A tarde estava feia. Não chorava mas envolvia-nos de bafo frio com nuvens densas, vento pontiagudo e um tom escuro-obscuro, quase doentio. As pessoas, porém, não pareciam preocupadas – o dia era de Campeonato Parlamentar.
Logo muito cedo começaram a chegar à Praça de São Bento os costumeiros vendedores de cachecóis (um tudo-nada sujos, alguns deles) com as famosas imagens da escadaria da Assembleia da República e as bandeiras a punho-rosa com a cara do melhor jogador da casa: o nosso António Costa, exímio driblador de questões incómodas e maestro na arte de, no semi-círculo de discussão, falar mais no que as equipas adversárias não fizeram no passado do que em debater as estratégias e tácticas da sua própria equipa – um génio de gravata ao colarinho. Logo a seguir, na base das escadas, em frente aos restaurantes do outro lado da via, vários veículos estacionaram. Rulotes com carnes e bebidas, banquinhas de fruta, vendas de churros, flores, postais com imagens dos líderes parlamentares – todos sem condições sanitárias minimamente decentes. Às vezes penso que a ASAE deveria ser um partido; há por aí muito boa gente a precisar de fiscalização ao nível da higiene e do decoro.
Obviamente, estava nervoso. Era a minha primeira ida à Casa da Democracia e havia ainda várias questões por resolver: observar ao vivo as exibições do sublime Pedro Nuno Santos, do histórico Jerónimo de Sousa e da assertiva porém nem sempre conveniente Catarina Martins (nunca é a mesma coisa assistir pela televisão aos “players” – não se lhes notam todos os pormenores argumentativos); perceber qual a forma física de um pujante Carlos César, de uma fragilizada Assunção Cristas, de uma potente Mariana Mortágua, de um anémico Hélder Amaral; reforçar a crença (ou duvidar dela) nos jovens valores parlamentares: deputados com formação nos médios e grandes partidos de Esquerda, supostamente já preparados para o grande palco, para o palanque universal. Para o salto merdiático.
Sobre Pedro Nuno Santos, a minha inquietação maior residia em saber se seria capaz de servir de tampão às transições anti-maçónicas a que, muito provavelmente, estaria sujeito por parte da equipa menos dada a interesses exteriores ao jogo; já sobre Jerónimo, questionava-me se seria homem para funcionar em apoio, com profundidade na hora de assistir o grande goleador Costa ou se, pelo contrário, procuraria a fama por si próprio, indo directo ao assunto ao invés de driblar problemas, rematando em vez de assistir. Catarina Martins é sempre uma incógnita: tanto entra com o pé esquerdo e faz uma maravilhosa exibição como, se lhe dá para os amoques, perde bolas atrás de bolas para a equipa adversária, prejudicando (e de que maneira) o clube que lhe dá de comer. Não lhe faria mal alguma contenção exibicional: melhor ser o maior dos passivos do que o menor dos activos. Em política, importa saber não ser.
Quando chegámos ao exterior do recinto e para acalmar o natural nervosismo no pré-jogo, empolgados pela multidão quase eufórica e por uma sede indesmentível, entrámos numa loja de cerveja artesanal e ali ficámos, em alegre cavaqueira (salvo seja!), até quase ao início da contenda. Estava um ambiente algo conturbado: viam-se, ao longe, os primeiros fumos de adeptos do PSD de tarjas e tochas na mão; não fosse a imediata intervenção da autoridade, as coisas poderiam ter mesmo chegado a vias de facto (caramba, o que sofremos por antecipação). Continuo a dizer que as Juventudes de Direita em nada dignificam a Política, são bandos de delinquentes sempre em busca de motivos para a violência partidária. É certo que apoiam de forma bastante civilizada, que gritam muito moderadamente, que têm bons sapatos e óptimos cabelos, que têm megafones em inegáveis condições; é evidente que, na arte da demagogia, dão cartas, que são fortíssimos e têm grandes especialistas ao nível da construção de interesses – afinal, estão bem instruídos desde muito novos, logo que entram nas faculdades. Por mim, deixava a política entregue às Juventudes de Esquerda e aos pobres cidadãos apaixonados por causas – não nos servindo de muito, ao menos não fazem mal a ninguém.
Quando faltava cerca de meia-hora para o dérbi quinzenal, acabámos a cerveja de um trago e dirigimo-nos para a entrada. Como tínhamos convite, estávamos bastante tranquilos e confiantes, não havia motivos para preocupações. Certo? Erradíssimo! Hoje em dia já não se pode ir à política sem que mãos intrusas nos apalpem por todos os lados, sem que curiosos olhos nos visem, politicamente desconfiandos – energúmenos de gravatas fluorescentes e nariz falsamente aristrocático mirando-nos, apalpando-nos, humilhando-nos como se fôssemos alguns provincianos que decidiram ir ver e fazer política sem qualquer truque estratégico nem visão a médio, longo prazo. Senti-me indignado, apre! Para além da infeliz apalpadela, ainda me retiraram dos bolsos um isqueiro que o PS de Abrantes me havia dado há mais de 15 anos, o mp3 que tinha uma música cubana com poema de Manuel Alegre e uma factura de uma compra de 30 livros escritos pelo Engenheiro Sócrates. Bem, lá entrei humilhado porém convicto (que nestas coisas nunca podemos dar o flanco todo). Mantive a esperança que o debate valesse a pena e pudesse esquecer mais uma atribulada entrada no semi-círculo do poder.
Chegados aos lugares “VIP”, mais uma desagradável surpresa: alguém estava sentado na minha cadeira privilegiada. Naturalmente, gerou-se um diálogo menos próprio.
– O seu lugar é mais para os lados, lá ao fundo. Na tribuna em cima do PP.
– Nem pense nisso. Ficarei por cima do líder parlamentar César, mesmo neste enfiamento.
– Veja, seu oligofrénico teimoso: A 22, lugar 18, tribuna popular. O pior lugar do recinto é seu.
O energúmeno ria-se de forma sabuja. Comi humilhação às colheres, confesso, mas esperei que, começado o espectáculo, eu finalmente pudesse destacar-me no extraordinário apoio que tinha dentro de mim – mesmo que totalmente destacado da cadeira que ambicionara. António Costa, na zona central do terreno, encetou vários passes a rasgar a equipa do PSD; sempre em movimentos circulares à espera do melhor momento, desmarcava os nossos extremos para a frente, aproximava-se da ala direita e goleava como se fosse simples o gesto técnico – um matador à antiga, um orgulho. Do lado da nossa equipa, um jogo de cintura assinalável; muita táctica, muito empolgamento, muito sorriso irónico, três ou quatro palavras mais duras (mas justíssimas!), raiando quase a falta de educação não fosse a cultura absolutamente superior dos seus membros. Um banho de política digno da melhor época do socialismo francês. Até parecia que a Direita não queria ganhar; na verdade, não podia ganhar, não sabia ganhar.
A vitória apenas foi manchada pelas injustas observações por parte dos partidos adversários sobre a actuação verdadeiramente transparente da arbitragem. Os inacreditáveis remoques visando o impoluto Ferro Rodrigues por parte de Pedro Passos Coelho quase fizeram lançar-me da cadeira para cima da bancada parlamentar do PPD e atacar violentamente o seu líder, que já me andava atravessado desde aquela ida a um mercado de Tondela nas anteriores eleições, em que não foi capaz de beijar nenhuma das peixeiras, embora cantasse as suas cançõezinhas ridículas de tunas e fados suspeitos. Foi, até por isso, uma arbitragem repleta de gritante igualdade de critérios, autoritário em equilíbrio com os nossos e com os outros e caseirinho como sempre porque defensor da Lei e da Justiça democráticas.
Há, aliás, um lance no dérbi quinzenal que não deixa dúvidas a ninguém sobre os bons sentimentos do árbitro: quando Vieira da Silva se preparava para rematar contra a baliza deserta de Hugo Soares (projectando um golpe de extrema qualidade política e não deixando dúvidas sobre a questão “Raríssimas”), desferindo uma bola com efeito em
“os portugueses querem lá saber disso, meu caro!”)
surge o inacreditável Luís Montenegro, logo na primeira intervenção do dérbi, a ceifar o nosso craque Vieira da Silva com um violentíssimo
“não diga mentiras, pá!”
Lance para vermelho que só a bonomia mágica de Ferro Rodrigues pôde deixar passar em claro. Nem sequer se ouviu um “Senhor Deputado, estamos na Assembleia da República, vamos lá, algum pudor”, muito menos um “Deputado Luís Montenegro, faça o favor de abandonar o Parlamento e ir tomar banho mais cedo”.
Talvez a arbitragem tenha de ganhar novos contornos, uns mais condizentes com a verdadeira essência do que historicamente é o dérbi quinzenal. A continuar assim, e apesar de lhe vermos um incalculável valor, teremos de repensar se o árbitro deve continuar a ser considerado de alta excelência. É que não posso esquecer o episódio posterior, já quase no fim da contenda, num lance em que Ferro Rodrigues permitiu que Telmo Correia gastasse todo o tempo do mundo, tecendo loas infinitas a Assunção Cristas enquanto Nuno Magalhães, seu cúmplice no desaforo à democracia, ia ensaiando uns abomináveis
“muito bem, muito bem, muuuuuuuito bem!!!”
O que fez a arbitragem? Permitiu a ofensa. Fingiu não perceber a intenção da equipa adversária, não descontou o tempo gasto e ainda foi complacente
“faça o favor de terminar, senhor deputado Telmo Correia.”
Se isto não é um atentado ao Parlamento, se isto não constitui, per se, a mais indigna sanha contra a liberdade de expressão, eu devo ser do PNR. Assim não vale a pena vir à política. Se é para isto que sofremos pelos nossos e gastamos dinheiro, que fazemos milhares de quilómetros quando poderíamos ter ficado em casa no conforto da família, confortavelmente a ver o dérbi pela televisão, então talvez seja o momento de repensar o país e o mundo. Enfim, há quem não mereça apoiantes desta estirpe. Solidários, magnânimos, voluntários e sempre presentes. Quer chova quer não chova, de punho-rosa levantado contra as sanguessugas direitolas.
Finalizado o dérbi, ficámos algum tempo nas nossas cadeiras a olhar no vazio – com aquela cara anestesiada de quem acaba de ver um jogo bom mas muito pouco respeitado – e à espera que os restantes apoiantes abandonassem o recinto. Estávamos nisto, nesta letargia própria de um desencanto quase infantil, quando, para meu espanto, vejo no interior do semi-círculo, António Costa e Assunção Cristas numa galhofeira pegada. Olhavam-se sem ódios, diziam piadas um ao outro, trocavam vídeos engraçados de Natal e pastas cheias de papéis e projectos. Num repente próprio de uma paixão política que me consome todos os músculos do corpo, arranquei a minha cadeira e, absolutamente enojado, atirei-a para o banco da nossa equipa, gravemente ferindo João Galamba, Jamila Madeira e mais dois ou três deputados com o ricochete que o impacto dos pés de metal criou nos dois cérebros socialistas. Uma semana depois, já na prisão, inscrevi-me no Partido Nacional Renovador.
Ricardo Silveirinha
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