Ryanair – é Portugal uma República das Bananas?

Fartos de verem os seus direitos laborais mais básicos – como a garantia da remuneração mínima e os direitos de parentalidade – serem sistematicamente violados e de serem alvo de processos disciplinares pelos mais inacreditáveis pretextos (desde faltas por doença devidamente comprovadas ao – pasme-se! – não cumprimento dos objectivos de vendas a bordo), os tripulantes de cabine da companhia aérea irlandesa Ryanair decidiram entrar em greve.

Trata-se do exercício de um direito fundamental dos cidadãos trabalhadores, consagrado no artº 57º, nº 1 da Constituição da República Portuguesa e que, não precisando ser social ou juridicamente justificado, se mostra assim cheio de fundamento e razão de ser face àquelas práticas patronais.

E o que faz a dita empresa que tem, aliás, beneficiado de condições especiais como a de taxas aeroportuárias mais baixas que outras companhias como a TAP? Desata a cometer, de forma tão ostensiva quanto arrogante, e até agora impune, ainda mais ilegalidades!

Primeiro começa por, através do seu responsável pelos Recursos Humanos Eddie Wilson, ameaçar os tripulantes de que “se estas greves desnecessárias avançarem, irão perder salário e prejudicar o bom nome dos tripulantes de cabine da Ryanair junto dos seus clientes”, culminando com o habitual jogo chantagista de que a Companhia terá que “rever o número de aeronaves actualmente baseadas em Portugal”, confessando o mesmo responsável que tais deslocalizações poderão acontecer “quando os aviões puderem ser desviados para bases fora de Portugal e continuar a operar nessas rotas”.

Depois, e perante o patente insucesso dessas ameaças “preventivas” e a realização da greve anunciada, trata, em flagrante e claríssima violação da lei laboral portuguesa (artº 535º do Código do Trabalho), de substituir os trabalhadores em greve.

O desplante e a arrogância são tais que, depois de inicialmente o tentar negar, a Ryanair – que é também a pior empresa do sector de aviação civil em termos de discriminação social, sendo o fosso das remunerações das mulheres relativamente às dos homens, de 71,8% – arrogou-se mesmo reconhecer explicitamente que está a proceder a tal ilegal substituição por “voluntários” e por “tripulações estrangeiras”, operando tal substituição desde logo pelo artifício fraudulento da “reversão de voos” (os quais, em vez de saírem de Portugal e depois aqui regressarem, são transformados em voos com início no estrangeiro, fazendo com que, por exemplo, um voo Lisboa-Dublin/Dublin-Lisboa seja transformado num voo Dublin-Lisboa-Dublin).

Com isto, a Ryanair tratou mesmo de pôr aviões a saírem vazios de Portugal para irem buscar a Madrid, Barcelona e Milão tripulantes que substituíssem os grevistas.

Como todas as ameaças aos grevistas, em vez de diminuir, fizeram aumentar o apoio e a adesão à greve, a Ryanair passou a contactar e a ameaçar directamente tripulantes, designadamente na própria Irlanda e em Espanha, para virem furar a greve dos seus colegas portugueses. Os responsáveis da Ryanair, designadamente do seu Departamento de Recursos Humanos, chegaram – como se pôde ouvir em diversas chamadas telefónicas – ao ponto de arremessar a ameaça do despedimento contra quem se recusasse a voar em folga e/ou contra a lei (isto, quanto voar em folga em situação ilegal pode valer ao tripulante a cassação, pela autoridade aeronáutica respectiva, da sua licença de voo!).

Foram assim repetidamente utilizadas em tais contactos expressões ameaçadoras como estas: “Se se recusa a trabalhar (leia-se, a substituir grevistas) está a quebrar o contrato. Espero que tenha consciência disso”; “O que não pode fazer é uma greve pessoal de apoio a alguém, noutro país. Se essa é a sua decisão, terá de lidar com as suas consequências”; “terá consequências legais muito graves, se recusar”. Ou seja, os tripulantes estrangeiros que vieram substituir os trabalhadores portugueses em greve foram assim gravemente ameaçados e coagidos.

Temos aqui, pois, múltiplos, graves e acintosos atropelos das leis portuguesas, cometidas por uma empresa estrangeira que, segundo denúncia da direcção do SNPVAC – Sindicato Nacional do Pessoal de Voo da Aviação Civil, terá chegado ao ponto de mandar a ACT – Autoridade para as Condições do Trabalho “dar uma volta”, desligando-lhe o telefone na cara quando aquela a contactou, com a afirmação de que era uma empresa irlandesa e não reconhecia qualquer autoridade portuguesa.

Que os tripulantes da Ryanair estão cheios de razão quer para lutarem a fazerem greve, quer para denunciarem as múltiplas violações do regime legal da greve cometidas por aquela Companhia, é um facto indesmentível. Como é possível, na verdade, que, em pleno Século XXI, num país da União Europeia, uma empresa dum outro país da mesma União Europeia não queira respeitar os direitos de parentalidade ou do salário mínimo ou queira punir disciplinarmente os tripulantes que faltam por doença ou que, feitos à força uma espécie de empregados de balcão ou delegados de informação médica, não conseguem atingir os objectivos de vendas de produtos a bordo?

Mas há uma outra questão que não pode também deixar de ser colocada – no meio de todo este autêntico escândalo, por onde param afinal e o que fazem a seu respeito as diversas autoridades portuguesas, muito em particular quando a Ryanair, na véspera do 3º dia de greve, afirma: “Esperamos operar o nosso horário completo, se necessário, com recurso a aeronaves e tripulação de cabine de outras bases fora de Portugal”?

A ACT fez inspecções no primeiro dia de greve e, perante evidências de repetidas e gravíssimas violações cometidas pela Ryanair, depois do segundo dia de greve, ainda declarava “estar a averiguar eventuais irregularidades”. E só no final do terceiro e último dia de greve é que, finalmente, deteve e inquiriu 12 tripulantes alemães que estavam a substituir, ilegalmente, os trabalhadores portugueses em greve. Ora, sendo que cada acto de substituição de grevistas e de coacção ou pressão sobre os trabalhadores consubstancia não só uma contra-ordenação muito grave que, sendo praticada claramente com dolo (sendo intencional) e por uma empresa com volume de negócios igual ou superior a 10 milhões de euros, é punível com uma coima de até 61.200€ por cada infracção, como ainda com a sanção criminal de multa até 120 dias aos respectivos responsáveis directos, porque é que a ACT não levou logo a cabo uma inspecção relativamente a todos e cada um dos voos realizados pela Ryanair nos vários dias de greve? E só “acordou” quando o escândalo das violações da lei e da sua arrogante impunidade já ultrapassara todos os limites. É isto uma Entidade Reguladora?

E o Governo português, perante esta arrogância da ilegalidade repetida, o que fez? Nada! O Ministro das Infraestruturas e dos Transportes Pedro Marques teve mesmo o desplante, quando confrontado com a gravidade das ameaças da Ryanair, de declarar que “não respondia a ameaças”. E o Ministro do Trabalho Vieira da Silva, como, aliás, vem sendo hábito neste tipo de situações, primeiro assobiou para o lado e tentou passar por entre os pingos da chuva e, depois, apenas perante o acumular das evidências das ilegalidades, lá veio dizer que o Governo poderia “mobilizar os instrumentos que a lei dispõe, seja contra-ordenacionais, seja punitivos, se for caso disso”. Se for caso disso? Quando é a própria empresa que declara por escrito no final do segundo dia, que está e continuará a fazer a ilegal substituição os trabalhadores grevistas?! E no terceiro dia impede mesmo a entrada dos inspectores da ACT nas suas instalações.

Já agora, o que fez também o Ministério Público, noutras circunstâncias tão lesto a anunciar a instauração de inquéritos-crime? Tratando-se de casos de emprego de ameaça com um mal importante, como por exemplo o despedimento, seja ele disciplinar ou por alegada extinção do posto de trabalho, para levar os tripulantes a desistirem de exercer um seu direito constitucional e a aceitarem voar em folgas e com desrespeito dos respectivos tempos de repouso, ameaças essas praticadas em território português e (também) contra cidadãos portugueses, por que razão não instaurou já contra os responsáveis da Ryanair o procedimento criminal pelo crime de coacção, previsto e punido pelo artigo 154º do Código Penal, com prisão até 3 anos, sendo que tal procedimento não depende sequer de queixa e a mera tentativa já é criminalmente punível?

E a ANACAutoridade Nacional da Aviação Civil, sendo conhecedora de todos estes factos – e que, além de públicos e notórios, não são sequer desmentidos e alguns até confirmados pela própria Ryanair – e estando, ou podendo estar, em causa o desrespeito por regras fundamentais de segurança (como as relativas aos tempos de voo e aos tempos de descanso e as referentes às funções próprias de tripulante, que não pode ser confundida com as de empregado de comércio) que atitudes e que medidas adoptou?

A resposta a cada uma destas questões é negativa e, uma vez mais, mostra bem como os governantes e responsáveis dum Estado que se diz “de direito democrático” se intimidam e se agacham perante um agressor mais poderoso e de como, face à lei, todos aparentemente são iguais, mas afinal sempre há uns claramente “mais iguais” que outros. Uma empresa privada estrangeira, com um mal disfarçado estilo colonial (que, inclusive, já foi condenada em França por emprego ilícito de pessoal e obstáculos ao exercício da actividade sindical em 200 mil euros de multa e 8,1 milhões de euros de indemnizações), viola intencional, repetida e arrogantemente a lei e a Constituição portuguesas, e todas as entidades nacionais encarregues de fiscalizar o seu cumprimento e de sancionar a sua violação agem como se aquela não fosse uma conduta absolutamente intolerável e as mesmas entidades nada tivessem a ver com o assunto ou, pelo menos, não vissem nele particular gravidade. Infelizmente, bem à maneira de uma autêntica república das bananas.

António Garcia Pereira

3 comentários a “Ryanair – é Portugal uma República das Bananas?”

  1. José Manuel Alegrias diz:

    A Ryanair e todas e qualquer empresa a operar em Portugal só tem é de cumprir escrupulosamente com a legislação laboral ou institucional que é o que acontece em todos os paises.
    Sera que um funcionário irlandês com a mesma categoria ganha o mesmo que um português?
    Então que comecem por aí ambos são cidadãos europeus.

  2. arnaldo Paredes diz:

    >Sera que é a lei portuguesa que se aplica a estes contratos de trabalho?

    • Redacção Noticias Online diz:

      Caro Arnaldo Paredes,
      Neste caso, trata-se de uma empresa a laborar em Portugal que contrata trabalhadores portugueses, os quais têm como base e conexão mais estreita um local em Portugal. Mesmo que se admitisse poderem em tal situação ser validamente celebrados contratos de trabalho no regime do “destacamento em território português”, regulado no artº 6º do Código do Trabalho, ou até fora dele, e em ambos os casos inclusive com qualquer cláusula a declarar aplicável aos ditos contratos o direito laboral irlandês, certo é que, seja por força das regras gerais do direito internacional privado (artº 22º do Código Civil), seja por força do artº 6º, nº 1 da Convenção de Roma de 19/6/80, não será nunca válida uma cláusula que afaste normas imperativas e de ordem pública do ordenamento jurídico da nacionalidade dos trabalhadores.
      E sendo o direito à greve, nos termos do artº 57º da Constituição, um direito fundamental dos cidadãos trabalhadores, de natureza similar aos direitos, liberdades e garantias, com eficácia directa e imediata e vinculando todas as entidades públicas e privadas – ou seja, sendo um direito tutelado por norma de natureza claramente imperativa e de ordem pública -, qualquer cláusula que o viole, restrinja ou inutilize será sempre nula e de nenhum efeito.
      Não é, pois, pela teoria da legislação laboral aplicável que as ilegalidades cometidas pela Ryanair poderão deixar de ser consideradas dolosamente ilícitas. E, já agora, por meio de condutas consistentes não apenas na substituição ilegal de trabalhadores grevistas como também nas ameaças e coacções sobre trabalhadores com vista a levá-los a não aderirem à greve.
      A Ryanair não pode violar o direito à greve dos seus trabalhadores de nacionalidade portuguesa, exactamente pela mesma razão que uma empresa com sede na China ou na Índia não pode pretender contratar trabalhadores portugueses para trabalharem em Portugal em regime análogo ao da escravatura (recusando-lhes, por exemplo, a protecção na parentalidade, os direitos aos tempos de duração máxima do trabalho, às férias e à segurança e saúde no trabalho ou a proibição da discriminação), invocando que os respectivos contratos conteriam uma cláusula que escolhe como lei laboral aplicável a chinesa ou a indiana!…
      Com os melhores cumprimentos,
      António Garcia Pereira

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