SuperNanny ou super degradação?

Eis que, de repente, parece ter estalado alguma polémica com o programa televisivo SuperNanny, um degradante produto de exibição de crianças, das suas alegrias e sobretudo das suas tristezas, malícias e birras, bem como de reacções mais ou menos desesperadas, deprimidas, incompetentes e até gananciosas dos respectivos pais.

Ora, importa reflectir seriamente sobre aquilo de que verdadeiramente aqui se trata e como foi possível chegar-se a este ponto. E desde logo importará ver que, não obstante todas as manobras e tentativas de iludir o essencial da questão, o certo é que vivemos hoje um momento particularmente difícil da nossa sociedade.

Na verdade, o futuro, e sobretudo as perspectivas de luta por um futuro melhor, são quotidianamente feitos desaparecer dos nossos horizontes. Não se analisam nem se debatem, muito menos aprofundadamente, os problemas de raiz que se prendem não apenas com o desenvolvimento do nosso país, como também com a construção de um Portugal melhor e mais justo, onde os direitos fundamentais dos cidadãos, e muito em particular dos cidadãos trabalhadores e dos cidadãos mais pobres e mais fracos, não sejam todos os dias denegados, inviabilizados ou esvaziados de conteúdo.

E mesmo quando, num determinado momento, a denúncia de uma situação mais escandalosa rompe os altíssimos muros do silêncio do “politicamente correcto”, vive-se quando muito a emoção do momento, mas logo se procura dar a ideia de que se trataria apenas de uma situação anómala, sim, mas pontual, de que o sistema até funciona bem e de que não se podem nem devem fazer “generalizações precipitadas e erradas”.

Com esta lógica e este pensamento dominantes, durante dias, meses e anos a fio, nunca se analisaram a sério questões essenciais como, por exemplo, as dos direitos mais básicos dos cidadãos, da Justiça, da Segurança Social ou das polícias. E, mais, procurou sempre apresentar-se quem chamava a atenção para elas e as pretendia discutir a fundo como aqueles que não passariam dos “orgulhosamente sós”, dos “catastrofistas do costume” ou dos “profissionais do mal dizer”. Tudo isto para depois, quando se conhecem casos como os das decisões judiciais mais escabrosamente preconceituosas, das execuções policiais sumárias, das adopções ilegais apadrinhadas ou pelo menos possibilitadas por toda a espécie de instituições públicas, se referir efemeramente o assunto, apenas porque se está a falar nele e até estão na moda umas quantas referências, tão pontuais quanto superficiais…

Não se quer discutir com base em princípios, nem debater como e porquê foi possível chegar a este ponto e, sobretudo, o que é necessário para cortar a direito e inverter a situação no futuro.

A cidadania, na acepção mais plena do termo, foi propositadamente desvalorizada, expropriada e espezinhada e os cidadãos foram e continuam sendo excluídos do debate público dos grandes temas que interessam ao nosso presente e sobretudo ao nosso futuro. E todos os dias se cria e fortalece a ilusão de que a participação democrática dos mesmos cidadãos na vida pública e na acção política é substituível pela “democracia de sofá” e pelo “activismo” nas redes sociais onde, a par de denúncias importantes e de mobilizações relevantes, se desenvolvem incontroladamente as mais variadas modalidades do primarismo, da cobardia e do insulto fácil mais gratuitos.

E assim, e afinal, a velha política imperial romana do “pão e circo” ou a trilogia fascista do “Fátima, Futebol e Fado” não estão tão longínquas quanto parecem e antes surgem e se desenvolvem, devidamente renovadas e recauchutadas.

Programas desportivos de horas a fio a discutir com ar “científico” se aquele deu uma canelada no outro dentro ou fora da grande área, em 5 ou 6 canais televisivos simultaneamente são disso (apenas) um exemplo. E a admissibilidade, como “normal” nas sociedades “modernas”, da negação ou, pior, da auto-negação da cidadania, da identidade própria, da privacidade, ainda por cima muitas vezes em troca de dinheiro, são outro e bem exemplificativo exemplo.

Dentro desta lógica, já cá tínhamos (e importados de outros países, como se isso constituísse algum tipo de argumento…) programas tipo Big Brother e reality shows do mesmo género. E o dito programa SuperNanny surge como constituindo uma espécie de prolongamento “natural” daqueles, mas também agora com enquadramentos e justificações pseudo-científicos, como o da sua natureza pretensamente pedagógica, ou legais, como o de terem sido feitos “contratos” formais com os pais.

Ora, a este propósito, creio ser importante sublinhar 3 pontos essenciais:

Primeiro: as crianças são seres humanos, dotadas de personalidade jurídica e de plena capacidade de gozo de todos os direitos decorrentes da natureza humana, e os pais não são nem seus donos ou proprietários, nem titulares dos direitos dos respectivos filhos.

Segundo: os direitos relativos à personalidade humana, tais como o direito à integridade física e moral, à imagem, à intimidade e à privacidade são irrenunciáveis e, portanto, nem por vontade dos seus próprios titulares, e mesmo quando maiores e dotados de plena capacidade jurídica de exercício desses direitos, podem por eles ser alienados, cedidos ou auto-mutilados.

Terceiro: essa natureza irrenunciável de tais direitos – que proíbe, legal e constitucionalmente, a exposição das crianças e a alienação, quer a título gratuito, quer com contrapartidas em dinheiro, dos ditos direitos de personalidade dos menores, muito em especial do seu direito à reserva da intimidade da vida privada – não cede nunca face a contrato algum ou a “explicação” ou “justificação” alguma, e menos ainda perante a pretensa pedagogia da exibição/espectáculo televisivo dos problemas, dificuldades e atitudes, erradas ou não, de crianças e dos seus pais.

É preciso assim afirmar, com tanta clareza quanta firmeza, que a exposição pública, para mais perante milhões de espectadores, dos sentimentos, das fraquezas, das asneiras e dos castigos de crianças constitui uma inaceitável barbárie, seja do ponto de vista do Direito, seja – antes dele e acima dele – do ponto de vista da Ética.

E, por isso, e já que nem a própria estação televisiva que o emite (é claro…), nem a ERC – Entidade Reguladora para a Comunicação Social, nem qualquer outra entidade se mostra capaz de “cortar a direito” com um problema que nada tem que ver com a liberdade de expressão ou a liberdade de imprensa mas antes com a violação grave, em directo, ao vivo e a cores, de direitos fundamentais de cidadãos particularmente vulneráveis, a mesma Justiça que caucionou “institucionalizações” (que palavra horrível!) e adopções de crianças totalmente à margem da lei, tem aqui a oportunidade de mostrar o que afinal valem verdadeiramente os seus permanentes auto-elogios…

António Garcia Pereira

Um comentário a “SuperNanny ou super degradação?”

  1. J. Augusto Felicio diz:

    Inteiramente de acordo. O controlo da sociedade faz-se pela alienação e levar a reagir e a não pensar para formar bandos de seres indiferentes perante valores que se subvertem para perder ou não deixar construir referencias de vida e da sociedade que pensa, age e exige.

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