Foi recente e cirurgicamente dado a conhecer um gigantesco parecer de 80 páginas, elaborado pelo Sindicato dos Magistrados do Ministério Público, sobre o projecto de novo Estatuto do mesmo Ministério Público, recentemente apresentado pelo Governo.
Em tão douto Parecer, os Procuradores opinam no sentido de que no dito projecto se dá um “duro golpe no princípio do paralelismo das magistraturas” (com os juízes) o que, em seu entender, demonstraria a “intenção deliberada de atacar a magistratura do Mº Pº”.
Mas opinam também, para não dizer sobretudo, que nele “não está consagrada uma verdadeira autonomia financeira”, pelo que o dito Ministério Público “continuará a ser uma magistratura de mão estendida que permanentemente terá de mendigar meios para a prossecução das suas funções constitucionais”, augurando mesmo consequentes “problemas para a investigação criminal e o funcionamento dos Tribunais”.
Aliás, já no recente Congresso do dito Sindicato do Ministério Público, que decorreu na Madeira, a sua segunda figura, mais exactamente o Vice-Procurador-Geral da República Adriano Cunha, se arrogara afirmar que “tem sido penoso gerir o Ministério Público” e isto não só devido ao já tão estafado argumento da “falta de meios” como também – pasme-se! – ao “atraso na revisão do estatuto daqueles magistrados”.
Trata-se da repetição, pela undécima vez, de uma cartilha que, já cheirando embora a mofo, é afinal bem elucidativa do que verdadeiramente move estas almas justiceiras. Questão que não é só para juristas, como alguns pretendem, mas interessa e importa a todos os cidadãos e que nos deveria pôr a debater séria e aprofundadamente, sem tabus de qualquer espécie, o que são hoje verdadeiramente em Portugal o Processo Penal, a investigação criminal e o próprio Ministério Público.
E até por isso convirá aqui recordar alguns pontos que põem a nu a completa falácia deste tipo de argumentário.
Antes de mais, a repetidamente referida “falta de meios” – invocada as mais das vezes para assim tentar justificar o não cumprimento dos prazos dos processos que, contudo, para os cidadãos intervenientes processuais e para os seus Advogados são obrigatórios e peremptórios, implicando, caso sejam ultrapassados, a imediata perda do respectivo direito – verifica-se de forma idêntica, ou até muito mais grave, relativamente a outros profissionais que diariamente têm de assegurar a defesa dos direitos fundamentais e garantias dos cidadãos (desde os bombeiros, aos médicos e enfermeiros, por exemplo) e que, todavia, se falharem em tal tarefa, aí sim por evidente falta de meios, não se podem nela escudar, como não se têm escudado, para se eximirem às suas responsabilidades.
Depois, importará referenciar também, e ainda que de passagem, que um técnico superior licenciado, por mais qualificado e especializado que seja, no início e mesmo já até no decorrer da sua carreira na Administração Pública, ganha incomparavelmente menos que um simples procurador-adjunto acabado de tomar posse a quem, salvo erro ou omissão, é pago um vencimento de 3.029,29€ acrescido de 620€ de subsídio de compensação, num total de 3.649,29€, sendo que o de um procurador é de 4.936,63€ + 620€ = 5.556,63€.
Por outro lado, a actividade material do Ministério Público é de natureza administrativa e não jurisdicional e a chamada e tão invocada “equiparação das magistraturas” não é um princípio constitucional, muito menos da versão original da Constituição, que fala apenas em “estatuto próprio” e “autonomia, nos termos da lei”, mas antes o fruto de um processo, levado a cabo por meio de sucessivas leis ordinárias, a começar pela 1ª Lei Orgânica do Ministério Público (aprovada pela Lei nº 38/78, de 5 de Julho) e resultado de casamentos vários entre a cúpula do Ministério Público, em especial com Cunha Rodrigues, e sucessivos governos, com particular destaque para os do PS e os seus Ministros da Justiça (primeiro, Almeida Santos e José Santos Pais e mais recentemente Vera Jardim e António Costa).
Este processo foi mesmo ao ponto de a atrás citada Lei Orgânica de 1978 ter, claramente fora dos conceitos e dos quadros constitucionais, atribuído ao Ministério Público não só poderes próprios do Poder Judicial e da função jurisdicional, como os de “fiscalizar a constitucionalidade das leis e regulamentos”, “promover a execução das decisões dos Tribunais” e até – pasme-se! – “velar para que a função jurisdicional se exerça em conformidade com a Constituição e as leis”, e também funções policiais como as de “dirigir a investigação criminal, ainda quando realizada por outras entidades” e de “fiscalizar a Polícia Judiciária”.
Rigorosamente o mesmo se diga da criação dos DIAP’s, isto é, os Departamentos de Investigação e Acção Penal, os quais, acentuando por um lado a natureza policial do Ministério Público (transformando, como é hoje público e notório, alguns dos seus membros numa espécie de inspectores policiescos mas com vestes de magistrados), serviram, por outro lado, para que por regra quem dirigiu o inquérito e proferiu a respectiva decisão final (sobretudo se ela for de acusação, mas também se tiver sido de arquivamento e depois o juiz de instrução tiver pronunciado – acusado, em linguagem mais simples – o arguido) não tenha que ir à audiência pública de julgamento “dar a cara” por essa sua decisão.
Se se quiser ir mais longe e mais fundo – e ter também a coragem de afrontar a habitual e conhecida gritaria do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público de que, ao discutir tais questões, se estará a querer retirar-lhe a sacrossanta “autonomia”, ainda por cima precisamente agora que eles estariam a combater os poderosos e os corruptos… –, tal como resulta, e muito correctamente, do artigo 32º, nº 4 da Constituição da República Portuguesa, toda a actividade material de instrução criminal (mesmo que eufemisticamente denominada de “inquérito”) é da competência de um juiz, pelo que a tal fase de inquérito e os poderes de que nela dispõe o Ministério Público se revelam manifestamente inconstitucionais.
Como o é também a posição de supremacia, inclusive no próprio lugar, na própria cadeira que o acusador público ocupa na sala de audiências, ao lado do juiz e ostensivamente acima dos advogados da defesa ou de acusação, do arguido e do queixoso que eles defendem, bem como dos demais cidadãos intervenientes, sejam eles, por exemplo, testemunhas ou assistentes.
De tudo isto resulta, como bem afirmou o Prof. Diogo Freitas do Amaral num texto – que aqui se cita com a devida vénia – intitulado “O excesso de poderes do Ministério Público em Portugal” publicado na obra colectiva “Justiça em crise ou crise da Justiça”, “uma inaceitável hiper-valorização do Ministério Público – onde os “advogados do Estado” (que deviam especializar-se em actuar nos Tribunais face ao advogados dos cidadãos) conquistam sucessivamente, numa lógica imparável de expansão corporativa, um regime de autonomia face ao Governo, uma condição de magistrados equiparados a juízes, um feixe de funções privativas dos Tribunais, um punhado de funções próprias da Polícia Judiciária e, por último, o controlo desta e a sua subtracção aos poderes directivos do Governo”.
Nem mais!…
E a completa impunidade das sucessivas violações do segredo de Justiça investigadas pelo mesmo Ministério Público é uma amarga anedota, a qual, se não fosse a enorme gravidade do assunto, constituiria motivo para rir até às lágrimas. E só demonstra duas coisas: por um lado, tais violações representam uma totalmente inaceitável batota para procurar impor o facto consumado das condenações antes de se realizarem os julgamentos e se conhecerem os respectivos resultados e, por outro lado, nenhuma investigação conduzida pelo Ministério Público alguma vez desmascarará e acusará uma violação do segredo de Justiça cometida pelo próprio Ministério Público.
E, entretanto, o julgamento da 1ª instância foi assim abusivamente transformado numa espécie de instância de apelo onde um cidadão já julgado, condenado e executado na praça pública das barras mediáticas, procura agora persuadir o Tribunal do erro dessa primeira decisão já plenamente executada.
O Ministério Público deveria também ter que explicar – e a verdade é que de todo não explica – por que exacta razão decreta o segredo de Justiça em processos como o das descargas poluentes no Rio Tejo (exactamente no momento em que só falta conhecer os resultados das análises feitas às descargas da Celtejo), para mais quando, actualmente, a regra geral em vigor passou a ser a de não haver segredo de Justiça.
E, já agora, deveria explicar igualmente por que razão é que em todos os casos em que um cidadão denuncia crimes públicos (como os de abusos policiais, de negócios obscuros como os dos contratos de “swaps” ou de violações de regras de saúde ou de segurança em instalações ou equipamentos públicos) se opõe com unhas e dentes a que o mesmo cidadão se possa constituir como assistente (isto é, como acusação particular) e possa assim fiscalizar mais de perto o modo como o mesmo Ministério Público ali actua ou deixa de actuar, e designadamente possa reagir perante infundadas decisões de arquivamento ou possa contribuir para evitar o termo de processos incómodos através da pretensa “morte natural” da prescrição.
E é afinal sobre estas questões – e não sobre o circo que todos os dias nos querem enfiar pelos olhos e ouvidos adentro – que deveremos, todos, reflectir, debater e decidir.
António Garcia Pereira
[…] aqui renovo a apresentação de algumas reflexões, que já havia feito num artigo intitulado “Procuradores – magistrados ou polícias sem farda?” e publicado em 22/02/2018, ou seja, há mais de cinco anos (que aqui parcialmente reproduzo com […]