É justo que no 50.º aniversário do 25 de Abril se celebre a data e com ela se comemore o derrube do regime fascista e o fim da ditadura de Salazar e Caetano. Mais ainda quando, de forma crescentemente despudorada, se tenta abertamente branquear e até glorificar as miseráveis condições de vida para o Povo, a falta de Liberdade e de Democracia e até as prisões, torturas e assassinatos do Fascismo.
Mas mais importante ainda – sobretudo quando, sob formas mais ou menos subtis (designadamente sob a capa de “comemorar também o 25 de Novembro”), se procura apresentar o PREC (Período Revolucionário Em Curso) dos anos de 1974 e 1975 como o caos e o horror generalizados, a que felizmente se teria seguido, no final de 1975, a “reposição da ordem” –, é saberem-se extrair as devidas lições de tudo quanto se passou. E a primeira dessas lições é, indiscutivelmente, a do papel, incontornável em todos os processos históricos, da resistência e da desobediência contra tudo o que é injusto e ilegítimo:
A resistência heróica e tenaz do Povo Português e de muitos dos seus filhos contra a guerra colonial, contra o regime fascista, contra a PIDE/DGS e contra toda a repressão.
A desobediência a ordens e comandos ilegítimos, como a desobediência de Salgueiro Maia e dos demais militares que saíram dos quartéis na madrugada do 25 de Abril contra a “ordem estabelecida” do governo colonial-fascista e dos seus oficiais.
A desobediência do alferes Fernando Sottomayor e do cabo apontador José Alves Costa, do tanque M47 das forças fiéis ao governo fascista, que, na manhã de 25 de Abril, na Ribeira das Naus[1], se recusaram a cumprir a ordem do brigadeiro Junqueira dos Reis, que chefiava as forças fiéis ao Governo, para dispararem sobre Salgueiro Maia e a sua coluna militar.
Mas sobretudo a desobediência das massas populares que logo de manhã – incumprindo a indicação dos primeiros comunicados do MFA para ficarem em suas casas e aí aguardarem passivamente o decurso dos acontecimentos – irromperam pelas ruas e forçaram o curso da História, apoiando os militares revoltosos, impedindo o bombardeamento (que chegou a ser pensado pelas forças fiéis ao governo, por helicanhão) do Largo do Carmo, e pressionando a rendição dos governantes refugiados no quartel da GNR. E, não esqueçamos, forçando – à custa do próprio sangue, pois a PIDE nessa tarde metralhou a sangue frio manifestantes de mãos nuas, matando pelo menos 4 pessoas – o cerco e a ocupação da sede da polícia política (a qual não fora objecto de qualquer intervenção militar, estando previsto no próprio Programa do MFA a sua manutenção nas colónias como “Serviço de Informações Militares”) e, de seguida, impondo a libertação de todos, sem excepção, os presos políticos nas cadeias de Caxias e de Peniche, quando a Junta de Salvação Nacional, e em particular o General Spínola, pretendiam libertar apenas alguns).
A segunda das lições é a de que todas as grandes medidas sociais e políticas só puderam ser tomadas, e só o foram efectivamente, quando o Povo tomou o destino nas suas próprias mãos e procurou construir uma sociedade nova em todos os domínios.
Constitui, na verdade, uma autêntica epopeia, tão magnífica quanto empolgante, todo o movimento social e político de organização e de decisão dos cidadãos que se seguiu ao 25 de Abril e que perdurou pelos anos de 1974 e 1975. Com a constituição de comissões de moradores, de trabalhadores, de utilizadores de transportes públicos, de estudantes, e até de soldados, para analisarem e debaterem os problemas que os afectavam e tomarem as decisões mais adequadas aos interesses da comunidade (e não já de pequenas e privilegiadas minorias), tais como a ocupação das casas devolutas pelos moradores pobres, a ocupação dos grandes latifúndios por quem trabalhava a terra, e a consagração e efectivação dos direitos sociais e políticos essenciais (extinção da PIDE/DGS, fim da censura, liberdade de organização e de constituição de associações e partidos políticos, direito de manifestação), e dos mais importantes direitos laborais (direito à organização dos trabalhadores, direito à greve, direito à contratação colectiva).
A terceira das lições é a de que as ilusões reformistas se pagam muito caro, como a de que não era preciso, depois do derrube do governo fascista, modificar e alterar radicalmente a estrutura do aparelho de Estado, bastando mudar os respectivos titulares, dos velhos e ultrapassados “jarretas” do fascismo para novas personagens, de cravo ao peito.
Na verdade, se a derrota daquele amplo, audacioso e também – é preciso dizê-lo – verdadeiramente generoso movimento revolucionário pôde ser imposta, a partir do 25 de Novembro de 1975, pelas forças sociais e políticas mais retrógradas da sociedade portuguesa, tal só foi possível pelo facto de essa vertiginosa torrente revolucionária ter sido desviada para apoiar uma mera reforma do Estado capitalista, cuja estrutura essencial foi assim mantida intacta e pôde, depois e no primeiro momento, fazer ressurgir todo o arsenal repressivo e anti-democrático, que até então ficara fechado na toca, é certo, mas fora assim mantido em larga medida intacto.
É isto que explica, por exemplo, que as primeiras leis laborais do tempo do PREC tivessem sido uma lei da greve fortemente restritiva[2] (e que então quase nunca foi aplicada) e a lei da requisição civil[3] (ainda hoje vigente e utilizada para combater greves.) Ou a vergonhosa complacência com que os esbirros da PIDE (designadamente os assassinos de Humberto Delgado[4] e de Ribeiro Santos[5]) foram afinal tratados e até, mais tarde, beneficiários de pensões vitalícias[6], como sucedeu com os inspectores António Augusto Bernardo e Óscar Cardoso, este último o responsável, também, pelo metralhar e pelo assassinato de manifestantes na rua da sede da Pide, em Lisboa, na tarde de 25 Abril. Ou ainda a ausência de julgamento dos principais responsáveis políticos do regime fascista (desde logo o Presidente do Conselho Marcello Caetano e o Presidente da República Américo Tomás), tranquilamente evacuados para o Brasil[7].
Quando hoje, perante o branqueamento da memória acerca do que era verdadeiramente a vida do Povo Português durante a ditadura fascista (da guerra colonial à asfixiante e permanente opressão a todos os níveis, bem como a situação de profunda e alargada miséria social, de falta de Saúde e de Educação, das barracas e dos pés-descalços) e o cavalgar de medidas políticas, económicas, fiscais, sociais e laborais contra quem vive do seu trabalho e quem é mais vulnerável, se ouve dizer que “isto precisa é de um novo 25 de Abril”, tal significa exactamente a correcta percepção de que é necessário, e cada vez mais, que o Povo português tome de novo o seu destino nas mãos, mas desta vez sem alienar, seja em quem for, a sua capacidade de decisão, e que leve por diante tudo o que tenha de ser feito para construir um país melhor e mais justo.
Meio século depois, é essa a tão hercúlea quanto necessária, mas também empolgante, tarefa que temos pela frente!
António Garcia Pereira
[1] Ver, entre outros, Os Rapazes dos Tanques, de Alfredo Cunha e Adelino Gomes (Porto Editora, 2014).
[2] Dec.-Lei 392/74, de 27/08 (subscrito por Vasco Gonçalves e Costa Martins).
[3] Dec.-Lei 637/74, de 20/11, e que tem a assinatura de Vasco Gonçalves, Almeida Santos, Salgado Zenha, Silva Lopes, Rui Vilar, José Augusto Fernandes, Costa Martins e Maria de Lurdes Pintassilgo.
[4] Os autores do assassinato, em 13/2/1965, foram o inspector Rosa Casaco, o sub-inspector Ernesto Lopes Ramos e os chefes de brigada Agostinho Tienza e Casimiro Monteiro.
[5] Ao agente António Joaquim Gomes da Rocha, que assassinou Ribeiro Santos em 12/10/72, em Económicas (hoje, ISEG), foi facilitada a fuga da Prisão de Alcoentre em Abril de 1975, nunca tendo sido julgado pelo crime que cometeu.
[6] O governo de Cavaco Silva – o mesmo que a recusou a Salgueiro Maia e à sua família – atribuiu, pelo Despacho Conjunto A-22/92/XII, de 27/03/92, uma pensão vitalícia àqueles dois esbirros “tendo em consideração os altos e assinalados serviços restados à Pátria” (sic)!?
[7] Na Argentina, por exemplo, entre 2018 e 2022, os respectivos Tribunais, por brutais crimes como sequestros, desaparecimentos, torturas e assassinatos cometidos pela ditadura entre os anos 70 e 80, julgaram e condenaram a pesadas penas de prisão dezenas de militares, entre os quais os sinistros generais Santiago Omar Riveros, Alfredo Manuel Arrillaga, Luciano Benjamín Menéndez e Reynaldo Bignone.
[…] isso, importa ver – como já assinalei em artigo recente – que, embora há 50 anos se tivesse derrubado um governo e um regime fascistas, e o […]