Violência doméstica – diria o outro “ o drama, o horror”…e é.

A regra da impunidade do crime conta com a vítima a calar o mesmo. Irá ser julgada, humilhada e desacreditada se falar.

Além dos abusos que sofre – o crime de violência seja de que tipo for – quem irá acreditar nela?

É a sua palavra contra a do abusador…não há testemunhas…

No entanto há um crime e este tem de ser punido.

A punição é a regra para vivermos em colectivo como macacos loucos sem nos dizimarmos uns aos outros se dispensássemos consequências às nossas acções. Se ficássemos soltos para cometer todo o tipo de crimes já não existiríamos.

Basta olhar as guerras que travamos, os genocídios que cometemos, as violências que impomos uns aos outros para termos uma pequena ideia da violência que vive em nós. Imaginemo-la solta como um cavalo sem freio…

A verdade é uma – uma vítima de abusos deve ter a possibilidade de ser ouvida e acreditada. Devemos fazer fé na sua palavra. (É outro assunto aqueles que se aproveitam para dar mau nome às verdadeiras vítimas construindo denúncias mentirosas). Para mudar o estado de coisas comecemos por este princípio simples. 

O abutre – predador que comete a violência é mesmo um animal manipulador, com uma violência intrínseca cega. Apenas vê a presa como seu objecto de poder, de controlo, de posse, até a esvair de todo o sangue e de qualquer vislumbre de vida.

A vida da presa é sua, pertence-lhe e tudo fará por (distorcido) “amor” segundo clama. Até que a morte criminosa os separe.

De facto, esse amor só tem por significado e objectivo o arrancar da carne com os dentes, deixando à vista a carcaça da sua presa. Habituado que está a que a presa se habitue com os caninos a prender a jugular, a presa não tem sangue nas veias, corre-lhe outrossim medo – de qualquer represália se fizer um movimento. 

Perdoa, fica quieta, não se queixa. É mais fácil para sossegar o predador.

Qualquer movimento pode ser desmascarado e de novo será levada a um sacrifício cada vez maior. Por isso silencia. Está presa por fios muito frágeis.

Se a presa se atrever a gritar por socorro, sabe que a consequência pode ser uma fatalidade. É por esta razão que o predador ataca com o golpe final quando a presa finalmente foge. Por esta razão, medidas de coação como obrigar a pulseira electrónica e impor distância, uma cerca ou umas grades são fundamentais.

O predador como animal astuto, manipulador e cínico que é, dono de uma desordem de personalidade qualquer como narcisismo, psicopatia ou outra, pode encontrar maneira de escapar por entre as malhas impostas por estas armadilhas até chegar perto da presa. E aplicar-lhe o que entender ser a sua justiça. 

Não se vai sujeitar a perder a sua fonte de energia e poder. Além de precisar da atenção que a vítima lhe proporciona. Precisa aliás de se sentir a controlar toda a situação e se este lhe é retirado, claramente é um perigo ainda maior.

Não se vai sujeitar a que o vejam como o predador que é. Pensa estrategicamente na forma de se tornar a si mesmo na vítima. Negará as ocorrências, indignar-se-à até ao fim, chamará mentiroso e manipulador a quem o acusa, desacreditando e humilhando quem dele se queixou, ou teve a veleidade de o deixar. Os culpados são sempre outros. Ele é um santo. Dentro de um pau oco. 

Pode até chorar se for necessário. Não que estes comportamentos sejam sentidos, é apenas um bom actor no palco cujas luzes incidem sobre si, para um papel que decorou e bem desempenha – o de vítima. Em sua defesa vira “o bico ao prego” como diz o ditado popular. É a sua arte.

Por tudo isso, juntamente com a vergonha a vítima silencia, não se queixa, não se atreve a ser humilhada e transformada em saco de boxe uma e outra vez, por todas e nenhumas razões.

Quais são as justificações para o predador, para chegar a esta violência permanente, como mostra de amor pela presa?

Será um erro na evolução, uma distorção, um distúrbio, um ou vários traumas de infância, ou outras, alimentado pela benevolência e a condescendência da sociedade patriarcal, da justiça, que em tantos casos ainda defende os predadores nas suas coutadas, que os liberta, desacreditando a versão da presa/vítima (que as há nos vários géneros).

Desacreditada, não ouvida, a presa vê-se de novo violentada, preferindo manter-se silenciosa, assim concluímos todos. Perguntamos o mesmo:

-como é que ninguém se apercebe de tais comportamentos por parte do predador, ou percebendo os cala?

Porque o predador é um excelente actor. Em palco com o público é um excelente actor. Um mago. Vende a sua personalidade com mestria, charme, carisma, todo ele é um manto de simpatia. Quando cai o pano, com a vítima é o predador verdadeiro, abominável, manipulador. O abutre que suga a vida.

O mesmo acontece nos casos de assédio sexual. Tantos que já vimos morrer sem chegar a tribunal porque na palavra das vítimas não se acredita.Porque o predador apresentou a vítima como culpada e ela própria predadora. Ou mentirosa, claro. O predador fica livre e à solta para continuar o crime. Temos uma lista de nomes, todos os conhecemos. 

O assunto da violência doméstica, sexual, emocional, psicológica, financeira é um assunto que ainda não foi discutido a sério na sociedade Portuguesa( como tantos outros). É um crime e tem de ser investigado e julgado como tal. 

Eu acredito nas vítimas quando elas finalmente fazem queixa. A menos que haja sérios sinais de mentiras grosseiras. São raros os casos.

Bárbara Guimarães foi um dos casos mais mediáticos. Agora o de Betty Grafstein. Servem o facto de terem nomes públicos para que mais vítimas sem figura pública – mas nunca anónimas – sejam finalmente vistas por todos nós, deixando o anonimato de presas destes crimes.

Vejo todos os sinais dos predadores sendo o maior deles a negação, fazendo-se vítimas de calúnias. Pobres coitados! Ao terem palco dão de si o melhor que são – a actuação. 

Pode ser que se comece a falar muito sobre o assunto. Que a justiça venha a proteger as vítimas – com mais medidas, com mais legislação, com mais casas de acolhimento, com mais penas duras para com os criminosos. 

Que a Polícia seja educada e treinada sobre o assunto, começando por acreditar na palavra das vítimas, logo na primeira queixa com os primeiros indícios. Venha a queixa de vizinhos, de amigos, de estranhos e claro, da vítima do crime.

Só um sistema intrínseca e profundamente ligado entre si poderá proteger estas presas destes predadores.

Por uma razão para mim ainda desconhecida (porque gosto de escrever histórias e vi demasiadas violências acontecer na minha frente) foram muitas as histórias de crimes desta ordem que me vieram parar às mãos, ao longo dos últimos quinze a vinte anos nas minhas viagens pelo mundo. É sobre essas histórias que o meu próximo romance se debruça depois de muitas leituras, estudos e investigação sobre o assunto.

Porque gosto muito de mulheres e sei o quão complexa pode ser a quantidade de camadas com as quais nos vestimos para esconder traumas, violências de todo o tipo, depressões, exclusões, discriminações, só por sermos mulheres.

São histórias muito difíceis de ficar a saber. Mais ainda de escrever. Muito difíceis de ler. Muito, muito difíceis de ouvir da boca das vítimas que desceram ao porão da alma e lá se escondem com impostas correntes.

Porém as histórias são úteis para começarmos a conversar sobre o assunto que é transversal a todas as sociedades, muito ou pouco desenvolvidas, a todas as classes sociais, em todos os credos.

Os predadores estão em todos os lugares, casas, locais de trabalho, latitudes, geografias, famílias. As presas também.

Uma das mulheres que me contou a sua história quando lhe perguntei “não o vai deixar?” respondeu-me: – “nem sequer quero que se saiba, se disser que eu disse, vou negar. Sou eu que vou ter de lidar com a fúria dele. Ninguém me acredita! Talvez, olhe, quem sabe um dia…se ele não morrer primeiro, se eu o deixar, eu sei que ele vai até ao inferno onde eu me esconder. Vai-me procurar para me matar. Não sei se para não me deixar contar a verdade, ou se só para se vingar porque fica sem a sua fonte de energia”.

“Já vi de perto a morte sabe? Uma das vezes que ele me atirou ao chão, bati com a cara, vi um fio de sangue escorrer por entre os azulejos da cozinha. Para me distrair e não pensar em nada, muito menos despertar de novo a sua fúria, fiquei muito quieta olhando o sangue percorrer o caminho por entre as juntas dos azulejos. Imaginei que era um rio. Não sabia onde o rio fosse desaguar, se calhar num rio de sangue maior. Que bonita imagem! Era aquele o meu rio?…Agora o azulejo branco do chão tinha uma linda e fina linha vermelha minha que o atravessava…”

Deixei-a com este peso como solução para a sua vida. A escolha entre a morte nas mãos da raiva e a fúria do predador, que fechando um círculo a pode levar à morte.

A violência doméstica em concreto vem de alguém que ao mesmo tempo que fecha os olhos na mesma cama da vítima para dormir, nela os abre para pensar no crime que vai cometer sobre a pessoa que nele confia de olhos fechados. Um familiar que é um estranho, além de predador. Por isso é preciso expor e denunciar.

Sobretudo acreditar – em todas as vítimas de violência – emocional, doméstica, sexual, física, financeira.  

Anabela Ferreira

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *