Ninguém avança no futuro sem compreender o passado. Ou quando “Ser ou não ser” é uma questão apenas para alguns privilegiados…
Assim discorria Shakespeare no dia que amanhecia nublado, o dia em que William observava pela primeira vez a gigante lua cor-de-rosa por cima da sua cabeça calva. O signo de Touro entrava em quadratura com a constelação de Escorpião tinha-lhe dito o vizinho que observava os céus. Complementava que um dia iria lá acima tocar as estrelas. Quem sabe, a espécie era capaz de tudo. Às vezes faziam muito barulho por nada mas só nas comédias. O eterno drama dos homens é o desrespeito pela ética, a ganância, o jogo de poder até fazer xeque-mate como vingança. Ele encarregar-se-ia de contar os dramas que a natureza destapava. Este era tempo de mudança, a constante do tempo que não se quedava em olhar o passado.
O tempo nada compadecido por si próprio, apenas sabe do seu significado quando avança e se experimenta. O rasto que deixa no passado apenas lhe serve como entendimento sobre si, ruminava Shakespeare apaixonado, pelas suas histórias, que um dia no futuro fariam sentido.
Tomava notas rápidas para o seu novo drama que seria glorificado, endeusado quem sabe compondo a música de alguns orgasmos de uma casta de privilegiados da sua narrativa masturbatória como haveria de se dizer no futuro.
Já tinha todos os seus personagens perfilados: Bispos, Reis, Rainhas, padres, cavalos, armas sofisticadas, torres, pelourinhos, livros sagrados de histórias violentas, escribas acompanhantes, amantes plebeias, virgens, muitos peões e naus que viajariam de umas terras distantes para outras terras ainda mais longínquas, carregando no seu ventre os muitos peões.
No final das lutas pelo poder, das conquistas relatadas, das cabeças decepadas, dos fortes e torres construídos das mutilações e vinganças, envenenar-se-iam uns aos outros, morreriam em cena e voltariam todos para dentro da caixa de lápis de carvão com que escrevia as suas histórias e fim!
Não havia dinheiro para mais. Ninguém lhe pagava, aliás se calhar só depois de morto seria visto. Tinha tempo. Ia escrever uma teoria inspirada em conspirações por si inventadas.
A lua deitava-se no horizonte enquanto Shakespeare sinopsiava os milandos que a trama teria.
Viver-se-ia no período que percorreria a Idade de Trevas até ao Iluminismo no continente Europeu. Inventaria os loucos anos vinte pós uma pandemia devastadora. Um grupo de naus far-se-iam aos mares outrora navegados por outras civilizações.
Da Ilha também sairiam naus afoitas, bem guarnecidas de homens e armas para o que desse e viesse. Uma mão cheia de Corôas, casados uns com os outros, alguns odiando-se entre si, fazendo filhos malucos pela consanguinidade, dividiriam tudo o que fosse encontrado e conquistado.
Os povos do continente e da sua Ilha, pobres de verdade, com Reis que os subjugavam, humilhavam e pilhavam, seriam piores ditadores que em qualquer República que ainda não tinha sido inventada a não ser na longínqua Grécia.
Os reis precisariam de fausto, luxúria e luxo. Os seus povos atrasados, ignorantes e pés-descalços podiam ser usados e descartados, nas fogueiras, nos combates e nos territórios que aparecessem. Seriam colonizados, estava decidido e não se fala mais no assunto.
Seriam efectivamente convincentes, marcariam o tempo com a divisão pela cor-da -pele e diriam que não apenas os seus reinados tinham o toque da obra e da graça de um Santo espírito por ordem divina.
Se melhor pensaram, deram ordens de estudar e começar as epopeias marítimas.
Foi um fartar vilanagem, alcatrão e penas para cima das gentes achadas. Mercadejavam panos e gentes – comprados também a alguns locais que se prestavam à corrupção própria da natureza humana sem distinção de cor – atiravam balázios no cu dos povos descobertos, nos territórios em que aportavam e descobriam ricos, apropriar-se-iam dos territórios para serem explorados e constituiriam assentamentos para as suas gentes ou por aqueles que roubavam vindos das novas possessões.
Era um jogo malicioso. O povo pobre beneficiaria apenas com as migalhas das riquezas chegadas às mãos dos tiranos.
Nos territórios encontrados, os locais espantar-se-iam com a chegada daquela gente diferente que assentava arraiais nas suas terras, com um livro debaixo do sovaco dizendo que aquele era um livro sagrado, uns puritanos, eles indígenas selvagens que nunca tinham pensado no multiculturalismo, na aculturação ou outras conjecturas, menos ainda em divisões pelo tom de pele, sendo os caras-pálidas por si só criaturas estranhas e diferentes,. Nem sequer pensavam que aqueles povos se iriam reproduzir como coelhos um dia e um dia seriam mais que as suas mães e que eles ( locais ) teriam de preservar as suas vidas e os seus lugares, sagrados como o vento, o sol, o búfalo, os deuses da terra e da água, teriam de viver acantonados numa faixazita pequena da sua terra, enquanto estes novos migrantes além de roubar, dominariam as suas terras, os seus continentes, usariam as suas mulheres e filhas, obrigá-los-iam a converter à sua religião, obrigá-los-iam todos a falar a sua língua, nem se dariam ao trabalho de aprender as línguas locais, fariam escravos gentes de outras terras, trá-los-iam para trabalhos forçados,roubados que tinham sido das suas terras, obrigá-los-iam a todos a viver com as suas tradições, tratá-los-iam com desprezo e inferioridade, sem respeito pelas suas tradições e cultura, não se adaptariam às suas regras e leis impondo as suas.
Para que estes não se revoltassem muito dir-lhes-iam que eram todos loucos ignorantes conjecturando teorias da conspiração para as quais não tinham quaisquer evidências.
Estava montado o cenário desta gente diferente que chegaria em barcos a mando de reis, rainhas e bispos, usando peões, cavalos e armas que usurparia o que encontrasse pelo caminho. E, quando chegasse ao fim desse tempo, morreriam e voltariam todos para dentro da mesma caixa.
Ufanou-se William com a sua peça, apressando-se sem mais delongas a prologar os milandos da trama já que nela “Ser ou não Ser” era uma questão apenas para alguns privilegiados.
A grande maioria não era nada, a não ser um achado.
Anabela Ferreira
Deixe um comentário