(Contributo para um eventual 4º Congresso dos Jornalistas Portugueses)
Um dos dogmas que assombra a profissão de jornalista é o facto deste não poder dar uma opinião enquanto informa. E quando se diz opinião, está-se a falar em factos que podem induzir a uma determinada conclusão opinativa. A dita isenção do jornalista deve ser clara e transparente, totalmente à prova de fogo e de água.
Podemos citar um exemplo recente: a cobertura das eleições na Grécia pelo enviado especial da RTP, José Rodrigues dos Santos. Ele denunciou a corrupção grega através do exemplo dos subsídios de cegueira atribuídos a taxistas ou a pessoas em perfeito estado de saúde, mas que recebiam subsídio por serem paralíticas apesar de poderem caminhar todos os dias à frente da casa de um ex-ministro da Defesa, condenado por um acto de corrupção num negócio de submarinos. E ainda o facto da maioria das piscinas em Atenas estarem tapadas de modo a não serem detectadas numa busca por satélite por parte do fisco.
Essas suas informações, baseadas em factos registados oficialmente, caíram mal em certa camada da sociedade portuguesa. E quando o jornalista da RTP frisava insistentemente que o partido que liderava as sondagens nas eleições do início de 2015, Syriza, ser de esquerda radical, esses mesmos críticos viam nisso um rótulo negativo contra a dita formação partidária.
Diziam que o jornalista estava a dar opinião e não fazia o trabalho informativo de forma isenta. Veio depois o provedor do telespectador da RTP defender o trabalho do enviado especial à Grécia, a sustentar que o profissional havia-se documentado e, como tal, informara com base em factos verdadeiros.
Ora, o que José Rodrigues do Santos fez foi jornalismo e, como tal, emitiu muito naturalmente e, inevitavelmente, uma opinião. Jornalismo e opinião são exactamente a mesma coisa, ao contrário do que os sábios da profissão nos querem fazer crer – e parece que isso é algo que se debate muito nas universidades. Mas, não há volta a dar: qualquer acto jornalístico é a escolha de uma opinião. É a opinião pessoal do jornalista que diz que ele deve ou não tratar de um determinado tema.
O jornalista escolhe os factos que lhe parecem ser os mais relevantes, logo tem uma opinião sobre o que deve ser considerado notícia ou não. Há quem procure disfarçar isso e o chame de “critério”, mas é apenas um eufemismo para esconder o que, de verdade, é: uma opinião.
Qualquer notícia que não seja a mera constatação factual – como, por exemplo, o resultado de um jogo de futebol ou os números do euromilhões – é assim passível de ser sujeita a um tratamento de escolha de palavras a serem destacadas e que, na opinião de quem o fez, produz a mensagem que deve ser dada ao público.
Qualquer manchete do Correio da Manhã, Expresso, Diário de Notícias, Jornal de Notícias, Público ou O Diabo, é uma opinião. É a opinião dos directores responsáveis pela escolha do que deve ser o destaque de primeira página. São eles que dizem: “Isto é o que, na nossa opinião, é o mais importante para ser noticiado”. Esta frase deveria ser impressa por debaixo do título de cada jornal. Onde antes se lia que dado jornal fora visado pela comissão de censura, hoje, em igual sinal de honestidade intelectual, deveria ser dito que o jornal não foi visado por qualquer comissão de censura, mas publica aquilo que os seus responsáveis acham, na sua modesta opinião, que é a informação que os leitores devem ler. Nisso, o New York Times é honesto, quando escreve na primeira página que aquelas são as notícias adequadas a serem impressas. Um jornalista dá opinião quando escolhe fazer a reportagem de uma dada conferência de Imprensa e não outra no mesmo dia à mesma hora.
Um jornalista diz qual é a sua opinião quando opta por dar voz a uma determinada pessoa e até mesmo quando escolhe qual deve ser aquela que vai dar voz a uma opinião diferente sobre o mesmo assunto. A melhor forma que o jornalismo encontrou para dizer ao público que pode garantir a tão almejada “isenção” é quando afirma que ouviu duas opiniões diferentes, em regime de perfeito contraditório democrático, livre e transparente. Mas, até mesmo aí fica sempre a faltar a terceira opinião, pois é óbvio que, quando há dois lados diferentes, há sempre duas verdades que, nem sempre, é forçoso que se completem numa única conclusão.
Falta então a opinião do jornalista. Aquela onde ele resume as duas verdades, faz notar as contradições e explica o que se conseguiu comprovar e o que, na sua opinião, ficou por dizer. E, depois, falta ainda conhecer uma quarta opinião, que é a daquele que, sem ter nada que ver com o assunto, teve conhecimento dos pontos de vista em disputa, absorveu depois a conclusão opinativa do jornalista, mas é livre de também formular a sua própria opinião pessoal. O jornalista esforça-se, quer e obriga-se em quase acto anti-natura a ser “isento”.
Alguns, com certa desonestidade intelectual, garantem que conseguem ser isentos do poder político e financeiro. Até anunciam, ufanos, que não cumprem um direito tão legal e de grande expressão cívica e social que é do voto democrático. Olhemos, por exemplo, para o quadro de Goya sobre os fuzilamentos do 3 de Maio de 1808. Qualquer um de nós, se fosse jornalista a assistir no local àquele momento sangrento e tivesse no mesmo ângulo em que Goya escolheu retratar o momento, conseguiria ser isento? Não diria que aquilo que aconteceu foi um massacre brutal, desnecessário sobre gente desarmada, um acto ignóbil por parte das tropa francesas, invasoras de Espanha, sobre uma população que estava revoltada com a tomada de posse da sua terra de origem?
Mas, caso estivesse disposto a conhecer a versão da França, concordariam com a opinião de que fora um acto de guerra perfeitamente justificado por parte das tropas francesas que tiveram de conter a fúria momentânea de uma minoria da população que estava um pouco mais exaltada e que isso degenerou naquele triste resultado, mas que, vistas as circunstâncias, acabara por evitar um escalonamento de violência que poderia degenerar num maior número de baixas civis? Onde está a isenção no meio de uma reportagem sobre um fuzilamento? Vamos defender os mortos ou os carrascos? Quem tem razão no meio de uma guerra?
Obviamente que o jornalismo é dar voz a quem não a tem, estar ao lado dos mais fracos contra os mais fortes, lutar contra as injustiças sociais e denunciar os abusos de poder. E, para tal, só uma sociedade liberal e democrática, livre de censura poderá ajudar a cumprir esse objectivo. Mas, quem diz quem é o fraco e quem é poderoso? Esse é o jornalista com opinião e não aquele que prefere ser “isento”, cumprir um “critério” e não ter uma opinião. Sabemos que é o poder financeiro que determina que um banqueiro deve ser respeitado até ao dia em que cai em desgraça e, finalmente, o jornalista já pode dar a sua opinião sobre aquilo que ele sempre soube, mas nunca teve coragem de o fazer. É também o poder político de, por exemplo, um primeiro-ministro que, enquanto exerceu o cargo tinha a maioria da Comunicação Social de joelhos, feitos carneiros, mas quando ele teve o azar de ser preso, agigantaram-se finalmente e afirmaram ser os leões que nunca foram.
Foi sempre o “critério” dos jornalistas que permitiu que os poderosos nunca fossem desmascarados dentro do tempo útil em que isso poderia trazer reais benefícios à sociedade. Foi sempre a sua opinião camuflada de que aquilo que eles até sabiam, não era pura e simplesmente objecto de notícia. E escudavam-se no tal subterfúgio do “critério jornalístico”.
É, no entanto, no mesmo sítio onde os anjos não têm o sexo, que os jornalistas “isentos” escondem a sua opinião. Há depois aqueles que não hesitam em exibir a sua opinião através de trabalhos jornalísticos baseados em informações credíveis, em fontes fidedignas, com perguntas certeiras como balas em meio de uma guerra, com aquilo que, no fundo, é a sua opinião, é o que ele acha sinceramente que o destinatário da sua informação tem de ficar a saber. E ter a consciência de que aquela é a sua opinião e não o resultado de um critério de uma escolha higiénica.
Para que esse ser humano, o destinatário final da mensagem, possa depois usar a sua inteligência e formar a sua própria opinião pessoal. Ser ele o quarto poder. Numa guerra, física ou psicológica – como aquela que a sociedade portuguesa vive actualmente – será possível fazer jornalismo apenas com o registo estatístico dos números das balas disparadas e a contabilidade de mortos de um lado e outro da contenda? Sim, mas esse é o jornalismo possível quando se abdica de dar opinião.
O jornalista que é da opinião de que se pode ir mais longe, esse é o jornalismo que procura fazer perguntas. E com a consciência de que, até mesmo quando fazemos uma pergunta, estamos já a dar uma opinião, pois as nossas perguntas são aquelas que, na nossa modesta opinião de profissionais, são as que devem ser feitas. São mesmo aquelas e não outras perguntas que também poderiam ser feitas. E devem ser feitas, na nossa opinião, dentro daquela ordem, e não noutra. E se tivermos a perfeita consciência de que fazer jornalismo é dar opinião, então estamos a ser mais honestos como profissionais e a beneficiar o consumidor do nosso trabalho. Este texto é apenas uma opinião pessoal de um jornalista.
Estou, por isso, disposto a conhecer a opinião de outros camaradas.
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