O estado a que isto chegou – a falsidade e o medo como instrumentos do Poder

Todo o país assistiu, na noite da passada terça-feira, ao espectáculo mediático que foi o anúncio, pelo Primeiro-Ministro, das medidas ditas de combate à crise económica e em particular à inflação, a qual, em Agosto, já atingia os 9%, corroendo drasticamente o poder de compra de quem vive do seu salário ou da sua pensão.

O ponto alto desse espectáculo foi o anúncio de que, em Outubro próximo, o governo atribuirá aos titulares de pensões até 2.700€ um valor, extraordinário, equivalente a meia pensão. À primeira vista, até parece uma excelente benesse… Todavia, o que António Costa propositadamente não deixou claro – e nisso todos os que o criticam têm razão – é que, por um lado, a subida dos preços determinou um significativo aumento das receitas fiscais do Estado da ordem dos 2,2 mil milhões de euros e, por outro lado, o governo suspendeu a aplicação da Lei[1] que estabelece a obrigatoriedade da actualização anual das pensões em função da inflação e do aumento do PIB, e que António Costa, no passado dia 20 de Junho , em entrevista à CNN Portugal, jurara que “obviamente” seria aplicada.

Desta forma habilidosa, o aumento decretado para Outubro, combinado com a não aplicação da referida lei, determina não só um aumento (entre 3,5% e 4%) para este ano muito inferior ao da inflação, como também que o aumento já previsto para Janeiro próximo seja de apenas entre 3,53% e 4,43%, isto é, representando uma base de cálculo para as futuras actualizações anuais bem inferior à que resultaria da aplicação da lei, agora suspensa. Em suma, trata-se de “dar” com uma mão num ano, para tirar bem mais com a outra, e durante vários anos seguintes.

Ora, se isto não é faltar aos mais elementares deveres de verdade e de transparência para com os cidadãos, em particular os mais pobres e desfavorecidos, não sei então o que lhe chamar…

Não seguramente por acaso, mesmo no final do mês de Julho, o mesmo governo de António Costa – que é o mesmo que se recusa terminantemente a revogar as leis laborais da Tróica (designadamente as que diminuíram o valor do trabalho extraordinário e reduziram o montante das indemnizações por despedimento à miséria de doze dias de salário-base por cada ano de antiguidade) – tratou de decretar mais uma alteração das leis do trabalho. Assim, anunciando gongórica e demagogicamente que agora as compensações por caducidade dos contratos e prazo iriam passar de 18 para 24 dias por cada ano de duração do vínculo, o Executivo ocultou que, em contrapartida e para contentar os patrões, também aprovou que em todos os casos em que haja caducidade automática (por no contrato a prazo existir uma cláusula de “irrenovalibilidade”), não haverá afinal lugar a qualquer compensação.

Ou seja, ao pior estilo da mais relapsa publicidade enganosa e à sombra da pomposamente chamada “Agenda do Trabalho Digno”, o Executivo de António Costa faz crer que até combate o trabalho precário, aumentando as compensações de antiguidade devidas pela cessação dos contratos a prazo, mas aquilo que permite, e de forma propositadamente dissimulada, é que a partir de agora os patrões aponham nos contratos de trabalho a prazo a dita cláusula a estabelecer desde já que esses mesmos contratos, no final do respectivo prazo, não serão renovados e assim os mesmos patrões não pagarão um cêntimo de indemnização por mandar o trabalhador para o desemprego!?

E ninguém diz nada, com a corajosa excepção de cinco Professores de Direito do Trabalho, cujos nomes aqui orgulhosamente enuncio: João Leal Amado, Teresa Coelho Moreira, Milena Silva Rouxinol, Joana Nunes Vicente e Catarina Gomes Santos, os quais, num artigo do Público de 25 de Julho último, denunciaram esta indignidade.

Mas muito mais ainda! Os mesmos governos, primeiro do PSD e do CDS e depois do PS, com ou sem muletas, que, entre 2009 e 2022, impuseram que a Tabela Remuneratória Única dos Trabalhadores da Administração Pública tivesse tido apenas dois, e absolutamente ridículos, aumentos salariais (0,3% em 2020 e 0,9% em 2022) e que elevaram em 133% os descontos para a ADSE (de 1,5% para 3,5%), são os que permitem que a Caixa Geral de Aposentações (CGA) – a mesma cujas juntas médicas mandam trabalhar funcionários gravemente doentes e cujos serviços levam largos meses ou até anos a atribuir pensões – tenha agora elevado o desplante e a arrogante impunidade da sua postura a um ponto nunca visto. Com efeito, e mediante um inqualificável subterfúgio jurídico inventado para não pagar (ao menos na totalidade) as pensões de sobrevivência devidas às viúvas e viúvos dos funcionários falecidos, a CGA, sem qualquer fundamento legal válido, deduz do valor de tais pensões o montante correspondente aos descontos que supostamente seriam necessários para que a pensão de sobrevivência fosse igual à metade da pensão de reforma. Mesmo que os descontos em causa, a terem de ser feitos, o devessem ter sido há trinta ou mais anos atrás, ou seja, mesmo que a pretensa obrigatoriedade desse pagamento já estivesse há muito prescrita!

Importa ainda salientar que este subterfúgio golpista e fraudulento de quem se habituou a tratar os pensionistas e beneficiários como autênticos escravos até já foi analisado e declarado ilícito em várias sentenças dos Tribunais Administrativos. Mas a CGA, bem sabendo que a maioria dos cidadãos não tem nem conhecimentos, nem tempo, nem dinheiro para travar pelejas judiciais nesse “poço sem fundo” que são os Tribunais Administrativos, mantém aquela prática de sacar ilegitimamente milhares de euros a pobres viúvas e viúvos deste país!…

E, uma vez mais, e com poucas e honrosas excepções, praticamente quase ninguém diz nada e nenhum responsável é chamado à pedra por semelhante desmando…

TAP – uma vez mais a TAP! – desde 2017 que foi calculando de forma errada os vencimentos e subsídios de férias dos seus pilotos, sem nunca ter querido dialogar sobre a matéria. Antes os forçou a terem que ir para os Tribunais, e (só) agora foi finalmente vencida no Supremo Tribunal de Justiça, que a condenou a pagar àqueles tripulantes qualquer coisa como cinquenta milhões de euros, tudo fruto da sua arrogância! 

Depois de ter feito um despedimento colectivo absolutamente cego e selvagem viu-se, entretanto, forçada a contratar mais de quatro centenas de trabalhadores. Mas a verdade é que essa contratação representou apenas 6% dos seus quadros quando a procura de passageiros e as receitas aumentaram este ano cerca de 400%[2]. Mas, sendo aquela contratação manifestamente insuficiente, o que a Administração da Empresa faz, com a cobertura do governo, é ostensivamente não reintegrar ao serviço os trabalhadores cujo despedimento foi suspenso por decisão judicial há muito definitiva, contratar a peso de ouro tripulações e equipamentos, em regime de ACMI (aluguer operacional), a empresas privadas nacionais (HiFly) e estrangeiras (Bulgaria Air) e, pior do que tudo, cativar, pressionar e até tentar comprar tripulantes (com o pagamento de 10% das remunerações de base) para, com afectação e diminuição dos respectivos tempos de repouso, aceitarem voar em folgas e em férias.

E a Autoridade Nacional de Aviação Civil (ANAC), que significativamente não instaurou qualquer procedimento sancionatório contra as transportadoras aéreas, em particular à TAP, pelas sucessivas e grosseiras violações dos direitos dos passageiros aquando dos adiamentos e cancelamentos de voos no passado mês de Julho, também nada vê e nada tem feito relativamente a essa prestação de trabalho com prejuízo e até preterição dos tempos de repouso e aos problemas de segurança de voo daí decorrentes. Assumir responsabilidades e prestar contas por esta gravíssima irresponsabilidade é que nem pensar e assim se garante a impunidade dos desmandos…

Por outro lado, o escândalo do caso da ex-Presidente do Instituto do Emprego e Formação Profissional (IEFP) que recebeu da Segurança Social (tão célere e tão dura a negar ou a cortar subsídios a beneficiários “comuns”) subsídio de desemprego ao mesmo tempo que exercia actividade para uma empresa de que é sócia (MIndset Plus), passava em absoluto incólume até ser publicamente denunciado. Só quando os clamores públicos atingiram um ponto insustentável é que foi, e ainda assim, não demitida, mas sim levada a demitir-se.

No campo da Saúde, quase ninguém – excepto, sublinhe-se, o economista Eugénio Rosa – notou que no orçamento de Estado do ano de 2021 estava previsto um saldo negativo de 89 milhões e este foi afinal de 1.100 milhões, enquanto o orçamento para 2022 já previu à partida um saldo negativo de 1.121 milhões (e será seguramente muito maior). E, entretanto, em Julho, e não obstante todos os discursos e auto-elogios governamentais, havia 1.466.197 cidadãos sem médico de família, enquanto em Dezembro de 2018 (há pouco mais de três anos e meio) esse número era “apenas” de 690.232. E de acordo com o Portal da Vigilância da Mortalidade da Direcção-Geral da Saúde (DGS), no presente ano de 2022 a mortalidade infantil (116 óbitos de bebés até um ano nos primeiros seis meses do ano) é a mais alta desde 2018 (sendo de 3,1 óbitos por cada 1000 nados vivos em 2022 contra 2,4 no ano passado).

E foi preciso que a degradação e destruição do SNS se tornassem absoluta e dramaticamente evidentes, que morressem pessoas e que bombeiros denunciassem transportes de grávidas durante mais de 100 km para que António Costa, sacudindo uma vez mais a água do seu capote, finalmente apontasse a porta da rua à famigerada e até aqui tão elogiada ministra Marta Temido…

Registe-se, por fim, o deplorável e até grotesco espectáculo que têm dado entidades tão relevantes e tão díspares como o Conselho Superior da Magistratura (CSM), a Ordem dos Médicos, a Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC), a Direcção-Geral de Saúde (DGS), o Banco de Portugal ou o Instituto Superior Técnico, quando, relativamente a matérias e documentos que nada têm de reservado, confidencial ou secreto, se vêm obstinadamente recusando a disponibilizar as informações que estão legal e constitucionalmente obrigadas a fornecer e que, designadamente, lhe têm sido sucessivamente requeridas pelo Director do jornal online Página Um, o jornalista Pedro Almeida Vieira (aliás, miseravelmente atacado e perseguido por isso mesmo). 

Estão aí em causa dados e informações sobre as relações entre associações e sociedades médicas e alguns médicos, sobretudo opinion makers, e a poderosa indústria farmacêutica sobre a mortalidade covid-19 e não covid-19, bem como documentos “técnicos” que alegadamente serviram de fundamento a decisões na área da Saúde Pública ou da Justiça (como o “inquérito” do CSM às distribuições manuais dos processos) ou da Supervisão Bancária, ou, enfim, dados das contas dos grupos detentores de órgãos de comunicação social ou referentes, respectivamente, às infracções praticadas por Bancos e à prestação, ou não, de contas por aqueles grupos.

As coisas chegam mesmo ao ponto de o “venerando” CSM – que tanto gosta de se apelidar de impoluto e de paladino da legalidade democrática – invocar para tal postura (o que, aliás, faz por sistema) a pretensa protecção de dados pessoais, e de o Juiz de um dos processos dos Tribunais Administrativos de intimação para a passagem de certidão ter notificado o próprio Conselho para lhe exigir a disponibilização dos ditos e pretensamente secretos documentos (entregues em envelope selado) e depois ter concluído, de forma absolutamente inequívoca, que – tal como, aliás, consta da respectiva sentença – os mesmos, afinal, “não contêm informações susceptíveis de pôr em causa a reserva da  vida privada de pessoas singulares” (sic), evidenciando assim a inveracidade dos argumentos do mesmo CSM.

Eis, pois, e parafraseando o Capitão Salgueiro Maia aquando da madrugada de 25 de Abril de 1974, “o estado a que isto chegou”!…

Uma Administração Pública, da Central à Regional e Local, e umas Autoridades públicas ou Entidades proclamadas de “independentes”, que se habituaram ao “posso, quero e mando”, tratando os cidadãos como seus súbditos, de cultivarem em permanência o obscurantismo e o autoritarismo e de odiarem e denegarem quotidianamente os mais básicos princípios democráticos da transparência e da prestação de contas.

É mesmo um novo tipo de relações sociais e novos instrumentos e métodos de governação que temos de construir, e de baixo até acima, não meros remendos ou reformazinhas parcelares… E é a essa tarefa cívica que temos mesmo de lançar mãos, começando por cortar com as posições daqueles que nos continuamente pregam o conformismo, o individualismo, o “não vale a pena” e o “não há alternativa”.

É que, como diz a frase imortal de Fernando Pessoa, “Tudo vale a pena / Se a alma não é pequena.”

António Garcia Pereira


[1] Lei n.º 53-B/2006, de 29/12.

[2] De 1,3 passageiros para 5,8 milhões e de 400 milhões de euros de receitas para 1,3 milhões.

3 comentários a “O estado a que isto chegou – a falsidade e o medo como instrumentos do Poder”

  1. Aqui é a Karina Da Silva, gostei muito do seu artigo tem
    muito conteúdo de valor, parabéns nota 10.

  2. Antonio vitorino C Lopes do Rego diz:

    Completamente solidário com a sugestão final do G. Pereira

  3. Manuel Maia diz:

    Dr. António Garcia Pereira: Será que algum de nós poderá pôr o António Costa em tribunal, por este em Janeiro mudar a lei da qual eu poderia e deveria ter direito a 9% de aumento na minha reforma? Sabemos que o Sr. Dr. é um dos mais conceituados especialistas em questões de trabalho, só que eu já não trabalho desde os 54 anos, pois estou reformado por incapacidade, apesar de ter trabalhado 42 anos. A minha doença, é uma doença rara ” Seringomielia”. Obrigado,
    Os meus cumprimentos,
    Manuel Maia

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