QUEM TEM MEDO DA DEMOCRACIA? (por Estátua de Sal*)

oxiA Grécia deu hoje uma lição de democracia à Europa e a todos os  poderosos e  falsos democratas que teimam em impor as suas regras, sem escrutínio nem transparência, nas costas dos povos. Assim aconteceu com a adesão ao Euro na maioria dos países e recentemente com a assinatura do Tratado Orçamental. As elites políticas consideram que os povos não devem ser chamados a pronunciar-se sobre tão abstrusas questões, como sejam a introdução de uma nova moeda ou um tratado que limita os deficits orçamentais e a dívida pública. Contudo, a aplicação de tais instrumentos é usada para justificar os cortes de salários e pensões das populações, a redução nos orçamentos da saúde e da educação, a desarticulação do Estado Social e o aumento do desemprego e a miséria. Ou seja, o povo não pode decidir sobre a aplicação de tais instrumentos mas pode sofrer sem contestação, e sem alternativa, o empobrecimento progressivo que daí decorre.

Quando este referendo foi anunciado, os poderosos sentiram que as políticas de austeridade que tem sido usadas para subjugar os países periféricos, sacando-lhes os recursos humanos e financeiros, as suas empresas e os seus ativos mais valiosos, podiam ser postas em causa através do voto popular.

Se as soluções que a Europa tem servido, qual presente envenenado aos países intervencionados, são assim tão boas e solidárias, como tem sido apregoadas pelos eurocratas e suas poderosas câmaras de eco, porque haveriam de ter receio que o povo fosse consultado a sufraga-las?

Durante uma semana, a Grécia foi ameaçada e chantageada em toda a linha. Bancos fechados, controle de capitais e levantamentos, em paralelo com uma manipulação gigantesca da informação. Era o dilúvio, era o caos, era a fome, era a miséria, se o voto no Não triunfasse. Táticas pérfidas, de máfias encartadas.

Pois bem. O Não triunfou, apesar de todas as ameaças e das falsas sondagens que foram sendo anunciadas que davam sempre um empate técnico. Existindo uma diferença de, à volta de 23%, de diferença entre o sim e o não, nunca poderiam as sondagens revelar um empate técnico, a não ser com o objetivo de manipular a opinião pública e influenciar desse modo o resultado do referendo. As ameaças vieram de Merkel, de Juncker, do falsário de teses Dijsselbloem, e pasme-se mesmo, de Martin Schulz, esse lobo socialista com pele de cordeiro, tão amigo da Grécia que era, e que agora diz que a vitória do não obriga à introdução de uma nova moeda.

Aqui chegados, quais os cenários que se podem prefigurar nos desenvolvimentos da situação? Vejamos os dados do problema.

  1. A Grécia tem uma situação de disfunção social gravíssima, desemprego na casa dos milhões, queda de um quarto do PIB desde o início do programa de ajustamento, uma dívida de 180% do PIB.
  2. Tal cenário foi consequência das receitas económicas que foram impostas ao país durante os dois resgates, e que agora se pretendiam reforçar com a realização do acordo, proposto pelos credores sob a forma de ultimato, e que foi largamente recusado pelo povo grego.
  3. Mas a Grécia não tem moeda própria, é membro de pleno direito da zona euro e o funcionamento de uma economia monetária não pode ocorrer sem que os bancos sejam quotidianamente alimentados por notas e moedas para fazerem face à manutenção dos seus níveis de reservas. Acresce que as exigências de reservas, por parte do sistema bancário, aumentam exponencialmente nos momentos de crise económica e de incerteza, como é o momento atual. Logo, a Grécia precisa, de imediato, de liquidez para que possa reabrir os seus bancos e normalizar o funcionamento da economia. O BCE, de acordo com as suas próprias regras, dificilmente poderá negar aos bancos gregos esse financiamento de curto prazo. Note-se que, tais financiamentos, não são empréstimos ao país, mas sim apenas decorrem do cumprimento das obrigações de prestamista em última instância do BCE, plasmadas nos seus próprios estatutos.
  4. Quanto à Europa, o novelo em que se colocou é quase inenarrável. Recusa-se a discutir cenários de reestruturação da dívida grega e de implementação de políticas macroeconómicas que permitam à Grécia crescer e pagar o que deve. Tal atitude é tanto mais suspeita quanto a posição racional de um credor é receber aquilo que lhe é devido e só pode receber se o credor puder sobreviver. Neste aspeto, o FMI, seguindo as imposições de Obama, teve que vir a terreiro revelar um estudo que fundamenta, preto no branco, que a dívida grega é impagável, que a reestruturação é imperativa, e os credores oficiais (leia-se as instituições europeias), devem, desde já, preparar-se para aceitar perdas com o processo.
  5. Recusa-se a levar em conta a crise humanitária que assola a Grécia de lés-a-lés, os milhões de pobres, os milhares de desempregados sem subsídios de desemprego e sem acesso a cuidados de saúde.
  6. Recusa-se a assumir os falhanços dos programas de ajustamento que impôs à Grécia e que só pioraram a situação que, supostamente, pretendiam mitigar, e as alternativas que continua a propor são, pasme-se, o incremento dos ditos programas.Assim sendo, que soluções podem ser encontradas?
  1. A primeira hipótese decorreria da existência de uma Europa que funcionasse de acordo com os princípios que subjazeram à criação da Europa e aos Tratados da União, seria a Europa mudar a sua forma de ajudar os países em dificuldades as quais derivam, no essencial, dos choques assimétricos que decorrem das imperfeições da união económica e monetária e da própria arquitetura do Euro. Isto é, deixar de utilizar o garrote da austeridade para subjugar os países em dificuldades, sugando-lhes os recursos, a favor dos de maior poderio económico.
  2. Porque é uma falácia falar-se de uma ajuda a um país quando se empresta dinheiro a esse país. Ajuda seria, sim, se não se cobrassem juros, ou se o dinheiro emprestado fosse enviado a fundo perdido, e se a maioria desse dinheiro não regressasse de imediato ao bolso das empresas e bancos dos países credores. Até ao momento, nada indica que esta hipótese tenha viabilidade, tendo em conta a agenda europeia e os seus antecedentes recentes. A solidariedade europeia tem sido uma solidariedade de hienas, em que os programas de austeridade promovem transferências colossais de recursos e riqueza da periferia para o centro.
  3. A segunda hipótese é a União Europeia manter-se inflexível nas negociações, persistindo na implementação do acordo que foi recusado pelo povo grego de forma expressiva – eventualmente com variantes de pormenor -, o qual só pode ser recusado por Tsipras, agora com maior legitimidade. Nesse cenário, por razões geoestratégicas, e até para evitar as expectáveis turbulências nos mercados – que a UE teme, mas que recorrentemente minimiza -, a Europa poderá, isso sim, aceitar a negociação de um programa de financiamento de curto-prazo, que permita à Grécia, no entretanto, emitir a sua própria moeda, sair do Euro e manter a sua presença na União Europeia e na NATO. Seria, assim, uma saída controlada, com apoio, tentando evitar-se uma catástrofe social e económica de dimensões dantescas e consequências imprevisíveis.
  4. A terceira hipótese, a mais dramática mas que não deixa de ser plausível, tendo em conta o perfil ditatorial e chantagista dos líderes europeus, é a Europa fechar a porta a qualquer acordo que seja compatível com a vontade democrática do povo grego, promovendo a desarticulação total da economia e da sociedade gregas, para que o regime democrático seja cancelado através de um golpe militar, mais ou menos soft – dependerá da resistência popular que existir –, que coloque no poder um governo de tecnocratas e colaboracionistas que possam continuar, e implementar pela força, as medidas de austeridade que o Povo recusou. Esta solução tem muito mais adeptos do que se possa julgar e será, seguramente, a preferida do impiedoso e sinistro Ministro das Finanças alemão, Schäuble. Para as cúpulas dos eurocratas europeus, para Merkel e seguidores, teria a vantagem de acabar de vez, no imediato, com qualquer veleidade de recusa das políticas de austeridade, em qualquer outro país europeu, pela via eleitoral: uma espécie de vacina para a “syrizite” aguda.

Qualquer dos cenários pode abrir uma caixa de Pandora de consequências imprevisíveis. O último deles, será a prova clara e óbvia de que a Europa do Euro não é compatível com a democracia parlamentar, mesmo com todas as limitações que ela encerra. Será a prova clara e óbvia de que a arquitetura do Euro resultou de um voluntarismo extremado, uma espécie de utopia falhada que assenta numa colaboração, confiança e solidariedade entre estados-membros que manifestamente não existe. Enquanto a União Europeia não passou de uma zona de comércio livre e existiram ganhos recíprocos nas trocas entre os países, não existiram dissensões de monta na arquitetura europeia.

A criação do Euro, sem harmonização fiscal, sem orçamento comum, sem união bancária, sem um Banco Central que funcione como prestamista em última instância para os Estados, a não ser através da mediação da banca privada, (como se a banca privada fosse mais credível e confiável que os Estados, quando os estados são sempre chamados a salvá-la quando esta entra em colapso), é um absurdo económico que só pode conduzir ao desastre.

Mas, mais grave que cometer erros, é não os reconhecer e persistir em continuá-los. É neste quadro que a União Europeia continua a querer movimentar-se, contra tudo, contra todos, contra a sua própria História, contra a sua própria génese, contra os seus próprios fundamentos originais, contra os seus próprios povos.

(*) Estátua de Sal é pseudónimo dum professor universitário devidamente reconhecido pelo Noticias Online

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *