um milhão possui emprego, mas os salários muito baixos não lhes permitem sair da pobreza. Além disso, há um milhão e setecentos mil cidadãos sem médico de família, com uma população cada vez mais envelhecida e a sobreviver com miseráveis pensões de invalidez, de velhice ou de sobrevivência[1].
Sem que praticamente ninguém queira reflectir seriamente sobre estas questões, somos também um País em que, segundo um recente estudo da OCDE, não obstante as estatísticas oficiais da escolaridade, a profusão de telemóveis e as elevadas taxas de acesso à internet e redes sociais, cerca de 40% da população adulta (ou seja, 6,6 milhões de pessoas entre os 15 e os 65 anos) apenas compreende textos simples e domina aritmética básica[2]. Disciplinas essenciais para a formação do espírito, como a História e a Filosofia, são votadas ao desprezo. A língua portuguesa – instrumento fundamental para o desenvolvimento do raciocínio – é condenada a uma degradação crescente, resultado da sua contínua substituição por um linguajar simplista e empobrecido, típico das redes e, tantas vezes, até da própria Comunicação Social. A memória histórica é diariamente apagada e esquecida. Enfim, a capacidade de pensar criticamente e pela própria cabeça é aniquilada, substituída por uma recepção passiva e acrítica de tudo o que, incessantemente, provém dos jogos, dos programas de “diversão” estupidificante e degradante, ou dos feed de notícias das televisões ou das redes sociais.
Ora, tudo isto contribui para uma crescente alienação e insensibilidade perante as grandes questões da nossa vida colectiva, resultando na degradação da Democracia e da Cidadania, num processo que não parece merecer qualquer atenção e menos ainda qualquer reflexão séria por parte da generalidade das forças e dirigentes políticos, mesmos os que se dizem amantes da Democracia ou defensores dos trabalhadores e bem assim dos mais pobres e vulneráveis da sociedade.
Ora, é precisamente neste ambiente de névoa e ausência de consciências críticas e perspectivas que, historicamente, sempre surgem os pretensos Messias e salvadores da pátria, fardados ou não, os quais, aproveitando-se dos protestos populares e clamando contra a “bandalheira” e a “vergonha” em que parte da vida pública se transformou, prometem soluções fáceis, imediatas e milagrosas. Contudo, depois, e (só) quando ascendem ao Poder e dele se apoderam, revelam a sua verdadeira natureza: autocratas e ditadores. E os que neles confiaram – pela imagem de probidade, isenção, autoridade e competência que aqueles souberam ir construindo –, só demasiado tarde se apercebem do logro em que caíram.
A verdade, porém, é que este tipo de acontecimentos históricos – ou seja, ditadores levados ao colo precisamente por aqueles que depois espezinham sem hesitação – é frequentemente preparado por fenómenos aparentemente insignificantes, mas que se vão acumulando, e que, perante a generalizada anestesia de consciências, vão minando progressivamente a Democracia. Vejamos alguns exemplos.
A ilegal manutenção da exigência de marcação prévia nos serviços públicos
Terminado o período da covid-19 e desaparecida a justificação para regimes excepcionais – alguns dos quais, aliás, flagrantemente ilegais e inconstitucionais, como demonstram os 23 Acórdãos do Tribunal Constitucional que declararam diversas dessas medidas contrárias à Constituição – os serviços públicos de atendimento ao público, como as Repartições ou Serviços de Finanças e as Conservatórias, há muito que deveriam ter retomado o atendimento presencial, sem qualquer exigência de marcação prévia dos cidadãos que necessitam de recorrer a esses serviços.
Contudo, e apesar das denúncias de várias entidades[3], inúmeros serviços públicos continuam a manter, de forma tão acintosa quanto ilegal, o sistema de marcação prévia obrigatória, prejudicando gravemente os cidadãos. Alguns, poucos, até protestam, mas, no final, tudo permanece inalterado.
O escandaloso do serviço postal dos CTT
Desde a sua privatização no final de 2013, os CTT têm incumprido, de forma sistemática, e tão arrogante quanto impunemente, os (já de si mais que moderados) indicadores de qualidade definidos para o serviço postal universal, coleccionando uma inadmissível quantidade de atrasos e extravios. Como recentemente denunciou a DECO, já em 2016 os CTT não cumpriam uma parte significativa dos 16 indicadores então em vigor. Em 2019, apenas cumpriram 1 dos 24 então fixados, em 2022 não atingiram nenhum dos 22 fixados e, em 2023 voltaram a cumprir apenas 1. Tudo isto com os cidadãos a pagarem muito caro e a serem servidos de forma cada vez mais deficiente, com cartas a demorarem uma, duas e até mais semanas para serem entregues, inclusive na mesma localidade onde foram expedidas.
Ora, o que fez, entretanto, o Estado – leia-se, o Governo – perante este escandaloso incumprimento do serviço público? Alterou o respectivo regime jurídico, retirando à entidade reguladora, a ANACOM, a capacidade de definir os já referidos indicadores, e atribuindo-a ao Executivo. Este, por Portaria, reduziu ainda mais o já diminuto número de indicadores de qualidade, passando de 8 para 4, e eliminou mesmo o indicador relativo à demora no encaminhamento da correspondência normal em quantidade, produzindo assim uma enorme redução do nível de qualidade exigido aos relapsos prevaricadores CTT, com efeitos a partir de 1 de Janeiro do próximo ano. Também aqui, alguns cidadãos até podem reclamar, mas pagam mais caro, não obstante a contínua degradação da qualidade do serviço, e tudo fica, afinal, na mesma.
Cláusulas contratuais abusivas
Desde 1985, existe um regime jurídico denominado “Cláusulas Contratuais Gerais”[4], que classifica como ilegais certas cláusulas desequilibradas e abusivas, permitindo aos tribunais declarar essa ilegalidade e ordenar a sua eliminação da contratação de “massa” ou de “mera adesão”. Estes são os contratos em que a vontade contratual do cidadão, para aceder ao bem ou ao serviço de que necessita, se limita a aceitar, em bloco, o teor de um texto previamente redigido e apresentado para assinatura pela poderosa contraparte – a empresa prestadora do serviço. É o caso de contratos de seguro, nomeadamente automóvel, de crédito ao consumo ou de actividades bancárias, como depósitos, cartões de débito e de crédito, entre outros.
Ora, as acções judiciais intentadas pelo Ministério Público com o objectivo de que o Tribunal declare nulas cláusulas desse tipo são, normalmente, tão demoradas que, quando a sentença é finalmente proferida, a grande maioria das referidas cláusulas já deixou de vigorar e foi, frequentemente, substituída por outras, as quais, embora formalmente distintas das anteriores, se revelam semelhantes ou até piores.
E o absoluto e desdenhoso desprezo que seguradoras, empresas de crédito ao consumo e, sobretudo, instituições financeiras demonstram pelos direitos dos cidadãos torna-se evidente na forma como reagem a essas decisões judiciais. Por exemplo, tendo o BNP Paribas (financiador da Cetelem, da Sportzone e da Worten, entre outros) sido condenado a publicar a sentença do Tribunal da Comarca de Lisboa que, ao fim de 13 (!?) anos, declarou nulas várias cláusulas de diferentes contratos, designadamente de crédito automóvel, que o dito Banco impunha aos respectivos clientes – entre outras razões, por estarem escritas em letras de tamanho muito reduzido, tornando “a leitura difícil e cansativa por parte dos cidadãos aderentes” –, o que fez a referida instituição financeira? Tratou de, de forma acintosa e até provocatória, publicar a referida sentença numa página de jornal, utilizando letras absolutamente minúsculas e totalmente ilegíveis[5]!?
Senhas e horários do banco público CGD
Todo este desprezo pelos direitos dos cidadãos, aliado à arrogância e à impunidade dos abusadores, atingiu tal ponto que, conforme pública denúncia do STEC (Sindicato dos Trabalhadores das Empresas do Grupo CGD), a Caixa Geral de Depósitos, o Banco público, está agora a implementar e a executar um sistema de número máximo de senhas para o atendimento de clientes e, pior ainda, a imposição de um tempo máximo de atendimento por cliente.
Ou seja, ao mesmo tempo que, em nome do aumento da “produtividade”, vai dispensando trabalhadores e encerrando agências (ou substituindo-as por agências ditas “SMART”, que funcionam com máquinas), a CGD, para “resolver” o problema das grandes filas de espera que, entretanto, se formam nos balcões que ainda mantêm atendimento presencial – e que apenas existem a longas distâncias, como, por exemplo, a que vai de Vila Velha de Ródão a Castelo Branco!?…) – “fecha a torneira” dos atendimentos e obriga à sua máxima aceleração. Esta situação causa evidentes e graves prejuízos aos cidadãos seus clientes, sobretudo aos mais idosos, que recebem as respectivas pensões, subsídios ou complementos através da CGD.
A falsidade das entregas não conseguidas
Por outro lado, todos nós já nos deparámos com a ilegítima e enervante situação de, após adquirir online um determinado produto a uma empresa que garantia a entrega em 24 ou 48 horas, sermos surpreendidos com a informação absolutamente falsa, prestada pela transportadora, de que teria tocado à nossa porta e ninguém teria atendido. Na sequência do avassalador número de queixas contra este tipo de práticas – como se verifica, por exemplo, no Portal da Queixa – veio a público que, frequentemente, o contrato entre a empresa e a transportadora prevê que, caso a encomenda não seja entregue no prazo publicitado, a transportadora será obrigada a pagar uma indemnização, que pode chegar ao valor total da encomenda. Para se eximirem a esta obrigação, quando não conseguem cumprir os prazos de entrega, algumas transportadoras recorrem ao pretexto inverídico de que foi o destinatário quem não atendeu.
Muitos reclamam, todos sabem que isto acontece, mas nenhuma entidade pública adopta quaisquer medidas e, como resultado, os direitos dos consumidores continuam a ser flagrante e impunemente violados.
Os colaboradores digitais
Todavia, a forma mais sofisticada dessa violação, permanente e ostensiva, dos direitos dos cidadãos no âmbito do atendimento é, sem dúvida, aquela que agora se realiza sob a invocação e o argumento das “novas tecnologias”. É o caso da imposição – ilegal, pois não possui qualquer fundamento legal– de que reclamações perante uma entidade pública, como uma Câmara Municipal (por exemplo, a de Lisboa), tenham de ser feitas obrigatoriamente por via digital, ou seja, através de uma plataforma específica. Assim, se os cidadãos munícipes se vêem, por exemplo, confrontados com a absoluta escuridão da rua onde vivem devido à completa e prolongada avaria da iluminação pública, e só podem reportar e protestar contra esta situação pela referida via digital, tal implica não apenas que uma parte muito significativa deles (sobretudo os mais idosos) desistirá de reclamar, mas também que aqueles que o façam nunca encontrarão um interlocutor humano, ou seja, um responsável que dê a cara e se responsabilize pela escandalosa situação e pela sua não resolução.
O mesmo se pode dizer do chamado “atendimento” por colaborador electrónico ou digital, que entidades públicas e privadas (como as operadoras de telecomunicações) vão cada vez mais adoptando. Este sistema transforma a tarefa de conseguir falar com alguém que assuma a responsabilidade de dar uma resposta à situação exposta numa experiência verdadeiramente insuportável. São longos, intermináveis minutos de espera, elementos de identificação e instruções repetidos à exaustão, chamadas que “caem” e, no final, a completa incapacidade de resolver o problema de forma eficaz, menos ainda em tempo útil.
Outras práticas de opacidade e de desprezo pelos cidadãos
A tudo isto ainda se poderiam somar inúmeros outros exemplos, como, desde logo, o da completa opacidade que continua a caracterizar muitas das entidades administrativas, desde as autarquias à Administração Central, passando por órgãos e autoridades ditas “independentes” – como a ANAC (Autoridade Nacional da Aviação Civil) ou o CSM (Conselho Superior da Magistratura), bem como Faculdades e Universidades. Essas entidades, contrariando o princípio constitucional da transparência e fora de quaisquer situações de sigilo legalmente tutelado, obrigam continuamente os cidadãos (designadamente os directamente interessados no caso e os verdadeiros jornalistas de investigação) a terem de recorrer à CADA (Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos) ou até aos Tribunais Administrativos, para conseguirem aceder, como é seu direito, às mais básicas informações e documentos. E quando tal direito é enfim, e eventualmente, reconhecido, ainda sofrem o “castigo” de pagar valores exorbitantes por certidões ou até por meras fotocópias[6].
É, pois, também por todas estas formas e pela sua quotidiana consumação, que se vai impondo aos exaustos e insensibilizados cidadãos a lógica fascizante do “é assim porque é assim”, do “não há nada a fazer” e do “se não está satisfeito, vá para outro lado”. Ou seja, trata-se de reduzi-los a súbditos, que têm de aceitar, de forma acrítica e acomodada, tudo o que lhes é imposto, por mais injusto, arbitrário ou até ilegal que seja.
E, até porque nenhum poder é eterno ou invencível e, onde há opressão, há – e tem de haver – resistência, não pode deixar de nos vir à memória a velha e conhecida frase com que Cícero confrontou Catalina em pleno Senado romano: “Até quando abusarás tu da nossa paciência?”[7]
António Garcia Pereira
[1] Respectivamente, e em média, de 450,50€, 564,40€ e 291,50€ mensais.
[2] Uma infeliz e dramática circunstância que coloca Portugal, num estudo que abrangeu 31 países, em 30.º lugar, apenas à frente do Chile.
[3] Como a Associação Cívica ProPública e a Provedora de Justiça.
[4] Aprovado pelo Dec.-Lei n.º 446/85, de 25/10.
[5] Veja-se p. 21 do Jornal de Notícias de 10/12/2024.
[6] Por exemplo, o cidadão que, para accionar um seguro em caso de furto de um seu bem, necessite de uma cópia da participação às autoridades policiais, terá de desembolsar a astronómica quantia de 23€ por cada “laudo” (folha) da respectiva fotocópia!
[7] O cônsul romano Cícero proferiu, no ano 63 a.C., no Senado romano, quatro célebres discursos – as “Catilinárias” (Catilinam Orationes Quattuor) – denunciando a conspiração liderada pelo senador Catilina e começando precisamente com a frase: Quousque tandem abutere, Catilina, patientia nostra?
Mais um excelente artigo do AGP, onde se mostra o abuso de poder. Sim, porque é (no mínimo) disso que se trata. O cidadão está “nu” perante um sistema que apenas se lembra dele quando precisa…
Que representa então a figura de Provedor de Justiça, que é um órgão do Estado previsto na Constituição, eleito pela Assembleia da República e que é totalmente independente no exercício das suas funções. Sendo (ou partindo do princípio) que o Provedor de Justiça é, acima de tudo, um defensor dos Cidadãos contra os abusos praticados pela Administração e por outros poderes públicos, deveria actuar de imediato quando um cidadão é “maltratado” no exercício do seu direito de cidadania.
Certo?