Lugares remotos

Algures, num lugar tão remoto ou tão íntimo, há uma fotografia de mim ou de parte de mim a olhar a vida de uma família, a sua intimidade.

Uma sala em Copenhaga mantém parte do meu corpo (a minha meia-cara, um perfil, e o tronco) numa fotografia em cima da lareira

(a família dinamarquesa passeava o cão e o pato por Lisboa, em Belém; eu seguia atrás deles, fumando um cigarro e olhando um casal que discutia agarrando e puxando a quatro mãos um saco do Pingo Doce. A filha mais nova, Lotte Lerby, deverá ter corrido, feliz, para a frente de todos nós para tirar a fotografia, depois virar-se, ter tempo para segurar na máquina, fixar o foco, ajeitar o ângulo e plim! Ficaram na imagem os pais da miúda, o pato, uma pata do cão, o meu perfil anguloso e o saco do Pingo Doce desfocado do lado direito, quase em baixo, junto à calçada portuguesa desconjuntada porque alguém se terá esquecido de juntar o puzzle quando fechou uma sarjeta. Um dos meus olhos faz parte daquela sala em Copenhaga, é mais um elemento que aquece as noites, que vigia no escuro os monstros que não existem quando todos estão a dormir.)

Puno, Peru. Há um bar, numa rua que segue quase direita até à praça principal, uma rua que vem da zona dos bares, da noite melancólica e de odores a mato e bebidas destiladas. Nesse lugar remoto, de nome agora imprevisível, indigesto e indecifrável, lá estão os meus dentes e a minha barba, a boca e a cara toda num sorriso fixado em 2007 de uma fotografia tirada por Juana, a dona, para que nenhum cliente ficasse abandonado em anonimato. A imagem terá visto luz durante anos numa das paredes principais de El Coche (imaginemos que é El Coche) até muito provavelmente levar sumiço, ser substituída, resgatada para uma gaveta na cave. O sorriso ano a ano a perder latitude e longitude, a esmorecer, a fechar-se. Os dentes cada vez mais escuros, sujos, estragados. Os cabelos caíram no chão, os olhos fecharam-se. Mas ainda ecoa na gaveta um riso com 10 anos a bater para cima e para baixo num tampo fechado à chave. E Carlos Gardel afina uma nota para quando a fotografia sair da cave, subir as escadas, passar pelo bar, entrar na rua, correr pelo mato, voar.

Numa das cinco mil ameias do castelo de Vila Viçosa, se se olhar por cima do tempo e duas lupas angulares, ainda se pode ver esse momento em que o meu Pai me tirou uma fotografia quando eu me empoleirava numa das torres. Ele em baixo, à entrada, entre os dois canhões, apontou a PENTAX e disparou um tiro de luz em direcção ao céu, agarrando a minha cara que espreitava para baixo. O feixe perfurou o meu cabelo de criança e a minha infância toda e a fotografia ficou assim completa num segundo, só à espera de poder ser slide, moldura, pormenor de álbum de família ou memória sem papel. Lá está em cima da camilha da casa da minha avó, junto ao pequeno Jesus que vive sem respirar dentro de uma redoma de vidro e vestes celestiais (sem cuecas). Lá está a minha cara, o meu cabelo, o meu olhar para o meu Pai que reflecte o olhar do meu Pai para a Pentax e da Pentax para mim e de mim para o meu Pai e depois para a Pentax e depois para mim e para o céu. Uma fotografia disparada num segundo e depois para sempre, ou dentro do sempre que são 25 anos, depositada numa moldura em tons dourados. Em cima da camilha da sala. Junto ao Deus-menino. Na misturada de outras fotografias: pais, primos, tios, padrinhos, gente a comer, outros de branco, alguns de negro, a cara de alguém triste a chorar para lado nenhum.

Num lugar remoto, está parte de mim a olhar para os outros. A vigiá-los a vigiar-me. E não sei quem é toda esta gente que aparece de perfil ou a sonhar nos slides de família. E me vigia dentro das gavetas das fotografias.

Ricardo Silveirinha

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