E depois do COVID-19? Que País teremos nós?

Estando ainda bastante longe de termos conseguido, quer a nível do nosso País, quer a nível mundial, controlar e vencer a pandemia do COVID-19, já se começa a falar, agora em nome da “recuperação da economia”, no aligeirar ou até mesmo no levantamento de algumas medidas restritivas actualmente em vigor.

E também aí a natureza de classe (de atenção e protecção sobretudo aos grandes interesses económico-financeiros) das medidas de que se começa a falar se torna evidente. E, “para variar”, o Presidente da República até já ouviu, não os trabalhadores no desemprego ou no lay-off, não os cidadãos já hoje em situação de pobreza extrema, nem os micro-empresários na miséria, mas sim um conjunto de “especialistas” das áreas da Economia e das Finanças…

E antes que essas medidas se imponham de forma generalizada como um facto consumado ou até – e isso após a habitual artilharia argumentativa dos comentadores e ideólogos oficiais – como algo de positivo, creio que se impõe que não abdiquemos do crivo da nossa razão crítica e que analisemos racionalmente as várias questões que devem ser colocadas, independentemente dos incómodos ou até dos ataques mais soezes que essa análise possa suscitar dos modernos e recauchutados adeptos da velha máxima fascista do “comer e calar!”.

Condições de regresso

Assim, importa desde logo ter presentes as condições que a OMS – tão esquecida e por tanto tempo pelas autoridades portuguesas, desde logo quanto ao uso de equipamentos individuais de protecção como as máscaras e também quanto à realização generalizada de testes – entende deverem estar reunidas para que, só então, se possam aligeirar ou mesmo retirar as medidas:

1ª A transmissão do vírus estar controlada.

2ª O sistema de Saúde conseguir detectar, testar, isolar e tratar todos os casos de infecção.

3ª O risco estar minimizado ao máximo em ambientes e sectores como unidades de saúde e lares de idosos.

4ª Haver rigorosas medidas de prevenção nos locais de trabalho e nas escolas.

5ª O risco de importação do vírus estar devidamente controlado e minimizado.

6ª A comunidade estar devida e correctamente informada e, mais do que isso, comprometida e empenhada com a nova situação.

O que tem de ser garantido

Ora, assim sendo, primeira e principal questão que deve ser firme e frontalmente colocada a todos os responsáveis políticos (com o governo e o Presidente da República à cabeça) e aos opinadores e “especialistas” é, pois, esta: Está ou não já assegurado, em que medida e por que forma, o preenchimento destas condições?

Por exemplo, se de facto parece não fazer sentido que uma tabacaria, uma farmácia ou até um supermercado possam actualmente estar abertos, mas uma sapataria, uma retrosaria ou uma loja de ferragens não – uma vez que os cuidados destinados a evitar o contágio adoptados nos primeiros estabelecimentos podem perfeitamente ser adoptados nos segundos (uso de máscaras e de postigo, um cliente de cada vez, respeito pelo distanciamento social) –, como se garantirá, porém e com um mínimo de segurança, o adequado funcionamento de uma escola ou, mais ainda, de uma creche ou infantário?

E se é pensável e até desejável que sectores como os das indústrias mais pesadas (metalurgia e metalomecânica, construção automóvel, construção civil, etc.) possam começar a retomar o seu funcionamento, pode o governo garantir que esse regresso à actividade será feito com respeito absolutamente escrupuloso pelo direito à saúde dos trabalhadores e que estes não irão ser forçados a trabalhar em condições de risco de contágio? Que exactas medidas estão ou serão tomadas para assegurar a efectiva fiscalização dessas situações, para punir exemplarmente os patrões prevaricadores e para colocar os trabalhadores que justamente reclamem a salvo de represálias?

Os desempregados

Mais! Que medidas estão a ser tomadas, ou sequer pensadas, para garantir que, uma vez autorizado o respectivo regresso à actividade, as empresas que, sob o argumento da respectiva suspensão, recorreram entretanto ao lay-off (e os últimos números oficiais apontam 66 mil empresas, abrangendo o já astronómico número de 931 mil trabalhadores), vão mesmo recolocar tais trabalhadores a trabalhar, e não despedi-los e contratar, para os seus lugares, trabalhadores mais precários e mais baratos (seja com contratos a termo com justificações inverídicas, sejam contratados através de empresas de trabalho temporário)?

Desde o início do mês de Abril, e de acordo com um documento elaborado pelo próprio Ministério do Trabalho, 4.098 trabalhadores foram lançados, por dia, no desemprego, sendo que as previsões apontam agora para que o número oficial de desempregados passe do cômputo actual de 353.000 desempregados para, no final do ano, 720.400! Sem contar, é claro, nem com os inúmeros “inactivos” que estão fora das estatísticas oficiais do desemprego nem com todos aqueles (e serão decerto centenas de milhares) que trabalham no sector da chamada “economia informal” ou do “trabalho não declarado” (o qual, recorde-se, representa 25% de todo o PIB), nem ainda com os chamados “trabalhadores independentes”, dos quais pelo menos 145.000, tendo ficado sem trabalho, também já requereram apoios sociais.

No início do mês de Abril tinham-se registado 2% de encerramentos definitivos de empresas e 16% de encerramentos temporários, enquanto 82% se mantinha em funcionamento (parte significativa das quais em regime, total ou parcial, de teletrabalho). Todavia, desses números – que vão decerto ser bastante diferentes e mais dramáticos no final do mês de Abril – já era possível constatar que o maior número de encerramentos ocorria nas empresas mais pequenas, muito em particular nos sectores do alojamento e, sobretudo, da restauração, que dificilmente voltarão a ser como dantes, ao mesmo tempo que a destruição dos concorrentes mais pequenos não deixa de ser muito conveniente para a concentração económica tão desejada pelos grandes grupos.

Parece assim óbvio que no final desta crise se irá verificar uma recomposição de sectores. Não só Portugal não pode ser um país que quase nada exporta e que está muito dependente, em termos de receitas, do turismo, como se espera que se tenha aprendido a lição de que serviços públicos essenciais como a Saúde, a Segurança Social e a Educação, por exemplo, têm é de ser reforçados e não podem mais ser esvaziados, desarticulados e em grande parte aniquilados sob a lógica das medidas neo-liberais (da Escola de Chicago e quejandas) e da entrega da sua parte lucrativa aos grandes grupos económicos privados.

Ora, que medidas estão afinal projectadas para assegurar não só a adequada proteccão de todos os que não consigam arranjar trabalho – protecção essa que têm de ter, em vez de serem estigmatizados sob as ideias de que são uns “piegas” ou uns mandriões e que só não trabalham porque não querem – como também a formação e qualificação profissionais adequadas a permitir e possibilitar esses fluxos de trabalhadores entre sectores?

Os pobres e os idosos 

Por outro lado, é imperioso não esquecer de todo nem os idosos nem os pobres deste País!

Portugal – recorde-se – é o 5º país mais envelhecido do mundo de acordo com os dados da Euromonitor Internacional, sendo que mais de um quarto da sua população (mais exactamente 27,8%) tem já hoje mais de 65 anos. Pelos dados das próprias Nações Unidas, estima-se que a idade média da população portuguesa – que era em 2015 de 44 anos – será de 50,2 anos em 2030!… E segundo o relatório Ageing Europe 2019 (divulgado em Outubro do ano passado pelo Eurostat) o envelhecimento da população vai acelerar mais em Portugal do que nos outros países da União Europeia e, a continuar assim, em 2050 o nosso País será mesmo o mais envelhecido de toda a UE-27. 

Premonitoriamente, um estudo da Universidade de Oxford – publicado em meados de Março deste ano e que, aliás, colocava Portugal como o 3º País mais envelhecido do mundo logo a seguir à Itália – assinalava que a elevada percentagem de pessoas idosas em Portugal, aliada ao elevado grau de proximidade habitacional (levado ao extremo nas residências e lares de idosos) bem como ao forte contacto entre gerações, “pode colocar Portugal em risco se a infecção se propagar na população”, sendo que “conhecer os perigos em Itália deve ser uma oportunidade para Portugal estar mais atento numa fase precoce e proteger esses grupos”. Exactas palavras, infelizmente não escutadas pelos nossos responsáveis, da investigadora universitária e principal autora daquele estudo, Jennifer Dowd.

Por outro lado, Portugal tem ainda nos dias de hoje um número gigantesco de cidadãos que vivem abaixo do limiar da pobreza e da exclusão social – 2,2 milhões de pessoas – sendo certo que também não nos esquecemos de que a aplicação das medidas da Tróica levou a que, em 2014, esse número tivesse mesmo atingido os 2,7 milhões de cidadãos.

Deste modo, havendo mais de 1 milhão de reais desempregados e bem mais de 2,2 milhões de pobres, muitos dos quais velhos e doentes, a protecção e o apoio a estas pessoas não pode deixar de constituir uma prioridade absoluta – muito superior à de disponibilizar fundos milionários aos patrões da CIP e da CCP – sob pena de uma pandemia social tão ou mais grave do que o COVID-19. 

Vigilância sobre os cidadãos

Finalmente, um outro ponto que deve merecer a nossa posição – e oposição!… – crítica é o da sucessiva tentativa de imposição da lógica da aceitação de uma crescente vigilância, inclusive policial, sobre as nossas pessoas, em troca da restrição ou mesmo da perda das nossas liberdades e de uma pretensa sensação de segurança.

Temos, assim, por todo o mundo, e também um pouco entre nós, e sempre sob o argumento das questões de saúde, populações inteiras filmadas, identificadas, fiscalizadas e até geolocalizadas, designadamente através dos smartphones que utilizam.

As polícias têm, como temos visto também em Portugal, aproveitado o estado de emergência fundado nas referidas questões de saúde para aperfeiçoar e “olear” os mecanismos de fiscalização e de repressão, que serão muito úteis em futuras emergências económicas e sociais.

E se nos lembrarmos dos mais que justos protestos que medidas políticas sociais e económicas como as do tempo da Tróica levantaram no nosso país, facilmente compreendemos a utilidade repressiva quer desses mecanismos, quer dos dados pessoais entretanto obtidos. Ademais, convém não esquecer que, aquando do decretamento inicial, pelo Presidente da República, do estado de emergência chegou a estar pensado ficar expressamente consagrada a limitação dos direitos dos cidadãos quer à inviolabilidade das comunicações na vertente relativa ao paradeiro do utente dos serviços de telecomunicações, quer ao controlo de dados pessoais informatizados! E os lobos podem até perder os dentes, mas nunca perdem os intentos…

Eis porque, também neste caso, não basta que o estado de emergência – que já todos sabemos que vai ser sucessivamente prorrogado e, para já e muito significativamente, para além do 1º de Maio – venha a ser aligeirado e, posteriormente, cessado, já que aquilo que se impõe é a integral destruição de todos os dados pessoais entretanto coleccionados por toda a sorte de entidades e autoridades, com as polícias à cabeça, e a punição severa de quem não proceda a tal destruição e/ou os venha futuramente a utilizar de qualquer modo.

O essencial

Pensar e preparar o pós-COVID-19 tem, assim, de significar estas coisas essenciais.

Antes de mais e acima de tudo, (continuar a) salvar vidas, persistindo-se nas regras de restrição do contágio, no adequado equipamento individual de protecção (antes de mais para os que estão sujeitos a maior risco) e no devido equipamento das unidades de saúde, no testar, testar sempre e cada vez mais, e no tratamento atempado e eficaz dos infectados.

Em segundo lugar, proteger e apoiar precisamente os mais vulneráveis (os desempregados, os idosos e os pobres), não deixando ninguém para trás e rejeitando as teses neo-liberais do “darwinismo social”, ao estilo das ideias de que “dos fracos não reza a História” e de que aqueles são grupos sociais que constituem um fardo para o conjunto da sociedade, até convindo que esta se veja deles livre…

Em terceiro lugar, garantir que todo o regresso à actividade normal, em todos os sectores e em todos os serviços, deve ser processado com o respeito pelas condições indicadas pela OMS e em particular com o asseguramento rigoroso de todos os requisitos, individuais e organizacionais, de segurança e saúde.

Por fim, “the last but not the least”, não permitir nunca que, em nome das sempre sacrossantas razões da segurança, se inutilizem e se espezinhem as liberdades e os direitos fundamentais dos cidadãos e ao mesmo tempo exigir, com firmeza, uma informação completa, rigorosa e verdadeira acerca do que se está a passar e a fazer.

António Garcia Pereira

Um comentário a “E depois do COVID-19? Que País teremos nós?”

  1. Antonio Correia diz:

    O meu termo será a solução.

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *