Eis um facto particularmente importante para o mundo do Trabalho, mas que passou quase despercebido entre nós, não obstante a semelhança e proximidade com a nossa realidade. Na passada semana, no Brasil, no âmbito de uma acção intentada pelo Ministério Público do Trabalho em 2021, o Tribunal Regional do Trabalho de São Paulo proferiu uma sentença absolutamente notável, que condenou a Uber a pagar aos respectivos motoristas mil milhões de reais (cerca de 190 milhões de euros) a título dos chamados “danos morais colectivos”, a reconhecer a existência de um contrato de trabalho com cada um deles, e a proceder ao respectivo registo junto das autoridades competentes, fixando ainda uma multa, ou sanção compulsória, de 10 mil reais (cerca de 1.930€) por cada trabalhador e por cada dia em que tal registo não seja efectuado.
Uma correcta análise das relações de trabalho na Uber
O sentido desta decisão não é propriamente inédito, inclusive no próprio Brasil, mas o seu alcance nacional e a sua aplicabilidade a cerca de um milhão de motoristas, sim! E foi tomada precisamente por o Juiz ter considerado que a Uber não é uma mera “intermediária” de uma determinada forma de prestação de serviços, mas sim uma estrutura técnico-organizativa (aliás, altamente lucrativa) que tem controlo sobre “o modo como as actividades dos profissionais deviam ser exercidas”, controlo esse “muito maior do que se conhecia até agora”, com recompensas e perdas por atendimentos, conexão ou desconexão para as viagens, etc. E tudo isto no âmbito e na sequência da já referida acção intentada pelo Ministério Público do Trabalho, e com base desde logo naquilo que o Procurador Renan Kalil denominou de “o maior cruzamento de dados da história do Ministério Público e da Justiça do Trabalho”.
A dita sentença está também alicerçada numa análise jurídica complexa, densa e actualista, que soube identificar, qualificar e tratar correctamente a questão essencial – é que a subordinação jurídica (traço característico essencial da existência de um contrato de trabalho) se consubstancia hoje em evidências factuais que pouco ou nada têm que ver com as das relações de trabalho tradicionais, típicas da época industrial, tais como o cumprimento de um horário rígido e num local do beneficiário da actividade, o uso de meios e utensílios que não são do próprio, a presença física próxima de um superior hierárquico que dá ordens directas e específicas sobre o cumprimento da prestação de trabalho, etc. Em suma, daquilo que, ainda hoje, as mais conservadoras doutrinas e jurisprudências persistem, erroneamente, em considerar as características reveladoras dos poderes de autoridade e direcção atribuídos à entidade patronal.
As novas formas de organização e prestação de trabalho
Ao invés, e muito acertadamente, o autor da sentença em causa entendeu ter presente que as novas formas de organização e prestação de trabalho (determinadas pelas novas tecnologias, e em particular pelas da comunicação à distância e da gestão algorítmica) impuseram outros modos e outros meios de subordinação, fazendo assim deslocar o eixo de gravidade da questão da existência, ou não, de um contrato de trabalho dos tais elementos físicos da autoridade e direcção para os elementos técnico-organizativos e para os da real inserção (qual “parafuso”, mesmo que muito especializado e tecnicamente autónomo) numa estrutura e organização de meios (numa “engrenagem”), a ele por inteiro alheia. O prestador de actividade pertence inquestionavelmente a essa organização, mas nenhum poder decisório tem sobre o destino do produto da sua actividade bem como sobre, designadamente, o momento, o modo e o preço por que tal destino é decidido e executado.
E é assim que, agora, e perante tais realidades, têm de ser muito diferentes dos tradicionais os indícios da existência de um verdadeiro contrato de trabalho, ainda que este seja habilmente dissimulado para assim permitir ao real beneficiário da actividade eximir-se aos custos (salários fixos e subsídios, pagamento de horas extra, contribuições para a Segurança Social, custos de formação e de seguros de acidentes de trabalho, etc.) e às responsabilidades inerentes à qualidade de Entidade Empregadora e aumentar, de forma exponencial, os respectivos lucros.
Esses novos indícios devem assim ir desde o da obrigação de cumprimento de regras ou regulamentos técnicos e organizativos (incluindo regras de atendimento, de características e de modo de uso dos meios, por exemplo, automóvel) ou inclusive de vestuário (os chamados dress codes), até aos sistemas ditos de controle de qualidade e/ou da quantidade de actividade prestada, inclusive através da utilização de meios não apenas manuais, mas electrónicos e algorítmicos, passando pela possibilidade de condicionamento ou restrição da aceitação ou rejeição do serviço ou pela disciplina do prestador por meio da possibilidade da sua exclusão de algumas ou de todas as actividades ou até da “desactivação unilateral” da conta.
É precisamente por tudo isto que as formas tradicionais, e em larga medida ultrapassadas, de procurar determinar se, numa determinada relação profissional, existe ou não subordinação jurídica e, logo, se ela é ou não um verdadeiro contrato de trabalho, não conseguiam alcançar a essência destas novas formas de organização e prestação de trabalho e condenavam os trabalhadores nelas integrados ao estatuto – de completa desprotecção, desde logo relativamente a rescisões arbitrárias e ao seu impune lançamento no desemprego – de meros “prestadores de serviços”. Situação esta que é agravada quando o ónus da prova recai todo sobre o próprio trabalhador (em particular quando há reduzida prova documental e as possíveis testemunhas são prestadores de actividade em situação similar à dele) ou quando as presunções legais da existência de contrato de trabalho, com a consequente inversão daquele ónus, estão afinal baseadas em requisitos completamente ultrapassados e desfasados das novas realidades.
Sentenças noutros países, sim. Mas em Portugal não!…
Ora, correspondendo à necessidade de o Direito, e em particular o Direito do Trabalho, se adaptar a essas novas realidades para assim poder desempenhar cabalmente a sua função social, a doutrina e a jurisprudência laborais mais atentas e avançadas foram procedendo a essa mesma adaptação e modernização, e assim se foram sucessivamente multiplicando em inúmeros países (como a Espanha, a França, a Alemanha, a Itália, o Reino Unido, os Países Baixos, o Brasil, o Uruguai e até os Estados Unidos da América) as decisões judiciais reconhecendo a existência de contratos de trabalho nos vínculos dos prestadores de actividade, não apenas em benefício de plataformas digitais como a Uber e a Glovo, mas também em estações televisivas e até em orquestras.
Só em Portugal – quer antes da consagração no Código do Trabalho da presunção de contrato com base nos indícios clássicos, quer mesmo depois – é que, mercê de umas lamentavelmente generalizadas e de todo anacrónicas concepções, ainda hoje não se conhece uma única (!) decisão judicial a decretar tal reconhecimento de existência de um vínculo laboral com as já referidas plataformas digitais, conferindo a estas um estatuto de inaceitável e arrogante impunidade.
O mesmo, aliás, vem sucedendo até agora com outros prestadores de actividades caracterizadas por um carácter muito pessoal (assente na expressão de aptidões e talentos inatos à personalidade individual do prestador) e pela particular relevância de aspectos imateriais da própria prestação (como o das características pessoais e únicas do desempenho e do seu impacto junto do público consumidor dos bens ou serviços prestados). Estamos então a falar não apenas de jornalistas, apresentadores, músicos e maestros de uma orquestra, por exemplo, mas também de outros profissionais altamente qualificados, como os médicos.
A situação destes é, aliás, particularmente singular e juridicamente perigosa em Portugal, porquanto a grande maioria dos que trabalham para hospitais privados o fazem ao abrigo de contratos habilidosamente denominados de “prestação de serviços”, muitas vezes até formalmente celebrados não com os próprios, mas com pessoas colectivas que eles foram levados a constituir (como pequenas sociedades médicas unipessoais ou por quotas), disfarçando assim, e duplamente, vínculos que se caracterizam por evidente alienidade dos meios e utensílios usados pelo prestador da actividade, pela sua total ausência de poder de decisão quanto ao tempo e ao custo dos serviços prestados, e pela sua sujeição a regras técnico-organizativas e a sistemas de controle de quantidade e qualidade da actividade desenvolvida, e, não raras vezes, por regimes de exclusividade. Mas profissionais esses que, no primeiro momento em que se verifique qualquer divergência ou conflito com o dono ou a administração do hospital, se veem desligados da prestação da actividade com uma simples comunicação de “termo da prestação de serviços”. Tudo isto num ambiente de grande impunidade dos autores e beneficiários deste tipo de expedientes, habilidosos, mas ilegítimos, que não configuram mais do que uma maliciosa fuga ao Direito do Trabalho.
As verdadeiras razões da inefectividade da Justiça Laboral portuguesa
Ora, esta autêntica inacção da Justiça do Trabalho portuguesa perante o abuso e a fraude à lei não resulta de todo apenas da circunstância de em Portugal – ao invés do que justamente sucede no Brasil – não se reconhecer ao Ministério Público a competência ou legitimidade para intentar acções em defesa de interesses colectivos dos trabalhadores e muito menos se admitir a figura dos “danos morais colectivos” (como é o caso dos que são causados a uma generalidade de trabalhadores com ataques ilícitos a uma greve ou com despedimentos colectivos ilegais).
As razões da referida inoperância (chamemos-lhe benevolamente assim) da Justiça Laboral portuguesa são muito mais fundas e prendem-se, acima de tudo, com os preconceitos ideológicos ultra-conservadores que predominam no ensino dos juristas (nas Faculdades de Direito), na formação dos magistrados (em particular no Centro de Estudos Judiciários – CEJ) e na avaliação e progressão das suas carreiras (da responsabilidade do Conselho Superior da Magistratura – CSM), assentes primordialmente na capacidade quantitativa de despacho).
Com efeito, chegam a ser gritantes o desconhecimento, ou a ignorância intencional, das novas realidades do mundo do Trabalho e a tendência, política e socialmente não inocente, “para colocar a empresa, e não o trabalhador, no centro das preocupações do direito laboral (a empresa como novo maître à penser) e para que o social se degrade em mero subproduto do económico”[1]. O endeusamento da liberdade de iniciativa económica e a tendência para “compreender” e tolerar praticamente tudo o que, em seu nome, os empregadores entendam fazer[2], são disso sintomáticos exemplos. Mas também o é uma concepção profundamente errada (mesmo face ao Código de Processo do Trabalho em vigor) do que deve ser a postura e o papel do juiz no processo laboral, esquecendo-se sistematicamente que lhe cabe um papel activo quer na averiguação da verdade material dos factos, quer no impedimento de que, por meras razões ou pretextos de natureza formal, se “despache” o processo, mas não se chegue à decisão das questões de fundo[3].
A Justiça não se deixa questionar!
Mas, enfim e sobretudo, por uma razão mais profunda ainda (mas que quase ninguém quer debater com a profundidade e seriedade que ela justifica): a Justiça – para mais sendo os Tribunais o único órgão de soberania sem uma legitimidade democrática electiva – não se querer nem se deixar questionar.
Enquanto os relativos aos “pilha-galinhas” andam célere e eficientemente, diversos e importantes processos-criminais (ou partes significativas deles) extinguem-se pela insistência na lógica dos muito mediáticos e muito ineficientes “mega-processos” e pelo decurso dos respectivos prazos e consequente prescrição, e não há nunca responsáveis, nem nada acontece[4].
Pessoas são alvo de procedimentos criminais e, pior do que isso, de autênticas execuções públicas, propiciadas por sempre cirúrgicas e sempre impunes violações do segredo de Justiça, e são depois absolvidas na 1.ª e na 2.ª instância[5], e ninguém é responsável por essa barbárie, nem nada acontece.
Nos Tribunais Administrativos e Fiscais existem inúmeros processos pendentes há mais de quinze anos, com a consequente inutilização dos direitos dos cidadãos e contribuintes e com o reforço da arrogância e sentimento de impunidade das autoridades administrativas[6], e ninguém assume a responsabilidade, nem nada acontece.
No Juízo do Trabalho de Lisboa todas as providências cautelares de suspensão do despedimento colectivo da TAP foram julgadas improcedentes para depois, e em todos os 11 recursos que foram por trabalhadores interpostos para a Relação de Lisboa, essa decisão ter sido revogada e a suspensão ter sido decretada[7].
Durante décadas, no caso da TAP, e por largo período de tempo no caso da Douro Azul, houve trabalhadores abusivamente contratados a prazo durante anos a fio para preencherem necessidades permanentes das referidas empresas, e só muito recentemente os Tribunais Superiores, em particular o Supremo Tribunal de Justiça – aliás, com grande fúria por parte dos empregadores e seus representantes… – declararam a óbvia ilicitude dessas práticas. Mas, afinal, tal ilicitude não era absolutamente evidente desde a 1.º instância?! Então porque é que sobretudo esta vem reiteradamente decidindo da forma que decide? E não é também evidente que motoristas e entregadores da Uber ou da Glovo, como os já referidos jornalistas, apresentadores ou médicos, nada têm de trabalhadores “autónomos” ou de empresários em nome individual?
Ora, tudo isto se passa sem que aparentemente alguém queira debater o que tal significa, designadamente acerca da forma como estão a ser escolhidos, formados, avaliados e promovidos os juristas, especialmente os juízes, em particular os da Jurisdição Laboral. O mesmo rigorosamente se podendo dizer de muitas outras e importantes questões, de que destaco a absolutamente impressionante (e largamente dominante) insensibilidade para a enorme gravidade dos danos morais, em especial em alguns casos (designadamente os das vítimas de violência doméstica ou sexual, ou de processos de assédio moral), fixando indemnizações absolutamente miserabilistas, senão mesmo provocatórias, para as vítimas.
Mas a Justiça tem que prestar contas ao Povo!
Porém o certo é que a Justiça não é um “serviço” do Estado e os cidadãos não são seus “utentes”, mas sim titulares dum direito constitucional fundamental – o de acesso à Justiça para defesa e tutela efectiva dos seus direitos e legítimos interesses. E se os Tribunais são órgãos de soberania, o certo é que o Poder soberano reside no Povo e a este devem aqueles e os respectivos titulares e responsáveis prestar contas da sua actividade.
Porque o presente estado das coisas não é mais nem social nem democraticamente aceitável e porque – por muito que isso custe aos interesses corporativos neles instalados… – o funcionamento e os actos de órgãos como o Conselho Superior da Magistratura, o Conselho Superior do Ministério Público ou o Centro de Estudos Judiciários devem ser conhecidos, debatidos e controlados pelos cidadãos em nome e no interesse dos quais estão atribuídas àqueles órgãos as respectivas competências!
António Garcia Pereira
[1] Leal Amado, J. (2023). “A proibição do recurso à terciarização de serviços e o despedimento para terceirizar”. Revista de Legislação e de Jurisprudência, 4040, 319.
[2] Chegando-se ao ponto de querer negar aos Tribunais do Trabalho a possibilidade de realmente verificarem a veracidade dos fundamentos invocados para um despedimento colectivo, com o pretexto de que isso seria invadir a sacrossanta esfera de decisão da gestão empresarial privada.
[3] Tal como lhe impõem os art.º 27.º e 72.º, n.º 1, ambos do Código de Processo do Trabalho.
[4] Quando muito, ataca-se, tão gritante quanto injustificadamente, o juiz que, aplicando a lei, reconhece e declara o decurso do prazo de prescrição do procedimento criminal…
[5] Como é o sinistro caso do ex-Ministro Miguel Macedo, do ex-Director do SEF Jarmela Palos e do Juiz Desembargador Antero Luis, condenados na “fogueira pública” e depois absolvidos e ilibados em Tribunal.
[6] Como são os casos da Segurança Social, da Caixa Geral de Aposentações e das Finanças.
[7] No Juízo do Trabalho de Lisboa, por exemplo, o processo (“urgente”) do despedimento colectivo de o Novo Banco levou cinco anos a ser, contra o parecer dos próprios assessores nomeados pelo Tribunal, julgado lícito, para o Tribunal da Relação ter enfim declarado, e com toda a clareza, a respectiva ilicitude.
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