O que podem ter em comum uma fábrica de loiça (a “Maiólica”, de Albergaria-a-Velha), uma fábrica de calçado (a “Alberto Sousa”, de Vizela) e um poderoso Grupo turco (“Yilport”, “dono” da actividade portuária em Portugal e de empresas de trabalho portuário, designadamente de Setúbal e Lisboa[1])?
Aparentemente nada, mas, afinal, quase tudo: a prática (até agora impune e cada vez mais arrogante) de manobras golpistas, de fraude à lei ou mesmo de violação absolutamente ostensiva das leis do trabalho e dos direitos mais básicos dos trabalhadores, como forma de os patrões se desfazerem deles gratuitamente e de acumularem lucros ainda maiores, tudo isto ao mesmo tempo que choram “baba e ranho” por supostos prejuízos e pedem a insolvência para justificar o encerramento ou dissolução das empresas.
Insolvências e encerramentos fraudulentos
Só neste mês de Fevereiro – e após o encerramento, em circunstâncias similares, de duas fábricas de calçado (“Catalã” e “Jomica”, ambas de Oliveira de Azeméis e pertencentes aos mesmos proprietários), que lançaram 110 trabalhadores no desemprego – a referida “Maiólica” fez encerrar as suas portas do dia para a noite, sem qualquer aviso prévio, atirando mais de 50 trabalhadores para o desemprego e com o salário de Janeiro já em atraso. Logo depois, a “Alberto Sousa”, já depois de ter encerrado as suas 13 sapatarias em Portugal, fechou, também de repente, a sua fábrica, deixando sem trabalho e sem salário 150 trabalhadores, os quais, no fim da jornada de trabalho de sexta-feira 14/2, apenas receberam uma carta a “dispensá-los” de se apresentarem ao serviço a partir de segunda-feira seguinte.
Em ambos os casos, pouco antes da comunicação do encerramento, as gerências haviam anunciado a sua intenção de pedir a declaração de insolvência das empresas e, logo após a mesma comunicação, remeteram-se ao mais absoluto silêncio, estando incontactáveis desde então. Isto, enquanto os trabalhadores se revezam à porta das fábricas para impedir que máquinas e equipamentos pudessem, pela calada da noite, delas ser retirados pelos respectivos patrões, não apenas para os subtraírem à penhora como garantia dos créditos laborais dos trabalhadores, mas até – tal como já tem acontecido em muitos outros casos – para os irem colocar noutra empresa entretanto constituída pelos mesmos patrões, celebrando através dela novos contratos de trabalho, com antiguidade “0” e salários ainda mais baixos.
Comprovando isto mesmo, eis que os trabalhadores da fábrica de calçado de Vizela – que produzia os sapatos da marca “Eureka” – descobrem que os patrões da “Alberto Sousa” (Alberto Sousa e o seu filho Filipe) tiveram o descaramento de se apresentar na famosa feira de calçado de Milão[2] a lançar e a publicitar uma nova marca de sapatos – a “ESC” – com uma nova designação social – a “Asial – Indústria de Calçado, Lda.” –, mas com sede na mesmíssima morada que a “Alberto Sousa”: Rua da Boca, nº 152, Caldas de Vizela!!
É um autêntico escândalo e uma monumental fraude, uma vez que, sob a capa de uma nova empresa, do que se trata é de lesar e defraudar intencionalmente os direitos dos trabalhadores, credores da primitiva entidade empregadora, praticando-se um crime (público, previsto e punido na lei penal[3]) e executando-se uma manobra susceptível de ser desmantelada através do recurso à figura jurídica da desconsideração da personalidade jurídica (como já aqui referi a propósito do caso do Joe Berardo[4]) para efeitos de efectiva responsabilização dos reais beneficiários da manobra fraudulenta.
Mas, pelos vistos, só a Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT) e o Ministério Público é que não vêm estas evidências…
Mais! Como a consumação do crime de insolvência dolosa (a vulgarmente chamada de falência fraudulenta) pressupõe que a situação de insolvência tenha sido antes judicialmente reconhecida e tal tem de ocorrer num dos milhentos processos especiais de insolvência que correm nos Tribunais do Comércio e aí se arrastam durante anos e anos a fio (nalguns casos por bem mais de uma década), o resultado é que o Ministério Público nada faz enquanto fica à espera da sentença e, quando esta finalmente é proferida, os elementos de prova já desapareceram todos à conta de sempre oportunos extravios, assaltos, incêndios ou inundações…
Estivadores do porto de Lisboa
E o que se passa agora com os estivadores do porto de Lisboa? É um outro verdadeiro “caso de polícia”, só que mais evidente ainda, se possível!
Com efeito, em 2016, foi negociado entre o Sindicato dos Estivadores e da Actividade Logística (SEAL) e as empresas de trabalho portuário de Lisboa um Contrato Colectivo de Trabalho que, supostamente, poria termo aos conflitos laborais já então existentes. Foi então também estabelecido um acordo entre as partes, nos termos do qual a Empresa de Trabalho Portuário PORLIS (dominada pelo Grupo Yilport) transferiria todos os seus trabalhadores para a empresa Associação-Empresa de Trabalho Portuário de Lisboa (A-ETPL) – uma “pool” de estivadores de Lisboa criada por várias empresas de estiva – sendo logo depois extinta, como forma de assim se reduzir a concorrência entre trabalhadores com que os patrões portuários sempre procuraram jogar.
Acontece desde logo que a dita A-ETPL é constituída por 7 sócias, todas empresas de estiva, com 14,3% do capital cada uma. Ora, como 3 dessas sócias (a Liscont – Operadores de Contentores, a Sotagus – Terminal de Santa Apolónia e a Multiterminal – Sociedade de Estiva e de Tráfego) são do Grupo Yilport e este se entendeu desde logo com uma quarta sócia, a TMB – Terminal Multiusos do Beato, todos esses 4 sócios fazem, afinal, uma parceria maioritária (57,2%) na A-ETPL e nela mandam a seu bel prazer.
Ora, o que sucedeu no caso da estiva de Lisboa foi que o Grupo Yilport e a TMB não só não cumpriram o referido acordo de extinção da PORLIS e de transferência de todos os trabalhadores para a A-ETPL, como têm, propositada e sistematicamente, atrasado os seus pagamentos a esta, propiciando deste modo que os respectivos trabalhadores, desde há cerca de 17 meses para cá, não recebam os seus salários pontualmente, mas antes às parcelas (48, para se ser mais exacto), sendo que neste ano de 2020 só receberam 390€ de todo o trabalho realizado em Lisboa!
Entretanto, os trabalhadores portuários que não são da A-ETPL receberam os seus salários atempadamente e em Janeiro último, já com a actual greve à vista, verificou-se mesmo uma antecipação absolutamente inédita no pagamento dos salários desse mês, numa clara e ignóbil manobra para lançar a divisão entre os trabalhadores e para atacar e enfraquecer o SEAL, como sindicato combativo e não “domesticado” que ele sempre se tem mostrado.
Tal postura patronal é ainda particularmente evidente em, pelo menos, mais dois portos (Figueira da Foz e Leixões) onde as perseguições e discriminações contra os trabalhadores sócios do SEAL levam a que, ainda agora, um estivador não filiado no SEAL, com a mesma categoria profissional e as mesmas valências, ganhe na prática o dobro do que ganha um filiado naquele sindicato!
E, de novo, só mesmo a ACT e o Ministério Público é que não vêm isto!…
A violação do acordo
Há, porém, mais ainda! É que, para além de não cumprirem com o Contrato Colectivo de Trabalho de 2016 e com o compromisso da extinção da Porlis, o Grupo Yilport e os seus aliados também não cumpriram com o acordo entretanto celebrado, em 28 de Junho de 2018, no tocante aos aumentos salariais ali previstos.
Na verdade, e como os trabalhadores portuários do porto de Lisboa (ao contrário do que toda a contra-informação patronal e também governamental pretendem fazer crer) não são aumentados há 9 anos, foi então acordado um aumento salarial de 4% para 2018 e um outro de 1,5% para 2019.
Mas o Grupo Yilport decidiu violar também esse mesmo acordo, invocando como pretexto – pasme-se! – a realização, pelos trabalhadores do porto de Lisboa filiados no SEAL, de um dia de greve de solidariedade para com os seus camaradas do Caniçal, na Madeira (onde, a certa altura, todos os associados do SEAL foram objecto de procedimentos disciplinares visando o despedimento) e de Leixões (onde as perseguições directas aos associados do SEAL foram de tal ordem que justificaram, finalmente, a instauração de processos-crime contra alguns dirigentes patronais), para mais quando uma (aliás, justíssima) greve de solidariedade como essa é matéria completamente alheia ao referido acordo de aumentos salariais.
O Grupo Yilport, através da luminária jurídica que o representa (um especialista em despedimentos que se tornou famoso pela sua afirmação de que “os estivadores de Setúbal não são precários porque trabalham todos os dias e ganham ao fim do mês”), julgou ter encontrado a fórmula tão hábil quanto fraudulenta de contornar a lei, a contratação colectiva e os acordos firmados como SEAL.
O plano fraudulento e ilegal
Deste modo, e à maneira do que, há uns oito anos atrás, foi praticado no porto de Aveiro, e do que fazem os já citados cavernícolas patrões do calçado, o que o Grupo Yilport está a procurar fazer é, sob o pretexto das dificuldades financeiras e da insolvência intencionalmente provocadas, extinguir a entidade (a A-ETPL) com quem o Contrato Colectivo foi celebrado, despedir os trabalhadores sem sequer lhes pagar a indemnização de antiguidade, criar uma nova empresa de trabalho portuário (como, aliás, já foi anunciado) e celebrar com uma das associações sindicais “amigas” um novo Contrato Colectivo, com menos direitos e com salários mais baixos (objectivo esse também já claramente assumido numa carta dirigida ao SEAL e assinada pela parte da Direcção da A-ETPL afecta ao Grupo turco), permitindo-lhes assim, de forma aparentemente legal, contratar os trabalhadores que eles queiram, com vínculos precários e vencimentos de miséria.
E, assim, este plano, fraudulento e ilegal, dos patrões da estiva passa por três passos: primeiro, depois de a ter propositadamente colocado numa situação difícil, apresentar a A-ETPL à insolvência, invocando as tais “dificuldades financeiras” que entretanto foram programadas e propositadamente criadas; segundo, constituir formalmente uma nova empresa de trabalho portuário; terceiro, a partir dessa nova empresa, celebrar um novo Contrato Colectivo para Lisboa e tentar celebrar novos contratos individuais com alguns dos trabalhadores despedidos. E, ao mesmo tempo, ir, à laia de “justificação” para tudo isto, invocando completas falsidades como a de que em 2018 Lisboa teria diminuído muito a sua actvidade, quando, por exemplo, foi o porto que mais cresceu (7,1% em 2018) em termos absolutos, tendo mesmo atingido os 458,7 mil TEU[5], segundo os dados da própria Autoridade da Mobilidade e dos Transportes (AMT).
Deste modo, e precisamente com estes pérfidos objectivos, as empresas de estiva de Lisboa, e em especial o Grupo Yilport, têm atrasado sistematicamente os seus pagamentos à empresa de trabalho portuário de que são donas (A-ETPL), ao mesmo tempo que não actualizam – desde há 26 anos a esta parte! – o tarifário da mesma A-ETPL (pelos serviços de trabalho portuário prestados às empresas de estiva, suas sócias e clientes), não obstante os preços cobrados aos clientes das empresas de operação portuária nesse período terem sido sempre, e por várias vezes, actualizados, metendo assim ao bolso, e à custa da sobre-exploração dos trabalhadores portuários, ganhos absolutamente fabulosos.
Desta forma ardilosa, as empresas de estiva enchem-se de lucros, violam descaradamente a lei e a contratação colectiva e põem em risco o ganha pão de 143 trabalhadores portuários no porto de Lisboa. E não, não se trata de exagero, até porque convém não nos esquecermos do despedimento colectivo dos estivadores do porto de Oslo, despedimento esse que foi a primeira medida tomada pelo Grupo Yilport quando lhe foi atribuída a concessão do respectivo terminal de contentores.
Este artifício faz, aliás, lembrar o modus faciendi usado pela TAP para acabar, em 1993, com a Air Atlantis, por ela criada oito anos antes, e ir lá buscar tudo, dos aviões e licenças de voo às instalações e equipamento, excepto os trabalhadores, que as Administrações da TAP e da Air Atlantis fizeram lançar no desemprego sob o pretexto das dificuldades financeiras da sua participada e por meio de um despedimento colectivo com base nelas decretado. Mas a verdade é que esta manobra, sempre contestada pelos trabalhadores despedidos, mas admitida e chancelada quer pelo Governo português, quer pelo Supremo Tribunal de Justiça, acabaria por conduzir a uma estrondosa e humilhante condenação do Estado Português pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem[6].
“Nem um passo atrás!”
Quem pode então lançar, justificadamente, uma só crítica que seja ao facto de os estivadores do porto de Lisboa representados pelo SEAL terem decretado uma greve mais do que legítima pelo cumprimento do Contrato Colectivo de Trabalho e pelo pagamento dos salários em atraso?
E de, após as notícias da decisão de apresentação à insolvência da A-ETPL, terem alargado essa greve por mais três semanas numa luta (também) pelo fim deste tipo de golpadas fraudulentas?
Acresce ainda que a só aparentemente estranha inacção das autoridades portuguesas (do Governo à ACT, passando pelo Ministério Público) perante aquilo que são gritantes e arrogantes atropelos da lei, nada tem que ver com a pretensa defesa de interesses estratégicos do país e só encontra explicação na circunstância de tais autoridades e quem as governa não quererem hostilizar ou sequer incomodar a tríade formada pelo grande capital do Grupo turco Yilport (Global Terminal Operator), acolitado pelo Grupo espanhol Ership e pelo Grupo português ETE, que está a fazer dos portos portugueses um autêntico laboratório de experiências do modelo de trabalho desregulado, precário, aterrorizado e mal pago, a ser “exportado” para toda a Europa e até para o resto do mundo.
Não tenhamos dúvida de que se estas manobras fraudulentas conseguem passar impunes, é esse o modelo de relações de trabalho que os patrões tratarão de procurar impor em todos os restantes sectores de actividade.
E o firme combate contra esse desígnio não é algo que diga apenas respeito aos estivadores, mas, pelo contrário, e até pelo seu carácter “experimental” e emblemático, é algo que importa a todos os trabalhadores portugueses, e até da Europa e do mundo.
Por tudo isto, esta luta dos trabalhadores portuários tem bem mais importância do que, à primeira vista, poderia parecer. E, por isso também, deve voltar a ecoar, e agora com mais força ainda e com maior razão de ser, o célebre grito de luta dos estivadores: “Nem um passo atrás!”…
António Garcia Pereira
[1] Uma gigantesca multinacional, segunda maior operadora europeia, dona de portos e terminais em Turquia, Suécia, Noruega, Espanha, Equador, Perú, Malta e Portugal, onde detém a actividade portuária de Leixões, Aveiro, Figueira da Foz, Lisboa e Setúbal, controlando 4 terminais de contentores, 2 de carga geral e 1 de granéis alimentares.
[2] O célebre evento de calçado de gama alta, theMICAM, que decorre todos os anos em Milão, Itália, durante 4 dias do mês de Fevereiro.
[3] Crime de insolvência dolosa, previsto e punido no artº 227º do Código Penal ou o de frustração de créditos, previsto e punido no artº 227º-A do mesmo Código.
[4] No meu artigo de 16/5/2019 e que pode ser lido aqui: https://noticiasonline.eu/o-insustentavel-peso-da-arrogancia/
[5] O TEU (Twenty Foot Equivalent Unit) é a medida padrão de capacidade de carga de um contentor marítimo normal, de 20 pés de comprimento e um volume de aproximadamente 39 metros cúbicos.
[6] Acórdão de 9/9/15, proferido no Processo C-160/14, Silva e Brito e outros c/Estado português.
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