Os patrões da Autoeuropa – Não se pode despedi-los?

Soube-se nos últimos dias – mas rapidamente essa matéria desapareceu dos jornais e dos comentadores ditos de referência – que, por absoluta e exclusiva responsabilidade da respectiva Administração e gestão, a fábrica de Palmela da Autoeuropa vai parar durante os dias 26 a 29 de Dezembro, ou seja, e na prática, durante toda a próxima semana.

Na verdade, por falta de componentes indispensáveis à produção – muitos dos quais, apesar de todos os avisos dos próprios trabalhadores, não foram adquiridos a tempo e aos melhores e mais adequados fornecedores – a fábrica ficou impossibilitada de trabalhar. Isto já depois de, pela mesma razão, na 6ª feira passada, dia 15/12, a fábrica ter também estado parada.

Numa altura em que os trabalhadores da Autoeuropa muito justamente lutam contra as tentativas patronais de imposição de trabalho em dias de descanso (os Sábados), este comportamento da gestão da empresa é até susceptível de configurar a prática do ilegal e constitucionalmente proibido lock-out (isto é, a greve dos patrões) já que se trata, iniludivelmente, de uma actuação unilateral do empregador que determina a paralisação de todos ou de alguns sectores da empresa, que é como o artº 544º, nº 1 do Código do Trabalho o define. E ainda por cima quando, como foi denunciado por alguns trabalhadores, a maior parte das peças em falta são aquelas que a própria marca (a VW) fornece!

Mas mesmo se, benevolentemente, se quisesse qualificar tal conduta como não intencional, então, e no mínimo, a mesma configuraria uma grosseira e inaceitável negligência por parte de quem, ainda por cima, sempre gosta de se apresentar e de ser elogiado como um modelo exemplar de gestão.

Um (suposto) erro desta dimensão, ou até um bem menor, se fosse da responsabilidade de um operário, logo serviria de fundamento – decerto depois pressurosamente confirmado pela maior parte dos juízes dos nossos Tribunais do Trabalho – para o seu despedimento, sob a alegação de justa causa e baseado num comportamento culposo do trabalhador dito de “lesão dos interesses patronais sérios da empresa” [artº 351º, nº 2, al. e) do Código do Trabalho].

A Autoeuropa é publicamente conhecida e reconhecida como, senão a primeira, pelo menos uma das fábricas mais produtivas do Grupo Volkswagen e os lucros deste não têm cessado de aumentar, não obstante, ou até por causa delas, as fraudes do chamado “Dieselgate”, ou seja, da tecnologia destinada a manipular e disfarçar a ultrapassagem dos limites das emissões poluentes, e pelas quais o Grupo já assumiu ter de pagar qualquer coisa como 25 mil milhões de euros. Na verdade, os lucros antes de impostos do Grupo VW, só nos primeiros 9 meses de 2017, subiram de 2,4 mil milhões para 10,6 mil milhões de euros, e isto depois de, em 2016, já terem crescido 48% relativamente ao ano anterior. O certo, porém, é que esta paralisação forçada, em termos estritamente numéricos, não pode deixar de representar uma perda significativa de alguns milhões de euros.

Aquilo que, todavia, é tão curioso quanto significativo é que os mesmos “especialistas” e “opinion makers” que sempre que há um anúncio de greve dos trabalhadores da Autoeuropa (como, aliás, de qualquer outra empresa) logo surgem a vociferar impropérios contra os grevistas e a apresentar números (ademais nunca verdadeiramente demonstrados) de alegados prejuízos decorrentes dessa mesma greve, tendo logo referido a verba de 5 milhões de euros aquando da greve de 30 de Agosto último, agora estão calados que nem ratos e deles não se ouve uma única palavra sobre esta matéria…

E, já agora, convindo igualmente dizer que, segundo a Organização Internacional do Trabalho, dos 12 países europeus com mais greves, Portugal está em antepenúltimo lugar e ainda que, de acordo com o Quadro 141 do Livro Verde sobre as Relações Laborais 2016, editado pelo próprio Ministério do Trabalho, em 2014 o número de dias de trabalho “perdidos” em greves por cada mil trabalhadores por conta de outrem foi somente de 11,1 e o número médio de dias de trabalho “perdidos” por cada trabalhador em greve foi apenas de 1,5! Isto é, cerca de 4 vezes menos do que os dias perdidos com a forçada paralisação da fábrica agora determinada pela Administração da Autoeuropa!…

A grande questão por que se batem, e muito justamente, os trabalhadores da Autoeuropa,       prende-se com a tentativa patronal da imposição, como obrigatória, da prestação de trabalho aos Sábados (que voltariam assim, como nos tempos do fascismo, a dias “normais” de trabalho) e a preservação por parte dos mesmos trabalhadores da “organização do trabalho em condições socialmente dignificantes de forma a facultar a realização pessoal e a permitir a conciliação da actividade profissional com a vida familiar”, que é precisamente aquilo que o artº 59º, nº 1, al. b) da Constituição da República Portuguesa, expressa e formalmente, lhes garante como um dos seus direitos fundamentais, e que impede que o estabelecimento dos horários de trabalho (e, logo, dos tempos de repouso) possa voltar a ser considerada matéria do exclusivo e unilateral arbítrio patronal.

E a este propósito impõe-se ainda sublinhar que, mesmo do ponto de vista estritamente jurídico-formal, necessidades acrescidas de trabalho, se forem excepcionais e pontuais, podem e devem ser supridas com o recurso ou ao trabalho extraordinário, executado e pago como tal, ou à contratação a prazo (desde que rigorosamente respeitados os respectivos requisitos substanciais e formais), e se forem de carácter permanente ou duradouro, mediante a contratação de novos trabalhadores.

O que a Administração da Autoeuropa, com a tentativa de imposição unilateral, a partir de Janeiro próximo, de 17 turnos semanais, incluindo trabalho aos Sábados a dois turnos, está a procurar fazer é mais “omeletes” (mais lucros) com os mesmos “ovos” (leia-se trabalhadores) para assim conseguir, com o mínimo de custos salariais e com o máximo de ganhos, atingir a projectada meta da produção de 240 mil veículos em 2018.

Tudo isto com a chancela (cada vez menos) encapotada do Ministro do Trabalho e da Segurança Social, Vieira da Silva, o qual, com o seu ar pretensamente tranquilo, até já veio declarar que “o Governo assumirá as suas responsabilidades, que podem ser concretizadas com um envolvimento mais forte no que toca ao reforço da criação de equipamentos sociais de apoio à família que responda a um novo quadro horário”, ou seja, dando já por bons e por assentes os tais novos horários. E tudo isto mantendo-se sempre no ar a velha e repetida ameaça chantagista – logo amplificada e repetida mil e uma vezes pelos agora silenciosos “especialistas” e “comentadores” – de que ou os trabalhadores se dobram às exigências patronais ou a fábrica pode ser deslocalizada para outro país com condições laborais ainda mais baixas do que as nossas e aqueles podem ir para o desemprego.

Ora, em primeiro lugar, à chantagem não se cede, e não são, manifestamente, questões de dinheiro que estão aqui em causa. Não o são para o Grupo Volkswagen que, como se viu, e não obstante trafulhices e ilegalidades como a do “Dieselgate”, acumula crescentes e astronómicos lucros à custa da produtividade de trabalhadores como os da Autoeuropa. E também não o são para os trabalhadores pois que, para estes (e ao invés do que a contra-propaganda patronal pretende fazer crer), o essencial é a salvaguarda dos seus tempos e dias de repouso. E, em segundo lugar, esse jogo de ameaça – se fosse aceite – surtiria sempre efeito, pois, como todos sabemos, é possível encontrar países com piores condições salariais e até trabalhadores que ganham salários de 1 dólar por dia.

Assim, são os patrões que, com trabalhadores altamente especializados e qualificados como são os da fábrica de Palmela da Autoeuropa e que fazem dela um sempre apontado exemplo de produtividade e qualidade, afinal não conseguem assegurar o fornecimento a tempo e horas das peças necessárias à produção e não conseguem organizar os tempos de trabalho na fábrica com respeito pelos tempos de repouso dos mesmos trabalhadores, que merecem o despedimento imediato, se não com justa causa disciplinar, pelo menos por manifesta inaptidão…

António Garcia Pereira

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