O projeto europeu acabou? (II)

Mário Jorge Neves (Foto FNAM)

As guerras na Ucrânia e em Gaza vieram agudizar as extremas fragilidades das lideranças da UE, aprofundar as contradições no seu seio e tornar ainda mais escandalosa a vassalagem face aos Estados Unidos. Desde logo, porque depois de tanta exuberância no apoio político, económico e militar à Ucrânia, a posição perante o genocídio do povo palestiniano tem sido de uma chocante cumplicidade com os crimes do governo sionista de Israel.

Com a eleição de Trump para presidente dos Estados Unidos e devido ao seu programa económico e geopolítico, a UE entrou em pânico. Trump exigiu que a UE aumentasse os gastos militares em torno de 5% do PIB para financiar a NATO. Passado pouco tempo, o parlamento holandês votou contra o plano de rearmamento militar do seu país. Naturalmente, que um plano de rearmamento militar implicará, inevitavelmente, cortes nos salários, nas reformas e nas políticas sociais, bem como o aumento do desemprego em várias áreas de atividade.

E isto não constitui sequer motivo de especulação porque o secretário-geral da NATO, Mark Rutte, fez profusas declarações públicas no final do ano passado, afirmando que os cidadãos dos países membros desta aliança político-militar deveriam aceitar fazer sacrifícios como cortes nas pensões, na saúde e nos sistemas de segurança para aumentar as despesas com a defesa.

Como aconteceu em múltiplos conflitos armados, mesmo na história moderna, para justificar uma escalada armamentista tornou-se necessário erigir um inimigo e hipertrofiar qualquer ameaça para permitir desencadear processos de criação de um clima generalizado de medo nas sociedades e de maior permissividade às medidas impopulares.

Atualmente, e com a guerra na Ucrânia, a Rússia é apontada como a grande justificação para este projeto de rearmamento militar a nível europeu. No entanto, muitos especialistas em geopolítica têm vindo a referir que por razões económicas e demográficas a Rússia cometeria um suicídio se tomasse a iniciativa de entrar noutros territórios limítrofes.

É muito mais fácil que se possa assistir no espaço europeu à invasão da Groenlândia pelos Estados Unidos ou a iniciativas militares do regime totalitário da Turquia para expandir a sua influência no sudeste da Europa, sobretudo à custa da Grécia. O contencioso político-militar entre estes dois países teve vários e dramáticos episódios ao longo de vários séculos. 

Erdogan conduz há largo tempo uma política exterior neo-otomana bastante expansionista e agressiva como se viu, aliás, com a invasão de grande parte do território da Síria. A Turquia tem desenvolvido intensos esforços para monopolizar zonas económicas exclusivas no mar Egeu e no Mediterrâneo, particularmente desde o descobrimento de enormes reservas de petróleo e gás natural.

Por outro lado, a Grécia tem vindo a construir instalações militares nas suas ilhas do mar Egeu e a realizar um volume crescente de compras em armamento. O plano de rearmamento militar da UE, irá criar uma economia de guerra. E num contexto destes, a produção e o consumo são organizados pelo Estado.

Este controlo pelo Estado, traduz-se frequentemente em medidas complementares drásticas como o fim da livre circulação de capitais, o racionamento de certos produtos, o controlo dos preços, inclusive a fixação autoritária dos preços e ainda a aplicação de novos impostos excecionais para suportar a indústria de guerra.

A UE, se enveredar pela militarização do continente europeu, afundar-se-á numa maior recessão económica e irá desencadear um amplo descontentamento popular com uma tradução direta no reforço dos movimentos neofascistas. Não foi agora que Ursula von der Leyen veio inventar o plano de rearmamento militar da UE, dado que este processo já foi iniciado, pelo menos, há cinco anos, através da compra crescente de armas aos Estados Unidos.

Quase 2/3 das armas importadas pelos países europeus da NATO nos últimos cinco anos foram fabricadas nos Estados Unidos. As importações de armas por parte dos países europeus aumentaram mais do dobro entre 2020 /2024, em comparação com os cinco anos anteriores. Estes dados estão presentes no recente relatório sobre o comércio bélico publicado pelo Instituto Internacional de Estocolmo de Investigação para a Paz (SIPRI, na sigla em inglês). Este instituto foi fundado na Suécia em 1966 para celebrar os 150 anos de paz ininterrupta no país.

Deste modo, quando assistimos a cimeiras e a amplas reuniões dos órgãos dirigentes da UE e de representantes dos governos nacionais para discutir planos militares, estamos perante meras encenações propagandísticas para amedrontar as opiniões públicas dos países europeus e aumentar a pressão para que aceitem as políticas neoliberais belicistas.

Os dados mostram que, afinal, o rearmamento da UE começou antes da invasão da Ucrânia pela Rússia. A UE, enfrenta grandes desafios económicos com um crescimento muito inferior a países como a China e a India. Para dispor de um exército capaz de enfrentar qualquer quadro de guerra, é necessário dispor de uma forte base industrial e de um sistema de investigação e inovação muito avançados.

O desmantelamento da indústria realizado pelas políticas neoliberais conduziu a UE a uma situação de grande dependência em diversas áreas de atividade.  A militarização da vida pública acabará por colocar em causa a própria democracia e o seu regime de liberdades individuais, desde logo a liberdade de expressão e de manifestação. Se aceitarmos trocar os avanços sociais por armamento, estaremos a liquidar o modelo do Estado Social.

É impossível gastar dinheiro em armas e manter as políticas sociais que garantem o bem-estar das populações europeias. É ridículo pensar que a segurança europeia irá melhorar com a política de militarização, quando na Europa existem mais de 230 bases americanas e um número indeterminado de ogivas nucleares. Nos países da UE existem cada vez mais governos nas mãos da extrema-direita ou com o seu apoio politico e parlamentar.

O futuro da UE implica uma integração europeia capaz de gerir um alargado leque de forças políticas, sociais e culturais, numa concertação que permita atender às necessidades dos cidadãos europeus e encontrar respostas para os importantes desafios aos mais variados níveis, que nos são colocados pelos tempos atuais.

No espaço da UE têm vindo a verificar-se diversos processos de mudança nas estruturas produtivas que irão implicar o desaparecimento do capital e tecnologias obsoletas, o aparecimento de novas qualificações laborais, de novo tipos de emprego que poderão configurar uma nova revolução industrial e tecnológica. Estas reconfigurações produtivas não poderão ser implementadas e geridas com êxito sem se verificar, em simultâneo, o reforço das políticas públicas e de carácter social que reforcem a coesão social.

As ameaças de Trump em debilitar a NATO são meras manobras de chantagem que escondem outros objetivos. Os Estados Unidos não estão, naturalmente, interessados em abandonar a NATO porque continua a ser um instrumento político e militar de grande utilidade para a sua política imperial de hegemonia mundial. Só que, o verdadeiro perigo identificado pelos Estados Unidos é a China e para isso as suas prioridades militares deslocam-se mais para oriente.

Ainda recentemente, o jornal Washington Post referiu que o secretário da defesa americano Pete Hegseth estava a desenvolver medidas de reorientação do exército americano para dar prioridade a tentativas de dissuasão que possam evitar a tomada de Taiwan pela China.

Com a deriva belicista em desenvolvimento, as atuais instâncias da nomenklatura dirigente da UE estão a liquidar o projeto europeu.O projeto europeu está já no cadafalso e só resta saber quem vai ser o carrasco de serviço para consumar o crime. O futuro de muitas gerações está hoje a ser decidido. E para não haver uma “solução final” é urgente criar uma ampla mobilização dos cidadãos europeus para defender a democracia e as liberdades e impedir que qualquer totalitarismo possa interromper a nossa evolução civilizacional.

Temos de assumir, sem demora, as nossas responsabilidades!

Mário Jorge Neves

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