
A história breve de um personagem Shakespeareano, o Renegado
A cena tem a Casa Branca de fundo, na sala oval, um rei chora debaixo da secretária.
Está a empacotar as inutilidades. Os inútensílios que trazem memórias amargamente doces de um poder que se julga não apenas grande, como eterno.
Lamuria-se amargo e vingativo num solilóquio desconectado,
“Só arrastado sairei. Daqui não saio,daqui ninguém me tira, nem arrastado, nem arrasado. Só saio nos braços dos gigantes dos serviços secretos, pela porta dos fundos, porque na porta principal estão os meus inimigos, aqueles que não perceberam como eu sou um grande visionário. Cambada de idiotas! Sairei como aquele tonto do Julian Assange saiu do sítio onde estava exilado. Foi parar à prisão, injustamente. Mas nunca lhe estendi o perdão nem a liberdade. Bem, isso agora não interessa nada. Ele e eu somos um. Eu, sou ele. Acusado injustamente de tudo. Vim limpar o pântano. Dizem que afinal eu sou o pântano. Mas quem é que manda aqui? Eu!
Vou pedir asilo a mim próprio, na minha própria embaixada para ficar aqui protegido. Debaixo da cama do Lincoln se for preciso. Nunca houve ninguém como eu e ninguém me percebe, a não ser os meus seguidores. Sou Assange, Sou Cristo. Como Cristo. Sou Cristo, o Redentor, sou o Messias, vim para salvar e como Cristo sou Renegado. Vou já fazer uma hastag no twitter. Nunca se irão esquecer de mim”….
A cena entra em suspenso…
Um dia ouvi uma entrevista com um actor de teatro Britânico que comparava o despedido Renegado desta história com um personagem Shakespeareano.
Um rei destronado, perdido, louco, narcisista, egocêntrico que apenas sente empatia com os apóstrofos que o seguem sem olhos de ver. A todos os demais deseja que um buraco negro os sugue ou um veneno os desarrume para morrerem longe.
Em tudo isto já é suficientemente maligno e sufocante que gente haja que dá a vida por dirigentes políticos e acredite nas suas palavras como se viessem de inspiração divina.
Mostra a doença (ou deverei dizer pandemia?) de que sofremos todos neste manicómico pouco seguro, em tempo real, a seguir num écran perto de qualquer um de nós.
Sinto-me como se estivesse a assistir a uma peça de teatro shakespeareana mas com participação interactiva.
O veneno é poderoso, os nossos demónios estão todos representados, as forças do mal mostram a verdadeira face, as sombras estão descaradamente desfantasmadas, e nós fantasmas de Hamlet, ludibriados, vencidos, cansados, levantamos a bandeira de satisfação.
O rei foi exposto, levado por uma tempestade, sai em ombros caídos, porque não tem dignidade.
O rei destrambelhado deu tapete vermelho a todas as suas forças sombrias, o racismo, a misoginia, a desempatia, a violência, a supremacia de uma cor, de um género, de uma religião, quando o mundo mudou e não mais tem estas vestes.
Deu palco a peças dentro da peça, as teorias de que um Q, um super secreto espião – que nem Sean Connery quereria desempenhar – que oferecia segredos e dicas de dentro de um estado profundo de demência, sobre prisões de vilões, num pântano do qual o próprio rei fazia parte.
Que fantasia brilhante. Um argumento poderoso, tal como Shakespeare ou Dostoievski escreveriam.
Que há muito mal instalado num sistema podre? Não tenho qualquer dúvida. Que este rei o fosse limpar apresentava-se como a teoria que mais me fez agoniar. No entanto admirando a imaginação do argumentista.
Eu que escrevo histórias, admiro e muito os escritores que quase convencem globalmente que não estão a assistir a uma peça, escrita para ser credível.
Que desde Reagan e Thatcher a economia do mundo o tornou perverso, individualista e insustentável todos vemos, todos sentimos. Está já tudo dito e escrito. Até crianças o sabem. Virar as costas é criminoso. Este rei fê-lo e fez parte do crime. Como anteriores.
Este com a desvantagem de ter retirado dignidade, inteligência e conciliação.
Assistimos seduzidos a personagens dramáticas, ricas, intensas, completas em erros, humanas nesta ópera com alívios cómicos e ridículos ao longo da mesma, que se tornou uma ópera com banda sonora. Os vídeos musicais do tiktok.
Porém, num voto expressivo, o rei foi suprimido. Fim da peça. Catarse aliviante.
Tempo de arejamento, sussurra-se na plateia.
Estragar-vos-ei a surpresa da peça.
No final morremos todos, incluindo os artistas.
Mas um dia ainda viva – e esse dia chegou – verei uma mulher preta, conciliadora, mulher de paz, como vice-presidente. Histórico.
E eu que por sorte vivo para assistir à história representada no palco, preparo-me para ver o clímax, fazer a minha própria catarse e ainda nem sequer escolhi a roupa com que irei assistir.
Comprei bilhete no balcão para ver a Ágora com gente da cor do alívio.
Talvez escolha um vestido vermelho paixão que tenho escondido no armário para uma ocasião especial.
Por homenagem à cor do sangue dos meus antepassados pretos, escravizados por homens e mulheres brancos rosados, cristãos evangélicos, adorados pelo rei deposto, cujos descendentes foram finalmente dizer que a farsa precisava terminar.
Declare-se o arejamento,
Há muito trabalho a fazer, abrir janelas, deixar perfume entrar, limpar o cenário, varrer o chão, mudar os lençóis, lavar a roupa suja, dar caldos aos doentes, cuidar dos vivos, proteger os desgraçados.
Não terminou, foi só um acto na história dos sapiens-sapiens.
Vai continuar ainda.
Cansados que estamos de ver morrer, de ver o ódio vencer, quero que as forças da paz, da dignidade e da reconciliação entrem em palco.
Porque precisamos respirar!
—
Anabela Ferreira
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